quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Frederico Dalponte: Argentina – um passo mais longe do abismo

Não é fácil compreender o que ocorreu no primeiro turno das eleições presidenciais argentinas. A tentação é acreditar que o fervor democrático prevaleceu em relação aos fatores econômicos ou à corrupção, mas tudo é sempre mais complexo. Se quisermos arriscar um palpite, o surpreendente resultado de Sergio Massa, que saltou do terceiro lugar nas primárias para o primeiro nas eleições gerais, pode ser explicado – em princípio – por três fatores.

O primeiro fator é de natureza geográfico, pois houve um aumento significativo de votos em todos os distritos, tendo o peronismo recuperado um poder a nível federal que parecia ter perdido nas primárias. Destacam-se as contribuições de Santa Fé (de 21% para 29%), da província de Buenos Aires (de 32% para 44%), da cidade de Buenos Aires (de 23% para 32%) e de Tucumán (de 33% para 44%). E há espaço para aumentar a porcentagem de votos em províncias como Córdoba e Mendoza, onde o desempenho ainda está abaixo do que foi obtido em 2015 e 2019.

Em segundo lugar, o aspecto discursivo-ideológico também oferece uma possível explicação. Em particular porque o novo eleitorado conquistado pela coalizão Unión por la Patria é, em grande medida, o eleitorado perdido pela coalizão Juntos por el Cambio na sua faceta moderada, representada por Horacio Rodríguez Larreta até agosto. A estratégia rígida e confrontacional de Patricia Bullrich permitiu-lhe ganhar as primárias, mas não lhe deu margem para crescer nas eleições gerais, deixando um eleitorado centrista abandonado e preocupado com a ascensão de Milei.

E, finalmente, é certo que a economia também explica em parte o crescimento de Sergio Massa. Não por causa de uma melhoria aparente da situação geral do país, mas porque, pela primeira vez em muitos anos, o governo compreendeu a necessidade de aumentar as rendas de forma urgente e eficaz. Ponto a favor do reembolso do IVA (imposto de valor agregado) para os produtos essenciais.

Neste contexto, resta saber se o peronismo e os seus adeptos conseguirão atrair novos eleitores entre aqueles que votaram em Patricia Bullrich no domingo, especialmente depois do seu discurso de derrota, no qual estava implícito o seu apoio a Javier Milei. Esses 24% do eleitorado de Bullrich, como se sabe, não são monolíticos e deverão pender para ambos os lados. Em todo caso, teria sido preferível que a ex-ministra da Segurança mostrasse algum bom senso, pelo menos por respeito ao sistema democrático.

O caminho desejável era o da Alemanha e da França, onde as coisas têm funcionado até agora. Dessa forma, impediram que a extrema-direita chegasse a cargos executivos. São os famosos "cordões sanitários", uma espécie de cerco político à propagação das – digamos – ideias fascistas, quer excluindo os partidos extremistas dos acordos parlamentares, como no caso do partido de direita alemão AfD, quer evitando apoiá-los nas eleições do segundo turno, como no caso da (antiga) Frente Nacional francesa de Marine Le Pen.

A estratégia era bem simples, mas Bullrich perdeu a oportunidade de se tornar uma estadista no domingo e deixou em aberto a possibilidade de um participante no jogo democrático romper o sistema a partir de dentro. Resta saber se o seu posicionamento para o segundo turno é apenas o dela e o de Mauricio Macri, o eventual embaixador de Milei, ou se os radicais e os chamados moderados do PRO também se juntarão a ela. Apostaríamos que não, mas é melhor não colocar a mão no fogo.

Além disso, mesmo que o partido Juntos por el Cambio apelasse abertamente ao voto da extrema-direita, não é garantido que o seu eleitorado respondesse de forma coesa. Entre eles, há anti-peronistas raivosos, é evidente, mas também radicais nostálgicos, opositores centristas, pessoas que exigem mais segurança e até pessoas mais velhas com um perfil conservador, que não estão inclinadas a apoiar aventuras imprevisíveis como a proposta de Milei.

Foi precisamente aqui que o candidato de La Libertad Avanza falhou. Na segunda parte da campanha, longe de se amansar para captar os votos de Juntos por el Cambio, manteve um discurso extremista que o impediu de expandir a sua base eleitoral. Assim, desperdiçou o seu momento de glória, durante as semanas em que esteve no centro da campanha, distribuindo ministérios como se já tivesse ganho. "Estamos prontos para governar hoje, se necessário", disse dois dias depois das primárias. Há nisso um cheiro de amadorismo.

O alívio é evidente, mas o resto da campanha não será menos estressante. Talvez neste contexto, Massa consiga tirar proveito da chance que o seu adversário desperdiçou e oferecer uma imagem presidencial atrativa e convincente. São quatro semanas para gerir e dar corpo às esperanças que lhe foram depositadas desde a noite que o primeiro turno se encerrou.

