Governo Lula – Ano I – economia
Transcorrido um ano do terceiro mandato de Luiz
Inácio Lula da Silva, cumpre avaliar a estratégia adotada diante do confronto
das classes, bem como imaginar os desdobramentos que anuncia. Após ter vencido
à frente de um heterogêneo ajuntamento de salvação democrática, o presidente
decidiu entoar a melodia lulista clássica: fazer, no atacado, concessões à
burguesia e, no varejo, buscar as brechas por meio das quais consiga
beneficiar, em alguma medida, os segmentos populares. Só que o tema vem se
desenvolvendo em andamento lentíssimo, tornando duvidosos os movimentos
previstos para os períodos eleitorais de 2024 e 2026.
Quando assumiu a Presidência duas décadas atrás, a
combinação de pacto conservador e reforma gradativa soou desconcertante e
inovadora. Em vez de romper com o legado neoliberal de FHC, rejeitado pelas
urnas, o assumiu. Porém, aos poucos, foi incorporando ao esquema vigente
iniciativas que elevavam o padrão de consumo da parte desprovida da sociedade.
A ampliação das transferências de renda por meio do
programa Bolsa Família, a criação do crédito consignado e os aumentos reais e
regulares do salário-mínimo constituíram o tripé fundamental da inflexão
popular. O resultado melhorou a vida da maioria pauperizada sem confrontar os
fundamentos da ordem neoliberal.
No longo prazo, uma pletora de contradições
caracterizou o que chamamos de “reformismo fraco”. Para lembrar algumas: o
aumento da capacidade aquisitiva dos trabalhadores não foi acompanhado de
melhoras equivalentes na provisão pública de saúde, educação fundamental e
média, transporte e segurança. O maior acesso ao diploma universitário não teve
equivalente em bons empregos, em geral vinculados, direta ou indiretamente, ao
dinamismo da produção industrial. As festejadas escolhas do Brasil como sede da
Copa e das Olimpíadas ameaçou inúmeras comunidades, afetadas por obras de
infraestrutura padrão FIFA.
Na esfera eleitoral, o reformismo fraco, no
entanto, provocou um decisivo realinhamento, com os pobres aderindo em massa ao
lulismo, enquanto as camadas médias se agrupavam em torno do PSDB (Partido da
Socialdemocracia Brasileira). Até 2014, o modelo foi chancelado nas urnas,
garantindo quatro vitórias seguidas para o PT (Partido dos Trabalhadores) na
disputa presidencial. No momento de auge, um sonho rooseveltiano de mudança sem
conflito conquistou múltiplos corações e mentes.
Daí em diante, por razões cuja explicação não cabem
aqui, um conjunto de insatisfações, tanto em andares superiores quanto
inferiores, se fizeram notar, e as instituições começaram a ferver. Do
Judiciário emergiu uma gigantesca onda, a qual retomou facetas de junho de
2013, movida pelo combate ao espectro da corrupção. O PSDB, faminto de poder,
se rebelou contra os preceitos constitucionais, contribuindo para um
impedimento ilegítimo. Entidades empresariais, unidas contra Dilma Rousseff,
clamaram por uma orientação econômica antipopular. O MDB liderado por Michel
Temer e Eduardo Cunha colocou a Câmara a serviço do impeachment sem crime de
responsabilidade, sintetizando na “ponte para o abismo” o ângulo reacionário
sobre os caminhos a seguir.
Na crise do lulismo, durante quase uma década
(2015-2022) vivemos a típica reposição do atraso que estudiosos da história
pátria identificaram em 1964. As esperanças de justiça social foram soterradas
sob os escombros dos ganhos obtidos na fase anterior. À regressão no plano
societário somou-se o retrocesso político, com os militares voltando a
ambicionar a direção do Estado, prática abandonada desde a vigência da
Constituição de 1988.
Expressivo contingente da sociedade, frustrado,
passou a questionar não apenas o mandatário de plantão, mas as próprias regras
do convívio civilizado, amplificando impulsos antidemocráticos de parcela da
classe dominante. Um deputado medíocre da extrema-direita foi alçado à
Presidência, colocando o Brasil em linha com as piores tendências
internacionais. Após tamanha demolição, contudo, o lulismo foi chamado de volta
para gerir as ruínas que sobraram.
