terça-feira, 7 de novembro de 2023

Da Covid-19 ao controle da China: como a vida noturna “acabou” em Hong Kong

À medida em que clientes circulam de um bar deserto para outro, fica difícil acreditar que as ruas quase vazias de Hong Kong já estiveram entre as mais badaladas da Ásia.

É quinta-feira à noite — período geralmente movimentado — mas não há multidões para as pessoas cruzarem, nem pessoas pelas calçadas e muito menos necessidade de esperar para se sentar em um restaurante.

Mas nem sempre foi assim. Apesar de parecer improvável, Hong Kong já foi a estrela principal da vida noturna na Ásia: uma cidade famosa e livre, iluminada por neon, que nunca dormia, onde o Oriente encontrava o Ocidente e as pessoas viravam a noite nos bares – mesmo em dias de semana.

Esse retrato foi transmitido para todo o mundo em 1997, quando a Grã-Bretanha entregou a soberania de sua ex-colônia à China. Na ocasião, os habitantes locais e visitantes deram as boas-vindas à nova era com uma rave de 12 horas com Boy George, Grace Jones, Pete Tong e Paul Oakenfold.

A mensagem da China à altura era de que, mesmo com a mudança que estava ocorrendo em Hong Kong, seu espírito de “vale-tudo” permaneceria.

Foi prometido à cidade um elevado grau de autonomia para os próximos 50 anos e assegurado que os seus costumes ocidentais iriam continuar. Ou, como disse o então líder da China, Deng Xiaoping: “os cavalos ainda correrão, as ações ainda chiarão e os dançarinos ainda dançarão”.

E por muito tempo após a partida dos britânicos, a dança realmente continuou.

Hong Kong manteve não só o espírito do capitalismo, mas muitas outras autonomias desconhecidas no resto da China – as liberdades políticas de imprensa, de expressão e o direito de protestar.

Até mesmo os apelos a uma maior democracia foram tolerados – pelo menos por um tempo.

Mas, após pouco mais da metade desses 50 anos, a promessa de Deng agora soa vazia para muitos.

Espasmos de protestos em massa – contra a legislação de “educação patriótica” em 2012, o movimento Occupy Central em 2014 e as manifestações pró-democracia em 2019 – levaram a China a restringir as liberdades civis com uma Lei de Segurança Nacional.

Desde então, centenas de figuras pró-democracia foram presas e milhares de residentes deixaram o país.

Essa repressão e o enfraquecimento das liberdades em Hong Kong têm sido bem documentados, mas somente há pouco tempo é que começou a surgir um efeito secundário, menos noticiado, da repressão na China: nas ruas e nos bares, nos clubes da moda e nas discotecas com estrelas Michelin. restaurantes, a cidade que nunca dormia começou a cochilar.

•        Cidade vazia

A vida noturna da cidade se tornou uma sombra pálida do seu apogeu como um ímã regional de descanso e relaxamento, quando sua reputação residia no fato de ser mais fácil de navegar do que o Japão, menos chata do que Cingapura e mais livre do que a China continental.

Agora, em paralelo à diminuição das liberdades políticas, o negócio dos bares, outrora prósperos da cidade, aparentemente está “secando”. E embora alguns discutam se a culpa é da política ou da Covid-19, poucos contestam que algo precisa ser feito.

Os bares faturaram cerca de US$ 88,9 milhões (R$ 435,6 milhões, na cotação atual) no primeiro semestre de 2023, queda de 18% em relação ao mesmo período de 2019, de acordo com dados oficiais.

Num esforço para frear a queda, o governo de Hong Kong lançou a campanha “Night Vibes”, com bazares à beira-mar, além de gastar milhões num recente espectáculo de fogos de artifício para celebrar o “Dia Nacional da China” e reintroduzir a dança do dragão, iluminada por incensos, no bairro de Tai Hang.

Esses esforços atraíram uma mistura de críticas e chacotas – muitos apontaram a ironia da cerimônia de abertura da campanha, feita com dois leões brancos, cor associada a funerais na cultura chinesa.

A campanha precisou ser interrompida após a passagem de tufões, além das preocupações com a segurança devido ao uso de fogos de artifício.

Ainda assim, o Chefe do Executivo de Hong Kong, John Lee, insiste que os eventos são um sucesso, dizendo que pelo menos 100 mil pessoas visitaram os bazares e que 460 mil turistas da China continental estiveram presentes no Dia Nacional.

E os leões brancos? As autoridades disseram que, na verdade, eram “fluorescentes”.

Um porta-voz do governo de Hong Kong disse à CNN esta semana que as atividades foram “bem recebidas pelos residentes locais e turistas”.

O Hong Kong Wine & Dine Festival, um evento recente, atraiu 140 mil pessoas. Além disso, os shoppings que apoiaram a campanha “Night Vibes” disseram ter visto “um crescimento no fluxo e na rotatividade de visitantes”, acrescentou.

•        Covid ou repressão?

Há quem aponte o dedo apenas para a Covid-19.

