quarta-feira, 8 de novembro de 2023

SEM NOME, SEM IDENTIDADE: Registro de recém-nascidos ainda é um desafio para indígenas

Além das inúmeras dificuldades sofridas pelos indígenas na luta pelo território e pela sobrevivência, eles também enfrentam outras tantas para o registro civil de seus filhos recém-nascidos no Brasil. Alguns cartórios de registro recusam o nome escolhido pelos genitores ou exigem a apresentação do Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (Rani) para comprovação da origem indígena da pessoa.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) dispõem da Resolução Conjunta nº 3, de abril de 2012, para regulamentar o assento de nascimento de indígenas no Brasil, que, embora necessite de atualização – conforme já requerido pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi)[1] –, supre, ou deveria suprir, parte dos entraves criados para a efetivação do registro.

Quanto ao nome escolhido para o recém-nascido e a referência ao povo ao qual pertencem, o art. 2º da referida Resolução afasta a hipótese de recusa do oficial de registro civil nos casos em que o prenome escolhido pelos pais possa ser compreendido como uma exposição da pessoa ao ridículo. Vejamos:

“Art. 2º. No assento de nascimento do indígena, integrado ou não, deve ser lançado, a pedido do apresentante, o nome indígena do registrando, de sua livre escolha, não sendo caso de aplicação do art. 55, parágrafo único da Lei n.º 6.015/73.

•        1º. No caso de registro de indígena, a etnia do registrando pode ser lançada como sobrenome, a pedido do interessado.

•        2º. A pedido do interessado, a aldeia de origem do indígena e a de seus pais poderão constar como informação a respeito das respectivas naturalidades, juntamente com o município de nascimento.

•        3.º A pedido do interessado, poderão figurar, como observações do assento de nascimento, a declaração do registrando como indígena e a indicação da respectiva etnia.

•        4º Em caso de dúvida fundada acerca do pedido de registro, o registrador poderá exigir o Registro Administrativo de Nascimento do Indígena – RANI, ou a presença de representante da FUNAI.”

Essa recusa é inaceitável, visto que o nome é de livre escolha dos genitores. Nesse ponto, a Resolução é clara. Portanto, não se trata de lacunas normativas, mas sim de dificuldades criadas para a realização do registro.

Um ato que seria simples para qualquer família se torna absolutamente moroso e burocrático quando se trata de um recém-nascido indígena. As dificuldades enfrentadas pelos indígenas no registro civil de seus filhos evidenciam uma distinção no tratamento, o que viola garantias fundamentais e a igualdade formal fixadas na Constituição (art. 5º).

Outro problema recorrente é a exigência da apresentação do Rani para a comprovação da origem indígena. Na Resolução Conjunta nº 3, tal exigência se aplicaria apenas nos casos onde haja fundada dúvida acerca do registro. Ou seja, ela deve estar devidamente embasada pelo Cartório.

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é expressa ao estabelecer que “a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção” (Art. 1º, item 2).

Compreensão semelhante à da OIT foi adotada pelo CNJ na Resolução 454/2022, que trata do acesso de indígenas ao Poder Judiciário. Nessa Resolução, impõe-se a transcrição do § 1º do art. 4º: “§ 1o Para efeitos desta Resolução, indígena é a pessoa que se identifica como pertencente a um povo indígena e é por ele reconhecido”.

Com efeito, o direito à autoidentificação e autodeclaração dos povos indígenas encontra-se consolidado no ordenamento jurídico brasileiro, seja na Constituição Federal ou nos tratados internacionais internalizados no Brasil, embora ainda ocorra resistência na efetivação desses direitos.

Em situações concretas, verificamos que, entre a negativa de registro ou suscitação de dúvida pelo oficial e a espera de sentença judicial para determinar ao Cartório a realização do registro, por vezes, o recém-nascido fica meses sem ter oficializado o seu registro de nascimento. Diante do entrave criado, ocorre também que registros são realizados sem a anotação da condição de indígena.

Quando os genitores se opõem à resistência do oficial, acabam necessitando de providências da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), da atuação do Ministério Público ou Defensoria Pública para defender os direitos fundamentais de seus filhos e os seus direitos como indígenas.

Além da violação aos direitos civis, decorrente do direito ao nome previsto no art. 16 do Código Civil, tais práticas desrespeitam a dignidade humana (arts. 1º, inc. III da CF), que ganha ainda maior relevo por se tratar de criança, que goza da absoluta prioridade na proteção integral de seus direitos (art. 227, CF).

Já ao nascer os indígenas vivenciam a discriminação em relação ao seu nome, ao seu lugar de pertencimento, às suas origens, aos costumes, línguas, crenças e tradições da comunidade da qual descende, uma vez que até mesmo o seu nome e etnia se tornam objetos de dúvida e questionamento pelo Estado. Revelando um preconceito ainda existente em relação aos povos indígenas.

