Valerio Arcary: Argentina, ainda não é tarde demais
As pesquisas erraram feio mais uma vez. Foram só
pouco mais de dois meses entre as primárias de 13 de agosto passado, e a
eleição de 22 de outubro, mas a surpresa foi grande. Sergio Massa se posicionou
em primeiro lugar contra Milei para o segundo turno, que ocorrerá no dia 19 de
novembro, com uma vantagem de 6%, quando a expectativa era inversa. Mas a
disputa permanece, totalmente, indefinida, e o primeiro turno permitiu somente
ganhar tempo, mas o perigo continua enorme.
(a) a impressionante virada da votação de Massa,
ultrapassando Milei, e chegando a 36,68% ou 3,2 milhões de votos a mais,
repousou, essencialmente, no temor do que representará a ascensão de Milei ao
poder.
(b) Milei alcançou 29,98%, a mesma votação,
essencialmente, que tinha conquistado nas primárias das PASO de agosto
(29,86%), consolidando sua corrente como a nova liderança do campo reacionário.
(c) a derrota de Patrícia Bullrich, candidata
favorita até o terremoto das primárias, que não foi além de 23,8%, menos que os
28% somados de sua votação à de Horácio Larreta, da Frente Juntos por el
Cambio, que une a UCR dos radicais aos Republicanos de Macri em agosto, deve
precipitar uma divisão pública e, irremediável, da Frente.
(d) A FIT-Unidad liderada por Myriam Bregman obteve
uma vitória política-eleitoral, cresceu um pouco mais de 70000 votos em relação
às primárias e, apesar da pressão pelo voto útil no peronismo de Massa, cravou
2,7% e elegeu Cristian Castillo elevando a bancada para cinco deputados
federais, ao lado da própria Myriam, de Romina del Plá, Nicolas del Caño, e
Alejandro Vilca (Jujuy).
>>> Este giro nas condições da disputa se
explica por variados fatores, mas o principal parece ter sido a repulsa e medo
diante do que representa Milei. Foi um giro, porque a linha do peronismo antes
das PASO era polarizar com Patrícia Bullrich, identificada, erradamente, como a
favorita e principal inimiga eleitoral. O principal argumento da campanha
passou a ser a arma das denúncias contra Milei, como o fim de subsídios e
políticas de distribuição de renda, a defesa da gratuidade da educação pública,
e a defesa da nação, entre outros. Podem ter pesado muitas outras razões como:
(a) a mobilização do aparato peronista nas
províncias do interior e, sobretudo, na Grande Buenos Aires;
(b) a apresentação de Massa como uma liderança
equilibrada diante dos achaques loucoides de Milei;
(c) a iniciativa de Massa, batizado pela mídia,
desdenhosamente, de plano “patita” ou dinheirinho, uma eliminação de impostos
sobre salários. Mas o mais importante, e deverá ser decisivo na luta pela
vitória em novembro, é a construção da rejeição a Milei.
>>>> Quais são as semelhanças entre
estas eleições de 2023 na Argentina e a eleição de 2018 no Brasil que Bolsonaro
venceu? As semelhanças na dimensão da estrutura social são:
(a) um contexto de estagnação, e até retrocesso
econômico-social, que bloqueia a mobilidade social, e provoca empobrecimento
abrupto;
(b) um contexto de desgaste do regime e das duas
forças políticas fundamentais que se alternaram no governo nos vinte anos
anteriores, ou seja, o macrismo associado ao radicalismo e o peronismo na
Argentina, e o PT e o PSDB no Brasil;
(c) o contexto de um deslocamento reacionário na
sociedade, expressão de uma mudança desfavorável da relação social de forças,
com o deslocamento da maioria das camadas médias à direita, e até para a
extrema-direita, e de uma divisão nas classes populares.