·
Um arcabouço paralisante
Na reentré da temporada lulista, Lula delegou a
Fernando Haddad o papel de fazer as concessões exigidas pelo capital,
reservando-se o rol de buscar as brechas por onde precisam passar as
necessidades do povo. Ainda em dezembro de 2022, após driblar a pressão
austeritária, habilmente indicando Geraldo Alckmin para presidir a equipe de
transição, Lula conseguiu aprovar uma folga de R$145 bilhões no Orçamento de
2023, com a chamada PEC da Transição. Dessa maneira, evitou espremer as
transferências de renda e a Farmácia Popular.
Em 1º. de janeiro, no dia da posse, editou Medida
Provisória que ampliava o Auxílio Brasil e, em março, lançou o Bolsa Família
2.0, com o mínimo de R$600 reais por lar beneficiado, ao que somou R$150 por
filho de até 7 anos. Lula compensou a lealdade da base subproletária e
blindou-se da rápida queda de aprovação que vêm fragilizando inícios de mandato
progressistas na América Latina. Destarte, não se deve subestimar a relevância
do que parte da imprensa, ecoando a resistência das elites, nomeou de “PEC da Gastança”.
Só que a manobra teve contrapartidas. A maioria
fisiológica que comanda o Legislativo usou a PEC da Transição para aumentar o
percentual destinado às emendas obrigatórias dos parlamentares de 1,2% para 2%
das receitas correntes líquidas, reforçando as tendências semipresidencialistas
que crescem pelo menos desde que Eduardo Cunha chefiou a Câmara. Tal viés reduz
a margem de manobra lulista, que agora precisa preservar a peça orçamentária
não apenas da pressão dos que desejam austeridade, mas também do avanço do
fisiologismo parlamentar.
O central, contudo, é que a pressão dos
capitalistas foi atendida no chamado arcabouço fiscal lançado no fim de março.
Revelou-se, então, um plano que, na prática, colocava o reformismo fraco em
marcha lenta. Ao contrário do teto de gastos outorgado durante a era Michel
Temer, o qual congelava as despesas em termos reais, a nova regra permite
crescimento do dispêndio, desde que as receitas tributárias cresçam. Ocorre que
tal aumento foi limitado a 70% dos ganhos na receita, respeitado, nota bene, um
máximo de 2,5% de expansão anual dos gastos públicos.
Assim, forçando as despesas a crescerem mais
lentamente do que a arrecadação, a norma proposta seguiu embutindo uma redução
gradual do tamanho do Estado, a exemplo da famigerada lei anterior. Como bem
notou o economista Pedro Paulo Bastos, a proposta sequer é compatível, ao longo
do tempo, com valorização efetiva do salário-mínimo que acompanhe o PIB e com a
manutenção dos pisos constitucionais da educação e da saúde. Se as contradições
típicas do lulismo implicavam problemas no longo prazo, agora o próprio curto
prazo ficou ameaçado.
As concessões à Faria Lima foram mais longe. O
Executivo comprometeu-se com um arrojado ajuste (colocado em dúvida pelo
próprio presidente no final de outubro), estabelecendo meta de déficit primário
zero em 2024 e superávits de, respectivamente, 0,5% e 1,0% do PIB no biênio
seguinte. Considerando que o déficit em 2023 deve superar 1% do PIB, zerá-lo
representaria um corte expressivo, superior ao realizado na encarnação lulista
inicial (2003), cujo impacto foi um dos elementos que acabou por levar à criação
do PSOL.
O discurso oficial esforça-se por atenuar o caráter
austero do plano, argumentando que o ajuste não recairá, como é hábito, nos
gastos, mas nas receitas, em particular ao incluir os ricos na tributação. Com
efeito, providências positivas foram tomadas: a tributação de fundos exclusivos
e offshore, a mudança da regra sobre o voto de confiança no CARF (Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais), o que dá maior poder ao Executivo nos
contenciosos tributários com empresas, a chamada MP das subvenções, que busca
atenuar a erosão da capacidade arrecadatória do governo, e a revisão dos
chamados gastos tributários, na maior parte subsídios e benefícios fiscais
concedidos a setores específicos.