O Rani, documento fornecido pela Funai, não é o único meio capaz de fazer a comprovação da origem indígena da pessoa, podendo ser inclusive comprovado, pela Declaração de Nascido Vivo (DNV). A nosso ver, é suficiente a autoidentificação nos termos fixados pela Resolução 454 do CNJ.

Além dessa Resolução, são diversas as garantias previstas no ordenamento jurídico brasileiro que o recém-nascido indígena dispõe para a defesa de seus direitos: a Constituição Federal, a Convenção sobre os Direitos das Crianças, a Convenção 169 da OIT e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Diante desse cenário e de tais mandamentos, impõe-se ao Estado não apenas a assistência e proteção adequadas para os direitos dos recém-nascidos indígenas que por meio de sua família, optem pelo registo civil, mas que não crie obstáculos para a preservação dos povos e da cultura indígena. É de fundamental importância que os que dificultam injustificadamente o registro sejam de alguma forma responsabilizados.

Certo é que o CNJ e o CNMP, oportunizada a participação de organizações indígenas e indigenistas, estão com o desafio de atualizar a Resolução Conjunta nº 3, a fim de tornar ainda mais pleno o direito à autoidentificação dos povos indígenas quando do registro civil.

 

·         Povos indígenas se mobilizam contra ruralistas, que prometem derrubar veto ao marco temporal

 

A Articulação Nacional dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) convocou indígenas de todo país para se mobilizar a favor da manutenção dos vetos presidenciais ao marco temporal. A sessão conjunta do Congresso que irá decidir sobre o tema será na próxima quinta-feira (9). A entidade pede protestos nas aldeias, nas cidades ou mesmo virtuais, nas redes sociais.

“Sabemos de toda a pressão que a bancada ruralista está fazendo junto aos parlamentares e também ao governo para derrubar os vetos. Por isso temos feito uma estratégia de incidência de agendas com parlamentares, principalmente do Senado para tentar vencer essa questão”, disse Kleber Karipuna, coordenador da Apib.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vetou os pontos inconstitucionais do projeto de lei, entre eles o critério de tempo para validar demarcações. Mas manteve alguns pontos considerados como retrocessos por indígenas e indigenistas, por permitirem a abertura de áreas indígenas ao agronegócio.

Mesmo assim, a bancada ruralista não ficou satisfeita. O setor mais poderoso do Congresso quer ver os retrocessos nos direitos indígenas implementados de forma integral. Por isso, parlamentares financiados pelo agronegócio já afirmaram que pretendem derrubar os vetos presidenciais.

Bancada ruralista diz que Lula “enfrenta” o Congresso com veto ao marco temporal

O deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), presidente da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), nome oficial da bancada ruralista, classificou os vetos de Lula ao marco temporal como um “enfrentamento” ao Congresso.

“O governo fez a opção de nos enfrentar e governar com o Supremo [Tribunal Federal]. A vontade da população é expressa pela votação dos deputados federais e senadores. A partir do momento que o governo opta por não respeitar isso, ele tem bônus com a base dele e ônus com o resto do Congresso”, disse o parlamentar ao Estadão.

Para derrubar os vetos presidenciais, a sessão conjunta do Legislativo terá que ter maioria absoluta, ou seja, pelo menos 257 votos dos deputados e 41 dos senadores. A tese ruralista foi aprovada com 283 votos na Câmara e 43 no Senado, mais do que o necessário para a derrubada dos vetos.

Se nada mudar até o dia 9 de novembro, lideranças indígenas avaliam nos bastidores que os vetos serão derrubados, reinstituindo o marco temporal das terras indígenas. Pela tese jurídica, só podem ser demarcadas terras ocupadas por indígenas na data da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988.

Câmara refratária às reivindicações indígenas

A Apib, que congrega organizações indígenas de todas as regiões do país, acredita que há chances dos vetos serem mantidos. Mas veem a Câmara muito mais refratária às reivindicações dos indígenas do que o Senado.

“Há uma possibilidade grande de reverter esses alguns pontos ou quase sua totalidade no Senado, já que as casas votam separadamente para obter a maioria absoluta”, afirmou o coordenador Kleber Karipuna.

“Para além disso, estamos chamando a mobilização nacional em todo o Brasil. Os parentes devem marcar presença, fazer posicionamentos em atos e manifestações pela manutenção do veto: Congresso, respeite os vetos!”, afirmou a liderança indígena.

 

Fonte: Por Paloma Gomes, Rafael Modesto e Nicolas Nascimento, no Le Monde/RBA

 

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