>>> Quais são as diferenças? Ainda que se
possa estabelecer paralelismos dos ciclos políticos, eleição de Alfonsín e
posse de Sarney, nos anos 1980, eleição de Menem e de FHC, nos 1990, eleição
dos Kirchner e de Lula, na primeira década dos anos 2000 a situação na
Argentina é um pouco distinta da brasileira. Tampouco, a história se repete. Ou
melhor, nem sempre. Essas diferenças são de dupla natureza, conjunturais e
estruturais. As conjunturais são pelo menos cinco:
(a) uma situação emergencial desesperadora em
função da superinflação na Argentina, que não era um tema central em 2018 no
Brasil, embora a denúncia da esquerda como corrupta esteja presente, assim como
a insegurança pública, o que alimenta uma tensão imediata mais intensa, o que, potencialmente,
favorece Milei;
(b) no Brasil, em 2018, Lula não podia concorrer
porque estava preso e, apesar do desgaste do mandato do governo Dilma Rousseff,
era favorito se pudesse, enquanto na Argentina foi Cristina Kirchner quem
decidiu não se candidatar, porque a previsão de derrota parecia incontornável,
mas o peronismo errou o cálculo, e a maioria da esquerda, também, ao subestimar
Milei, e identificar Bullrich como favorita;
(c) Milei se construiu em apenas dois anos, assim
como Bolsonaro entre 2016/18, como porta-voz de um projeto de extrema-direita
de inspiração neofascista, sem um partido nacionalmente, implantado, mas não
tem um apoio institucional nas Forças Armadas, ou uma rede capilarizada nas
camadas médias, como foi a maçonaria, ou das igrejas pentecostais nas
populares, e não deve conseguir apoio da maioria dos radicais que coligaram com
Bullrich;
(d) a representação político-eleitoral reacionária
da direita da burguesia, através de Bullrich, muito pressionada pela violência
ideológica do discurso de Javier Milei, não desmoronou, catastroficamente, como
aconteceu, no Brasil, com o MDB/PSDB, e a votação humilhante de Alckmin, abaixo
de 5%, e não parece que haverá “fuga em massa” para apoio a Milei;
(e) o peronismo não é o PT da Argentina. A
semelhança do discurso de “centro-esquerda” ou de perfil na imagem pública
entre Sergio Massa e Fernando Haddad não autoriza concluir que as forças
sociais que os sustentam sejam iguais. Não são. O peronismo é um partido
burguês, ou seja, uma das expressões históricas de um movimento nacionalista que
tem raízes em frações capitalistas. E Sergio Massa é, simultaneamente,
candidato e Ministro da economia do governo peronista de Alberto Fernandez, ou
seja, está no poder, enquanto em 2018, no Brasil, no palanque da candidatura de
Fernando Haddad não subiu nenhum burguês.
>>> Não podemos, tampouco, diminuir as
diferenças mais estruturais que se explicam por, pelo menos, quatro grandes
fatores:
(a) o primeiro é a longa decadência do capitalismo
periférico argentino, com uma dramática desindustrialização, que mergulhou 40%
da população abaixo da linha pobreza, empobreceu aquela que já foi a mais
robusta classe média do continente, e se manifesta hoje em uma superinflação
superior a 140% ao ano, e numa impagável dívida externa com o FMI, ou seja,
comparativamente, embora a renda per capita argentina ainda seja 30% mais
elevada que a brasileira, vem caindo ininterruptamente;
(b) o segundo é uma relação social de forças estrutural que impõe um impasse
estratégico sobre os destinos da nação, que se traduziu na colossal rebelião
popular do final de 2001 e início de 2002, que derrubou de forma fulminante o
governo De La Rua, um ano depois de eleito; a desconcertante sucessão de outros
quatro presidentes em uma semana e, sobretudo, na força social de choque do movimento
operário e sindical, com taxas de filiação próximas a 40% (enquanto no Brasil
está em 11%), de realizar quarenta greves gerais nos últimos quarenta anos,
entre as mais disciplinadas e impactantes, contra todos os governos, inclusive
os peronistas de Menem e dos Kirchner, além da potência do mais organizado
movimento de trabalhadores desempregados do mundo, as várias organizações
populares de piqueteiros, um arrebatador movimento de mulheres que levou às
ruas gigantescas mobilizações feministas em defesa da legalização do direito ao
aborto, um dinâmico movimento dos povos originários, como ficou provado na
recente explosão de protestos de massas em Jujuy, por exemplo;
(c) o terceiro é que o crescimento da
extrema-direita, embora, ideologicamente, assustador e, politicamente,
vertiginoso tem um teto eleitoral mais baixo, qualitativamente, que aquele
alcançado pelo bolsonarismo no Brasil, porque se mantém viva a memória e o
repúdio dos crimes da ditadura militar que se expressa, todos os anos, no dia
24 de março, na realização, em todo o país, de manifestações colossais, na
escala de centenas de milhares, que se explicam porque, na sequência da
desmoralização das Forças Armadas na derrota da guerra nas Malvinas, a
Argentina viveu um processo de ruptura democrática que passou pela condenação à
prisão, em 1985, dos chefes das Juntas que estiveram à frente dos governos da
ditadura militar e, ainda que durante o governo Alfonsin tivesse sido votadas
as leis de Punto final e Obediência devida, depois da semi-insurreição do ano
2001/02 ocorreu a revogação destas leis.