“É óbvio que está pior do que antes. Este é o efeito colateral da Covid, que mudou o modo de vida”, disse Gary Ng, economista do banco de investimento francês Natixis.

E poucos contestam que a Covid cobrou o seu preço.

Durante a pandemia, Hong Kong fez questão de aderir estritamente a uma abordagem de tolerância zero ao estilo da China continental que, embora não tão draconiana, ainda foi extrema o suficiente para expatriar pessoas, que se dirigiram para cidades como Singapura, Tailândia e Japão.

Hong Kong, onde os viajantes que chegavam enfrentavam semanas de quarentena e as mesas dos restaurantes eram limitadas a dois clientes, tornou-se subitamente o país aborrecido, enquanto Singapura – em uma comparação surpreendente – o mais animado.

Sob restrições pandêmicas, a música ao vivo de Hong Kong foi praticamente proibida em locais pequenos por mais de 650 dias.

Por outro lado, há quem diga que Hong Kong está em negação, e que os seus problemas de vida noturna são muito mais profundos do que a pandemia. Se outros lugares se recuperaram, eles dizem, por que não Hong Kong?

Esses observadores acreditam que a resposta da cidade à Covid-19 deveria ser vista através das lentes da liberdade, cada vez mais desaparecida da cidade.

Meses antes do surgimento do vírus, a China havia reforçado o controle sobre Hong Kong, em resposta aos protestos pró-democracia que se espalharam por toda a cidade.

O governo aplicou restrições à liberdade – como a de expressão e de imprensa – que estavam supostamente garantidas.

Canções e slogans considerados ligados aos protestos foram proibidos, memórias de protestos anteriores foram deletadas da Internet, filmes sensíveis censurados e editores de jornais acusados de sedição e conluio com forças estrangeiras.

O governo tem defendido que a aplicação da lei é necessária para que Hong Kong restaure a estabilidade e a prosperidade e impeça o que a China chama de “forças estrangeiras” de se intrometerem na cidade.

“Desaprovamos veementemente e rejeitamos firmemente esses ataques infundados, calúnias e difamações contra a RAEHK [Região Administrativa Especial de Hong Kong] sobre a proteção de tais direitos e liberdades fundamentais em Hong Kong”, disse um porta-voz à CNN.

Mas — os críticos revidaram — nada disso é válido para uma atmosfera onde as pessoas vão querer sentar, relaxar e conversar.

“As pessoas podem sentir que precisam se autocensurar ao bater um papo em restaurantes ou bares porque, quem sabe quem pode estar ouvindo. Eles podem muito bem ficar em casa para a mesma conversa, onde se sentem seguros”, disse Benson Wong, uma das pessoas que deixou Hong Kong.

Wong, um ex-professor associado especializado em política local, disse que costumava comer fora em barracas ao ar livre, onde as pessoas falavam livremente sobre tudo, desde fofocas de celebridades até política.

Agora, porém, disse ele, “ninguém se sentirá feliz se tiver que ter cuidado com tudo o que fala”.

•        Para onde foram todos?

Quer tenha sido a Covid-19 ou a repressão — ou alguma combinação dos dois — fato é que ocorreu um êxodo de cidadãos de classe média de Hong Kong e de expatriados nos últimos anos.

Em 2022, a cidade registrou a saída de 60 mil residentes, o que reduziu o número de residentes habituais para 7,19 milhões no fim do ano – queda de quase 144 mil pessoas em relação ao mesmo período de 2020.

Grande parte deles são habitantes de Hong Kong que conseguiram vistos especiais ou cidadania oferecidos por países ocidentais, como a Grã-Bretanha, o Canadá e a Austrália, logo após a repressão da China.

Mas também tem havido uma constante saída da população expatriada que, como uma ressaca pós-colonial, permaneceu na cidade muito depois da partida da Grã-Bretanha.

Elas eram, em grande parte, profissionais em finanças e direito.

Os meios de comunicação locais estão agora cheios de notícias de bancos e escritórios de advocacia que transferiram os seus locais de trabalho, parcial ou totalmente, para centros financeiros rivais, como Singapura.

Infelizmente, para os proprietários de bares e restaurantes, os dois grupos que estão saindo estão entre seus maiores consumidores.

“Os expatriados mudaram-se, assim como [os habitantes de Hong Kong] com rendimentos mais elevados. É claro que a saída deles terá um impacto”, disse Ng, da Natixis.

Cada vez mais, estes dois grupos estão sendo substituídos por cidadãos da China continental, que representam agora mais de 70% dos 103 mil vistos de trabalho ou de pós-graduação concedidos desde 2022, segundo o Departamento de Imigração.

Os migrantes recentemente dominantes, salientam os economistas, tendem a ter hábitos de consumo muito diferentes.

Yan Wai-hin, professor de economia da Universidade Chinesa de Hong Kong, disse que a robusta vida noturna da cidade era sustentada, em grande parte, por uma base de expatriados e de moradores de classe média mergulhados na antiga cultura de desfrutar de uma boa bebida gelada após um longo dia de trabalho.