Esse lado avançado do arcabouço é extremamente
bem-vindo, pois atua sobre a regressividade do sistema brasileiro, sobretudo se
vier acompanhado de uma reforma da tributação sobre a renda e o patrimônio.
Ademais, a redução do déficit via aumento de taxação sobre os ricos tende a ser
menos nociva ao crescimento do que o corte de gastos. No entanto, no melhor
cenário, isso apenas reduzirá a austeridade, sem revogá-la.
A razão de fundo para o caráter paralisante do
arcabouço está no limite de 2,5% de aumento dos gastos públicos. Ainda que se
logre obter receitas advindas de taxações inéditas, de modo a abrir espaço para
elevar as despesas, a barreira colocada representa um freio inexistente nas
experiências lulistas anteriores, independentemente da meta acordada.
Os números a seguir falam por si. Entre 2003 e
2010, os gastos primários como proporção do PIB aumentaram de aproximadamente
15% para 18%, criando as condições para implantar o programa Bolsa Família e
valorizar o salário-mínimo em 66% em termos reais. De acordo com simulação
realizada pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (MADE) da
Universidade de São Paulo, contudo, se o arcabouço tivesse sido adotado em
2003, os gastos do governo não teriam aumentado, porém diminuído para 11% do PIB.
Em suma, o lulismo, nesta terceira exibição, projeta-se em câmara lenta.
O contraste com o passado é nítido. Ao se observar
a taxa de crescimento do dispêndio da União, vê-se que nos governos Lula 1 e 2
houve um crescimento real de 7,2% ao ano. Trata-se de um ritmo quase três vezes
mais rápido do que aquele permitido, na melhor hipótese, pelo arcabouço. Mesmo
durante FHC 2 e Dilma 1, os gastos cresceram duas vezes mais rapidamente do que
o previsto pelo arcabouço.
O debate aberto por Lula sobre o resultado primário
para o próximo ano, como veremos abaixo, é importante para evitar que em 2024
ocorra um colapso das funções estatais. Mas não altera o fato de que as
possíveis brechas abertas pela tributação dos ricos – em si mesma justa e
progressista – se mostram aquém das existentes no lulismo tradicional. As
margens de manobra ficaram tão apertadas que praticamente bloqueiam a passagem
do bloco popular pela avenida.
·
Reflexos políticos
Seria plausível argumentar, contudo, que o
crescimento de cerca de 3% ao ano observado em 2023 contraria a ideia de um
lulismo slow motion. O problema é que não estamos vivendo, ainda, sob os
efeitos restritivos do arcabouço. A presente aceleração deveu-se, em parte, aos
gastos ocorridos em 2022 – fruto do uso que Jair Bolsonaro fez do orçamento
como instrumento eleitoral –, somados àqueles viabilizados pela PEC da
Transição, conforme mostramos acima, e, por fim, à bonança agrária trazida por
uma safra recorde em 2022-2023.
Com o regime fiscal ora proposto, esse impulso
governamental será abandonado, o que explica a declaração de Lula segundo a
qual o déficit “não precisa ser zero”. Cumprindo o script autoatribuído, o
presidente desagrada o mercado em busca de ampliar as brechas disponíveis.
Depois que Lula dixit, a bolsa caiu e o dólar subiu. O capital cobrava o
compromisso com a austeridade e, por enquanto, o governo cedeu, mantendo a meta
inalterada. A disputa continua, no entanto, com o PT assumindo o protagonismo
da crítica à austeridade, sendo possível que a meta se veja alterada no próximo
ano. Caso isso aconteça, irá se reduzir a magnitude do ajuste e será menor o
efeito negativo da política fiscal restritiva sobre a renda. Porém, será
suficiente?