(d) o quarto é a permanência tardia, porém,
vigorosa do peronismo, um nacionalismo burguês progressista, contemporâneo do
falecido getulismo no Brasil que foi deslocado pelo PT e pelo lulismo, unindo diversas
e, aparentemente, incompatíveis correntes desde reacionários, neoliberais,
social-democratas e até socialistas, como o movimento político que mantém maior
influência nas camadas populares e recolhe, eleitoralmente, a maioria dos votos
da classe trabalhadora.
Ø A motosserra de Javier Milei. Por William Callisson
Tendo liderado a aliança partidária
libertária La Libertad Avanza no Congresso, em 2021, o
político argentino de extrema-direita Javier Milei mais uma vez superou as
expectativas. Nas primárias presidenciais de agosto, obteve 30% dos votos –
derrotando, assim, os candidatos da centro-esquerda da Unidad Ciudadana,
que obteve apenas 27%, e o da centro-direita da Juntos por el Cambio,
que ficou com 28%. Agora, no período que antecede as eleições gerais de 22 de
outubro, Javier Milei está sozinho no topo de todas as pesquisas. A única
incerteza é se ele conseguirá ultrapassar o limite para evitar um segundo
turno.
Para muitos espectadores, a política de Javier
Milei tem sido difícil de classificar. Ele é ex-jogador de futebol
semiprofissional, músico de rock, cosplayer de histórias em quadrinhos, guru do
sexo tântrico e professor de economia. Ele também é um comentarista de
televisão com o rosto vermelho e um meme de internet criado por ele mesmo. A
face desta figura reconhecidamente caricatural é a muleta de inúmeros artigos
de opinião, que o reduzem a uma imitação de Donald Trump, alguém com um
penteado ainda mais excêntrico (seu apelido é “A Peruca”).
Outros veem Javier Milei como mais uma erupção do
fenômeno “populista” amorfo da América Latina. Como afirmou um artigo na Foreign
Affairs, a volatilidade socioeconômica da região tem tendência a produzir
“iconoclastas radicais”: “Milei, Castillo, Bolsonaro, Chávez e Bukele
provavelmente não teriam surgido num cenário mais estável”. Neste
quadro binário – estabilidade liberal versus demagogia populista – todas as
variantes da política “anti-establishment” são agrupadas, sem qualquer atenção
às suas particularidades locais.
Outra linha de comentário centra-se, mais
precisamente, na crescente crise econômica na Argentina. Chegando perto de 120%
ao ano, a inflação está queimando todos os ativos da população mais rica. A
razão da dívida pública/PIB é de cerca de 80% e não existem reservas líquidas
no banco central.
O FMI forçou duras medidas de austeridade como
condição para novos empréstimos, os quais pingam a cada três meses. O mercado
imobiliário não funciona em pesos argentinos, mas em dólares americanos, que
são muitas vezes difíceis e caros de adquirir através do mercado negro, onde o
dólar americano é chamado de “azules”.
O mercado de trabalho pós-pandemia é precário e
cada vez mais flexibilizado, com um grande setor informal caracterizado pelo
excesso e não pelo subemprego: para muitos trabalhadores, os múltiplos empregos
e o trabalho temporário são um meio necessário de sobrevivência. Entretanto, o
financiamento privado está a aumentar as dívidas das famílias, os avanços
anteriores à pandemia na igualdade de gênero estão a ser revertidos e os preços
elevados estão a travar o ímpeto da organização da classe trabalhadora e dos
movimentos sociais.
