Como o velho marinheiro, Lula conseguiu atravessar 2023 com segurança,
apesar de sustos de percurso
Em 1975, inconformado pela descaracterização do
samba, Paulinho da Viola lançou a singela música “Argumento”. Os curtos e
contundentes versos faziam um chamado à volta dos instrumentos clássicos do
principal ritmo brasileiro, como “um cavaco, um pandeiro e um tamborim”, e
arrematavam com um sábio conselho que se presta a tudo na vida: “Faça como um
velho marinheiro que durante o nevoeiro leva o barco divagar”. Neste complicado
ano de transição, da volta do país ao trilho democrático, o presidente Lula,
velho marinheiro em 3º mandato, deve ter se lembrado de Paulinho da Viola para
levar o barco do Brasil a um porto seguro, em meio ao mar revolto e às ameaças
no caminho.
Lula, que sempre foi e continua sendo um líder de
aceitação nacional muito maior do que a do Partido dos Trabalhadores, percebeu,
já na belicosa campanha eleitoral de 2022, na qual o governo Bolsonaro
exorbitou como nunca do uso da máquina oficial para turbinar a campanha da
reeleição, que o mar pedia um timão firme e o convencimento da galera a remar
junto com o timoneiro. Mesmo com minoria no Congresso, cuja forte fração
conservadora decorrente da eleição de 2018 foi ampliada em 2022, e o governo
composto na adesão dos partidos da esquerda até o centro democrático, Lula
conseguiu atravessar, com segurança, apesar de sustos no percurso, até o fim de
2023. O teste mais duro foi a tentativa de golpe no 8 de janeiro, com ataque
simultâneo dos bolsonaristas às sedes dos Três Poderes. O tiro saiu pela
culatra. Houve a união dos comandos dos Três Poderes e o apoio de todos os
governadores ao Estado Democrático de Direito, com respeito à Constituição
Federal.
Entretanto, a dicotomia entre um líder forte e um
governo fraco, pela ausência de uma base política forte, deixa os governos, à
direita ou à esquerda, sob pressões das diversas bancadas do Congresso, com
senadores e deputados federais barganhando votos em troca de vantagens para
seus redutos eleitorais. O fenômeno brasileiro do multipartidarismo, que
esfacela o poder do Executivo e que já atingiu o governo Bolsonaro e outros
momentos da história republicana (os governos Jânio Quadros, João Goulart e Fernando
Collor são os maiores exemplos), se acentuou muito. Sobretudo depois que o
desenho parlamentarista da Constituição de 1988 não foi fechado, mas deixou
aberta a porta para o fracionamento partidário. Uma das aberrações é a
progressiva transformação dos currais eleitorais das igrejas evangélicas e
pentecostais para a função de partidos políticos (como o Republicanos, na
Igreja Universal do Reino de Deus). Isso só aumenta os custos da
governabilidade.
·
Os custos da governabilidade
E o Congresso se aproveita disso. Em vez de avançar
nas cláusulas de barreiras, para restringir a presença, na Câmara e no Senado,
de representantes de partidos que não cumprem coeficientes eleitorais mínimos,
os políticos se recusam a dar tiros nos próprios pés e impõem ao Executivo,
fragilizado no Congresso, derrotas que reduzem o poder relativo do Executivo
sobre a peça orçamentária. O final do ano de 2023 foi exemplar, coroando as
sucessivas chantagens das duas casas contra o Executivo. A votação da Lei de
Diretrizes Orçamentárias, que estabelece as linhas mestras do Orçamento Geral
da União (OGU) para o ano seguinte, tem um ritual. O primeiro esboço deve ser
enviado pelo Executivo ao Legislativo em abril. Depois, a proposta tem de ser
apresentada ao Congresso até 31 de agosto. E, para que as leis possam valer no
ano seguinte, tudo tem de ser aprovado antes do recesso do Parlamento, em 22 de
dezembro. Cabe lembrar que o Parlamento surgiu na Inglaterra em 1230, quando os
Lordes (senhores de terras no período feudal) se reuniram para coibir a sanha
do Rei João Sem Terra de criar impostos a bel prazer para custear os gastos sem
fim da Coroa. Até hoje, a Câmara dos Lordes define a aprovação dos gastos da
Coroa do Reino Unido e o orçamento do governo exercido pelo primeiro-ministro
no regime parlamentarista.
Pois aqui a Câmara e o Senado deixaram para a
última hora as votações mais importantes para fechar os números do OGU de 2024.
Uma chantagem esticada até o último momento, no qual só o ministro da Fazenda,
Fernando Haddad, parecia manter o sangue frio. O Orçamento foi aprovado
simbolicamente, por votação à distância, via celular! Certamente, até o fim do
primeiro bimestre, sofrerá ajustes impostos pela realidade, mas os deputados e
senadores atacaram, qual hienas, a carcaça do Orçamento. Enquanto cortavam R$ 6
bilhões de verbas para investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC3), limitadas em R$ 55,5 bilhões no ano que vem, trataram de reservar R$ 50
bilhões para emendas próprias de senadores e deputados federais, na Comissão
Mista de Orçamento, com aumento de R$ 12,36 bilhões frente aos R$ 37,64 bilhões
propostos pelo governo federal. E todos querem tirar fotos, qual
papagaios-de-pirata, nas placas de obras do PAC.