“A composição da população é diferente agora”, disse Yan. “Agora temos mais imigrantes do continente, e eles tendem a adorar voltar para a China continental para gastar.”

•        Os negócios são desafiadores

No bairro noturno mais famoso de Hong Kong, Lan Kwai Fong, a música pode estar diminuindo, mas não parou completamente.

No entanto, durante uma visita recente da CNN, poucas diferenças distinguiam a área de qualquer outra rua.

“Tem sido muito desafiador até agora e nem de longe voltou ao normal”, disse Richard Feldman, que dirige o bar Petticoat Lane no California Tower, em Lan Kwai Fong.

Presidente da Associação Soho, que administra negócios na cidade há mais de três décadas, Feldman disse que os negócios foram ligeiramente melhores entre sexta e sábado do que durante a semana e que lojas com boa reputação foram menos afetadas.

Mas, em geral, ele também disse que o número de ocidentais estava diminuindo, naquele que costumava ser o local preferido dos expatriados.

“Era uma mistura de expatriados e profissionais locais que saíam para beber e dançar tarde da noite. Mas essa demografia diminuiu bastante no ano passado”, disse outra proprietária de bar, Becky Lam. “Estamos conseguindo mais clientes no continente.”

Lam, co-fundador de vários bares e restaurantes de Hong Kong, disse que embora os chineses do continente estivessem dispostos a gastar, eles tendiam a orbitar em torno dos restaurantes e eram menos propensos a ficar fora de casa até tarde.

Nos dias de semana, os bares que ela administra recebem apenas metade dos clientes em comparação à pré-pandemia.

“Eles vão se contentar com os Happy Hours e pronto. Não estamos falando das 2h às 3h”, disse ela.

•        Contra todas as probabilidades

Existem outros problemas que corroem o setor da vida noturna.

“Os hábitos das pessoas mudaram desde a Covid, já que muitas estão acostumadas a ficar em casa assistindo TV e Netflix”, disse Feldman.

Durante a pandemia, Hong Kong impôs uma proibição prolongada de bares e serviços de jantar para impedir reuniões sociais, no que muitos consideraram um aceno à estratégia “Covid-zero” da China continental.

Isso afetou lojas e shoppings, que encurtaram o horário de funcionamento por falta de clientes.

Em muitos casos, os horários reduzidos tornaram-se o novo normal, com algumas lojas fechando às 21h, o oposto do padrão pré-Covid de 22h30.

Conspirando contra a vida noturna da cidade, está também o dólar forte de Hong Kong em comparação com o yuan chinês, o que afeta a forma como as pessoas gastam dinheiro.

“As pessoas do continente têm menos probabilidade de vir aqui para fazer compras, enquanto as pessoas de Hong Kong vão para Shenzhen para gastar o seu dinheiro”, disse Marco Chan, chefe de pesquisa da empresa imobiliária e de investimentos CBRE.

Embora os turistas do continente pensem duas vezes antes de ir para Hong Kong, muitos moradores da cidade têm passado os fins de semana na China continental, onde muitos serviços custam uma fração do preço, disse Chan.

•        “Era internacional, agora é doméstico”

Conhecido como o “Padrinho de Lan Kwai Fong”, Allan Zeman – o empresário que transformou a pequena praça do distrito central de Hong Kong num famoso centro de vida noturna – tem uma posição mais otimista e insiste que os negócios não estão tão ruins quanto parecem.

Ele estima que os clientes da China continental representam agora 35% dos clientes em Lan Kwai Fong e diz que eles gastam muito.

“Eles vão a um clube, como o California Tower no telhado, e gastam cerca de 400 mil a 550 mil dólares de Hong Kong [R$ 250 mil a R$ 344 mil] apenas em bebidas”, disse.

Para ele, a moeda forte de Hong Kong e a relativa falta de voos de entrada em comparação com a era pré-Covid que estão atrasando a retomada da cidade. “Acho que é temporário”, disse ele.

Mas o dono do bar, Lam, disse que Hong Kong precisa reexaminar a sua abordagem regulatória, se quiser prosperar novamente.

Lam apontou a remoção das famosas luzes de néon da cidade, em nome da segurança, como um exemplo da atual abordagem equivocada.

Ela afirmou ainda que seu bar, Shady Acres, foi orientado a atender os clientes apenas em ambientes fechados, além de trancar todas as portas e janelas após às 21h, como parte dos requisitos da licença de funcionamento.

“Esse tipo de obstáculo é realmente grande em Hong Kong”, disse Lam. “Mas olho para as nossas cidades vizinhas, como Bangkok, Xangai e Taipei. Essas cidades têm uma vida noturna emocionante, pois realmente promovem a diversão noturna com música, arte de rua e jantares.”

Feldman, de Petticoat Lane, deu outra opinião. “Hong Kong costumava ser um destino muito mais internacional. Agora é um destino doméstico”, disse ele.

A cidade, disse Feldman, deveria “fazer tudo o que puder para atrair pessoas não só da China, mas de todo o mundo”.

 

Fonte: CNN Brasil

 

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