O fato de uma pluralidade de eleitores poder
rebelar-se contra um establishment partidário que administra
este tipo de crise não é nenhuma surpresa. A dívida pública explodiu pela
primeira vez sob o governo conservador de Mauricio Macri, em 2015, e permaneceu
mais ou menos estável sob a administração peronista de Alberto Fernández e
Cristina Fernández de Kirchner. Também não é surpreendente que tal mensagem “populista”
se alastre na população. Mas uma questão permanece: por que Javier Milei
aparece nesta conjuntura; o que sua eventual vitória pode significar para o
futuro do país?
Em comícios eleitorais que também funcionam como
concertos punk, Javier Milei combina um credo hiperindividualista de “vida,
liberdade, propriedade” com uma denúncia populista da “casta política”. Ele
começa e termina a maioria dos discursos com seu bordão: “viva a liberdade,
caramba”. Seu público adorado é formado principalmente por homens que vivem
online, muitos deles entusiastas do Bitcoin.
São, no entanto, eleitores de primeira viagem.
Javier Milei lhes promete que irá “incendiar” o banco central, dolarizar a
moeda, eliminar a maioria das agências estatais e privatizar empresas públicas.
Assim como descreve as alterações climáticas antropogênicas como uma “mentira
socialista”, também nega a tortura e os desaparecimentos que ocorreram durante
a ditadura, planejando perdoar os oficiais militares presos por tais crimes.
Alimentado por um sexismo virulento, ele espera
reverter o progresso alcançado pelo poderoso movimento feminista do país,
particularmente a legalização do aborto, e derrotar a chamada “ideologia de
gênero” da comunidade LGBTQIA+ na educação e na cultura em grande escala.
A perspectiva de Javier Milei representa uma
mutação reacionária do neoliberalismo em resposta às condições atuais da crise
econômica. É a mais recente erupção da longa tradição autoritária de livre
mercado da América Latina – o que Verónica Gago chama de “violência originária”
do seu modelo neoliberal periférico.
Num momento de desespero, como observou Pablo
Stefanoni, Javier Milei conseguiu construir a única “candidatura
verdadeiramente ideológica” com um programa eleitoral e uma imagem utópica do
futuro. Isto explica por que, de alguma forma, ele conseguiu conquistar tantos
jovens do sexo masculino nas vilas de Buenos Aires (o
equivalente às favelas brasileiras no país), ao mesmo tempo que superou os seus
rivais em regiões que anteriormente favoreciam a esquerda peronista.
Mais do que Jair Bolsonaro – cuja candidatura foi
impulsionada pelos jovens ativistas online do Movimento Brasil Livre depois que
ele lhes prometeu nomear o Chicago Boy Paulo Guedes como
ministro das Finanças – Javier Milei é um neoliberal de carteirinha. Quando lhe
perguntam como adotou essa linha política, ele fala de uma conversão quase
religiosa – do keynesianismo neoclássico para a Escola Austríaca. Javier Milei
também está planejando se converter do catolicismo ao judaísmo – mesmo se a sua
ética de trabalho presidencial possa ser incompatível com a observância
do Shabat.
Em seu discurso de vitória após as eleições
primárias, Javier Milei agradeceu tanto a seus apoiadores quanto aos seus
animais de estimação, mastins ingleses, que recebem os nomes de Milton
Friedman, Robert Lucas e Murray Rothbard. “Afinal, o que é o Estado senão o
banditismo organizado?” – escreveu Rothbard no seu Manifesto
Libertário (1973). “O que é a tributação senão roubo em escala
gigantesca e descontrolada?” “O que é a guerra senão o assassinato em massa
numa escala impossível pelas forças policiais privadas?” Cinquenta anos depois,
essas falas podem ser ouvidas ecoando no horário nobre da televisão argentina.
Seguindo Friedman, Javier Milei distingue entre
três tipos de liberalismo: a doutrina clássica de Smith e Hayek, que ele tem em
alta estima; o minarquismo de Mises, com o qual se identifica no plano prático;
e o anarcocapitalismo de Hans-Hermann Hoppe, ao qual adere filosoficamente.
Milei desenvolveu essas visões em vários livros: O Retorno ao Caminho
da Decadência Argentina (2015), Liberdade, Liberdade,
Liberdade (2019), Pandenomia (2020), O
Caminho do Libertário (2022) e O Fim da Inflação (2023).