Comparado ao chileno Gabriel Boric, que teria
perdido 22 pontos percentuais de aprovação no primeiro ano de governo (Folha de
S. Paulo, 11/02/2023), e ao colombiano Gustavo Petro, cuja aprovação teria
recuado 23 pontos percentuais no mesmo período (Rádio France Internacional,
07/08/2023), Lula teve queda de apenas 11 pontos percentuais, entre a
expectativa favorável de 49% no início do mandato e a aprovação de 38% em 5 de
dezembro (Datafolha). Isto é, diante de uma nação que segue polarizada, o
petista logrou não despencar, embora esteja algo abaixo da marca que alcançou
tanto em dezembro de 2003 (42%) quanto, sobretudo, em dezembro de 2007 (50%).
A relativa estabilidade na aprovação governamental
até aqui será agora, contudo, confrontada com a economia em desaceleração. A
expectativa das instituições financeiras é de que o crescimento do PIB em 2024
deverá ser em torno de 1,5% (relatório Focus de 8/12/2023). Tal previsão talvez
seja pessimista demais, pois tanto o Instituto de Pesquisas Econômicas
Aplicadas (IPEA) do Ministério do Planejamento quanto a Organização para a
Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) projetam resultado algo superior.
No entanto, a visão comum é de baixa com respeito a 2023.
O Planalto sabe que o feel good factor é fator
chave em anos eleitorais. Daqui a dez meses, filtradas as idiossincrasias
locais, vai se aferir o estado de espírito geral da população a partir dos
prefeitos e vereadores eleitos. Uma derrota em colégios de grande visibilidade
criará um clima ruim para a largada da eleição de 2026. Daí decorre a luta das
últimas semanas em torno do arcabouço, sem contar que os parlamentares seguem
pressionando por suas emendas e minando a capacidade arrecadatória do governo,
especialmente com a prorrogação das desonerações.
Se focarmos em São Paulo, que costuma decidir a
avaliação do ganha-perde municipal, há chance de disputa acirrada. A boa
campanha de Guilherme Boulos (PSOL) em 2020 e a vitória de Lula em 2022 no
perímetro da cidade dão perspectivas promissoras ao lulismo em território
paulistano. Por outro lado, o tradicional conservadorismo existente nos
estratos médios locais faz prever uma candidatura competitiva no campo
direitista. Neste cenário, a economia pode fazer a diferença entre a turma do
meio, que costuma decidir o pleito.
Em outra dimensão, cabe ter em conta que as
incertezas da dinâmica global são enormes. Graves tensões geopolíticas,
finanças descontroladas e eventos climáticos extremos tendem a criar
turbulências que repercutem na periferia. É verdade que, desde o final de 2022
as taxas de inflação observadas nos EUA, na zona do Euro e no Reino Unido têm
caído e os juros devem acompanhar, reforçando o efeito da queda em curso dos
juros brasileiros. Com sorte, criar-se-á alguma possibilidade de recuperação da
liquidez no planeta e estímulo ao crescimento ao sul do Equador.
Há, igualmente, quem deposite fichas na
eventualidade de uma ajuda chinesa, decorrente da crescente bipolaridade
geopolítica. Pode acontecer, mas é improvável que qualquer empurrão externo
venha em magnitude necessária para mover uma economia continental como a
brasileira. Daí que a cadência arrastada do lulismo de terceira geração poderá
comprometer tanto 2024 quanto a largada de 2026, abrindo caminho para a
rearticulação do campo conservador.
Para não dizer que não falamos das flores, se Lula
1 e 2 estimulou sonhos de mudanças indolores, o atual lulismo em câmera lenta
tirou a superação das mazelas históricas de cena. Alguns observadores
argumentam que, na conjuntura em curso, a prioridade deve ser mesmo salvar a
democracia, deixando o resto para depois. O problema é que não será viável
estabilizar a democracia no país sem transformações estruturais e a versão
ralentada da estratégia original não propicia sequer o antigo devaneio com
elas. Trata-se, todavia, de assunto para outro texto.
Fonte: Por André Singer e Fernando Rugitsky, para
Correio da Cidadania
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