Se a isso forem somados os R$ 4,96 bilhões
previstos para o fundo eleitoral em 2024, ano de eleições municipais,
percebe-se por que os políticos também evitam votar a proposta de fim da
reeleição (sempre a partir da eleição seguinte). A nova proposta de fim da
reeleição, adotada em 1997, foi ventilada pelo presidente do Senado (e do
Congresso), Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Mesmo com o alcance reduzido do pleito
municipal, foi mantido o teto da última eleição majoritária de 2022 (que
envolvia campanhas para presidente e vice, senadores e deputados federais e
ainda governadores e deputados estaduais). O aumento é 96% superior ao da
campanha de 2020, para prefeitos e vereadores. Pacheco também manifestou seu
desagrado, defendendo a manutenção do patamar municipal anterior. Mas parece
ser apenas para marcar posição e sair bem na foto, pois nenhum político se
dispõe a abrir mão de sua influência nas bases eleitorais, que nascem nos
municípios.
·
A ressalva dos evangélicos
Nota curiosa – que a mim não surpreendeu – foi a
posição do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que votou contra a
regulamentação e taxação dos sites de apostas esportivas e dos cassinos
virtuais, com as quais o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, pretende fechar
a evasão fiscal e de divisas por centenas de operadoras registradas em paraísos
fiscais, e reforçar a arrecadação em mais de R$ 13 bilhões em 2024. Um dos
representantes da Assembleia de Deus, a maior agremiação evangélica, também
fracionada, o deputado disse ser contra a taxação por ser contra o jogo, por
princípio.
Isso me lembra os anos 60, quando as peladas de
futebol, após as 17 horas, quando os trabalhadores rurais do entorno do sítio
de meu pai, em Águas Claras, que depois viria a ser um bairro no emancipado (de
Petrópolis) município de São José do Vale do Rio Preto (RJ), começavam a sofrer
“desfalques” de jogadores. Um deles, que era muito bom de bola, me confessou
que o motivo era ter “virado irmão”. Lá se instalou uma igreja da Assembleia de
Deus e as moças (que então não cortavam o cabelo, usavam vestidos compridos e
não faziam maquiagem), devidamente instruídas pelos pastores e as famílias, só
aceitavam namorar com irmãos.
E a recomendação dos pastores, segundo ele, era
proibir os fiéis de beber, de ir ao cinema (havia um na vila de São José), de
ver televisão e de jogar (pois o fiel deveria dar prioridade ao dízimo). As
igrejas se fracionaram (a maioria das novas seitas tem origem na Assembleia de
Deus), aceitam vestidos e cabelos mais curtos, além de maquiagem, e recorrem
habitualmente a horários pagos nas TVs para catequisar novos fiéis. Mas seguem
firmes na reserva dos salários e rendimentos para o pagamento sagrado do dízimo
mensal.
·
Um olhar para 2024
Após a semana movimentada de votações no Congresso
Nacional, que trouxeram avanços na agenda fiscal e de reformas no Brasil, os
dois maiores bancos privados do país, Itaú e Bradesco, fizeram ligeiro balanço
apontando expectativas para 2024. O Bradesco destacou a aprovação no Senado da
MP 1885, das subvenções, que altera as regras sobre os créditos fiscais para
investimentos e inclui restrições para o pagamento de juros sobre o capital
próprio (JCP), aumentando o potencial de arrecadação federal. O Orçamento foi
aprovado na sexta-feira, à tarde. O Bradesco ainda destacou a promulgação da
reforma tributária do consumo (Emenda Complementar à Constituição 132), que
estabelece um imposto sobre o valor adicionado, de administração dual, em
substituição a cinco tributos atuais (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS). Em 2024, o
Congresso deve regulamentar diferentes pontos da reforma, fixando parâmetros e
a estrutura de governança do novo regime tributário.
Para o Itaú, o efeito imediato da reforma
tributária foi a elevação do risco soberano do Brasil de BB- para BB, com
perspectiva estável, pela agência de classificação de risco
Standard&Poor’s. Para a S&P, a reforma amplia o “histórico do Brasil de
implementação pragmática de políticas nos últimos sete anos”. Apesar da
implementação gradual, a reforma representa uma revisão significativa do
sistema tributário e deve se traduzir em ganhos de produtividade no longo
prazo. O banco diz que, “a perspectiva estável reflete a expectativa de avanços
lentos na resolução dos desequilíbrios fiscais e projeções econômicas ainda
modestas, contrabalançadas por uma posição externa forte e pela política
monetária, que tem ajudado a reancorar as expectativas de inflação. Com o
“upgrade”, o Brasil está dois níveis abaixo do grau de investimento, nota que
indica uma capacidade adequada de honrar compromissos financeiros”.
Para coroar a mudança de perspectivas, enquanto o
presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, comentava na quinta-feira,
21, na divulgação do Relatório Trimestral de Inflação, que o Banco Central
trabalhava com cenário de redução da taxa Selic (atualmente em 11,75%) para
9,50% em dezembro de 2024, o Bradesco previa uma taxa de 9,25% e o Itaú, 9,00%
(uma redução significativa frente a aposta anterior de 9,50%, como a de Campos
Neto). Mas o banco de investimento UBS-BB, parceria do banco suíço com o Banco
do Brasil, vê espaço para redução da inflação e do piso dos juros (a taxa Selic
é a base das operações financeiras) para 8%. Detalhe, quando todos previam uma
inflação acima de 6% este ano, o UBS-BB previu 4,7% (dentro do teso da meta de
inflação, que é de 4,75% e deve fechar em torno de 4,5%). Para 2024, o
economista chefe Alexandre Ázara está prevendo IPCA de 3%, o que abre espaço
para uma forte baixa dos juros. E juros mais baixos relançam o consumo e a
economia, criando emprego e renda, o círculo virtuoso do crescimento que
reforça a arrecadação e reduz o temido déficit público.
Quem sabe, depois de saborear o churrasco de
confraternização oferecido pelo presidente Lula na Granja do Torto, sexta-feira
à noite, Campos Neto não tenha mudado de opinião, com as últimas decisões no
Congresso e o papo de Lula?
Fonte: Por Gilberto Menezes Côrtes, no Jornal do
Brasil
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