Muitos de seus títulos foram acusados e perseguidos
por alegações de plágio. Mas isto não é uma preocupação para Javier Milei, que
se orgulha de ter absorvido os ensinamentos de seus ídolos austríacos, linha
por linha. Ao contrário de qualquer outro tipo de propriedade, as suas verdades
pertencem a todos e a ninguém.
Contudo, a filosofia de Javier Milei não está
apenas no papel, mas manifesta-se nos seus planos concretos para a dolarização
– um projeto para o qual ele já começou a procurar financiamento estrangeiro.
Para muitos eleitores, indignados com a inflação e habituados a negociar na
moeda dos EUA, esta política parece intuitiva – ou pelo menos vale a pena o
risco. Para Javier Milei, porém, trata-se menos de resolver a crise atual do
que de defender um princípio intemporal.
Na tradição da Escola Austríaca, o regresso ao
padrão-ouro é o Santo Graal. Na ausência de tal retrocesso na história, a
próxima melhor coisa é amarrar as mãos dos banqueiros centrais – ou, então,
cortá-las completamente. Os meios para o fazer são vários. O aspirante a
ditador de El Salvador, Nayib Bukele, adotou o Bitcoin como a segunda moeda
oficial do país, na esperança de imitar as características deflacionárias do
padrão ouro.
O candidato presidencial do Partido Republicano,
Vivek Ramaswamy, propôs a utilização de um cabaz de mercadorias, incluindo
ouro, para sustentar o dólar. E Javier Milei elogiou a substituição do peso
pelo dólar, juntamente com a abolição do banco central – que ele chama de “a
pior coisa do universo”.
Em contraste com “artistas” sem leme como Jair
Bolsonaro e Donald Trump, Javier Milei está zelosamente comprometido com uma
ideologia coerente. Inicialmente não estava claro se ele queria mesmo ser
presidente ou se o seu principal objetivo era usar a sua candidatura para tecer
as suas ideias no tecido cultural. É em parte por esta razão que os mercados
financeiros internacionais estão inquietos. Imediatamente após a sua vitória em
agosto, o valor dos títulos em peso e em dólar despencou, relembrando a reação
às reformas neoliberais radicais da ex-primeira-ministra do Reino Unido, Liz
Truss, em 2022.
Claro, como economista-chefe numa das maiores
empresas da Argentina e consultor de numerosos órgãos públicos nacionais e
internacionais, Javier Milei é adepto da leitura atenta dos sinais do mercado –
bem como de ajustar seus níveis de radicalidade ao seu público. Ao falar com
a Bloomberg, ele recorre a palestras abstratas em sala de aula
sobre teoria macroeconômica. Com o The Economist, ele enfatiza a
boa-fé do seu establishment e rejeita caracterizações precisas
do seu programa como “hipérbole”.
Neste registo mais tranquilizador, Javier Milei
explica que o Estado social deveria certamente ser destruído – mas não de uma
só vez. “É o inimigo, então vamos desmantelá-lo. Mas com uma transição… Durante
os primeiros anos, tentaríamos reconfigurar [as doações] para que a política
social não se centre no bem-estar, mas no capital humano.”
Para tal, propõe reduzir o número de ministérios do
governo de dezoito para oito: quer se livrar dos Ministérios da Cultura,
Educação, Transportes, Saúde Pública, Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, e
da Mulher, Gênero e Diversidade, entre outros. Algumas das suas funções serão
integradas no Ministério do Capital Humano, o que condicionará o bem-estar ao
trabalho.
A reforma da segurança social, acrescenta, seguirá
o modelo instituído por Augusto Pinochet no Chile. Uma nova era de terapia de
choque está a caminho; mas, como Javier Milei garante, estando em conformidade
com o que o The Economist predica, isto não causará problemas
às instituições ou aos investidores internacionais, uma vez que os seus
próprios cortes nos impostos e nas despesas serão muito mais severos do que as
propostas do FMI.
No entanto, num relatório sobre as perspectivas
crescentes de Javier Milei, o Financial Times cita um consultor
de uma empresa de investimentos com sede em Londres que questiona a sua
capacidade de executar tais políticas: “Há preocupação sobre… a governabilidade
– até que ponto ele seria capaz de controlar os protestos se fosse capaz de
implementar as suas medidas radicais”.
Será que a reação contra a sua agenda seria
demasiado forte para ser contida pelo Estado? Mais uma vez, Javier Milei
responde que manejará a sua motosserra – a ferramenta que ele simbolicamente
carrega e põe a funcionar em seus comícios – com cuidado. Ele sabe quais braços
do Estado cortar e quais usar contra os seus oponentes. “Estamos a trabalhar
numa nova lei de segurança interna, numa nova lei de defesa nacional, numa nova
lei de inteligência, na reforma do código penal e na reforma do sistema
prisional”.
Além disso, a segurança será confiada à sua
companheira de chapa, Victoria Villarruel. Apelidada de “Villacruel”, ela
passou sua carreira jurídica defendendo militares condenados por crimes contra
a humanidade. Ela é uma defensora de longa data da chamada “teoria dos dois
demônios” da ditadura argentina, atribuindo a mesma culpa aos dissidentes
comunistas e ao Estado que sistematicamente tentou erradicá-los.
A política externa de Javier Milei evoca os mesmos
temas. Ao assumir o poder, pretende iniciar um “alinhamento automático com os
EUA e Israel”, recusando-se ao mesmo tempo a trabalhar com “países socialistas”
como a China, o Brasil, a Colômbia, o Chile e o México. O que isso significa,
na prática, é objeto de debate. Afinal, Jair Bolsonaro disse a mesma coisa
sobre a China durante sua campanha eleitoral, antes de abraçar o país como
presidente.
Javier Milei pode realizar uma reviravolta
semelhante. No entanto, o seu compromisso ideológico – juntamente com a sua
fixação neocolonial nas virtudes da “civilização ocidental” – não deve ser
subestimado. Nem a imprevisibilidade que acompanha seu tipo particular de
libertarismo.
Quando questionado sobre o acordo da Argentina
entre o Mercosul e a União Europeia, Javier Milei investiu contra ele, mas
também expressou sua oposição à ideia de tarifas em substituição. A sua
administração alargaria certamente a fronteira extrativa no Triângulo do Lítio,
que já está a deslocar violentamente as comunidades indígenas, em linha com a
exigência do FMI de pagar dívidas soberanas em dólares americanos.
Orientada para Washington e Wall Street, Javier
Milei seria uma figura solitária na região; o presidente uruguaio e o atual
favorito à presidência do Equador estariam entre seus únicos aliados. No
entanto, como explicou recentemente numa entrevista a Tucker Carlson, a
organização transnacional eficaz da extrema direita, esse isolamento pode ser
de curta duração.
Javier Milei estabeleceu laços com o partido de
extrema-direita Vox da Espanha. Está aliado a líderes reacionários de toda a
Península Ibérica e da América Latina através de iniciativas como o Fórum de
Madrid, que visa reunir a extrema-direita moderada e a extrema-direita “para
enfrentar a ameaça representada pelo crescimento do comunismo em ambos os lados
do Atlântico”. Javier Milei vê-se como parte de uma Nueva derecha
insurgente que está focada na frente cultural – travando uma longa
guerra de manobra contra a igualdade de gênero e a justiça racial, com a ajuda
das redes sociais online.
A entrevista com Javier Milei, feita por Carlson,
foi vista 420 milhões de vezes nos Estados Unidos, após o endosso de Elon Musk!
A promessa de Javier Milei de “tornar a Argentina
grande novamente” não é apenas o mais recente artifício trumpiano usado por um
nacionalista de extrema direita. É também um apelo genuíno à palingênese
liberal – uma visão de renascimento nacional através de um regresso a Smith,
Hayek e aos seus herdeiros. Quando Javier Milei usa essa frase, ele não está
apenas participando da reabilitação da ditadura militar; ele também pede um
retorno aos anos dourados da história argentina – as primeiras décadas do
século XX, quando estava entre as nações mais ricas do mundo.
Esta prosperidade, concedida pelo “liberalismo
clássico de mercado livre”, foi supostamente apagada pelo “inventismo” estatal
socialista de Juan Perón, que desde então atolou o país na decadência e no
declínio. Para recuperar tal grandeza, Javier Milei defende uma “revolução
libertária que tornará a Argentina novamente uma potência mundial em trinta e
cinco anos”. No entanto, o seu programa anarcoautoritário não se parece
exatamente com aqueles das ditaduras do passado. As suas características,
possivelmente mais destrutivas, ainda estão para serem vistas.
Fonte: Esquerda
Online/Blog da Boitempo
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