Por enquanto, a estratégia delineada no discurso de vitória parece adequada, embora complexa: a promoção da unidade nacional tem boa repercussão na imprensa, mas acrescentar consistência política a ela será um desafio – para os outros e também para ele próprio. Recordemos que a lista de possíveis futuros aliados inclui, por exemplo, o governador de Jujuy, Gerardo Morales.

Neste contexto, o dado final: se Massa conseguir captar todos os eleitores da Frente de Izquierda e metade dos de Juan Schiaretti, terá ainda de fazer um esforço titânico para seduzir pelo menos um terço do eleitorado do Juntos por el Cambio. Difícil, é claro, mas até o domingo de eleição tudo isto era muito mais improvável, e aqui estamos nós.

 

Ø  Argentina: ‘Massa é Alckmin e Milei é Paulo Guedes’, compara especialista

 

O segundo turno das eleições presidencial da Argentina coloca frente a frente o peronista Sérgio Massa, vencedor do primeiro turno, e o ultraliberal Javier Milei, que venceu as primárias de agosto, mas acabou superado e ficando em segundo lugar dois meses depois. 

O cenário apresentado ao país vizinho é comparável ao que teve o Brasil em 2022, quando a Presidência da República foi disputada entre a centro-esquerda e a extrema direita, representadas pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ), que perdeu sua reeleição, e por Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP), que voltou ao cargo após 13 anos, para assumir seu terceiro mandato.

Porém, segundo o cientista político Bruno Lima Rocha, professor de Relações Internacionais da Faculdade São Francisco de Assis, existem algumas diferenças nessa comparação.

“Se formos posicionar as figuras ideologicamente de forma correta, o Sergio Massa se parece mais a um Geraldo Alckmin que a um Lula, e o Javier Milei é mais um Paulo Guedes que um Jair Bolsonaro”.

O acadêmico, que vem acompanhando presencialmente a campanha eleitoral argentina desde a disputa das primárias – realizadas em 13 de agosto –, também afirma que “a presença brasileira na campanha é visível, tanto pelo lado do Milei, com o próprio Eduardo Bolsonaro em Buenos Aires no dia da eleição, quanto pelo lado do Massa, que trouxe vários assessores brasileiros”.

Leia a entrevista completa, que analisa as razões pelas quais os resultados foram tão diferentes entre as primárias de agosto e ou primeiro turno do último domingo (22/10), a influência do Brasil e do Brics na campanha e tenta antecipar as estratégias que as duas candidaturas podem utilizar a partir de agora, com vistas à votação decisiva, marcada para do dia 19 de novembro.

 LEIA A ENTREVISTA:

·         Quais elementos explicam, não só o resultado deste primeiro turno, mas também a diferença significativa entre este cenário e o das primárias, que ocorreram em apenas dois meses de distância entre um e outro?

Bruno Lima Rocha: Aconteceu muita coisa de 13 de agosto – data das primárias – para cá. Uma delas é o impacto negativo da desvalorização do peso argentino em 22%, enquanto o FMI queria uma desvalorização de 100%.

A partir de então, o Massa apostou em um conjunto de medidas econômicas que tiveram um bom resultado: retirou a faixa mais alta do setor assalariado do imposto de renda, decretou a devolução do IVA, que é um imposto sobre consumo, entre outras políticas que reverteram rapidamente em melhorias na condição e vida da população, contendo os efeitos da inflação.

Outra medida muito relevante adotada por ele foi a de colocar em prática as punições por crimes financeiros, algo que teve pouca repercussão fora da Argentina mas que foi muito efetivo internamente. Em um cálculo aproximado a gente tem mais ou menos uns 40 agentes econômicos presos nas últimas semanas por evasão de divisas, ou por falsificação de pedido de importação. Há casos de pessoas que compram dólar subsidiado na cotação oficial e revendem no mercado paralelo ilegal e chegam a ganhar até 700 pesos por dólar nessas transações.

O que também mudou nestes dois meses foi o fato de que o Milei escancarou em seu discurso ideias que o prejudicaram muito: disse que seria necessário provocar uma hiperinflação no país para colocar em prática seu projeto de dolarização da economia. Atualmente, um dólar está custando cerca de 900 pesos no câmbio paralelo, mas para o Milei fazer o que ele quer esse valor precisaria ir a 10 mil.

Esse contraste entre um candidato que toma medidas econômicas efetivas e outro que propõe uma corrida inflacionária irresponsável para colocar em prática seu fetiche da dolarização, ainda mais em um país como a Argentina que já tem a experiência de uma hiperinflação, acabou sendo muito favorável ao Massa.

·         Milei teve o mesmo percentual em agosto e em outubro: 29,9%; e praticamente o mesmo número de votos totais, passando de 7,3 milhões a 7,8 milhões. Ou seja, ele ganhou apenas meio milhão de eleitores em dois meses, enquanto Massa cresceu mais de três milhões. A candidatura da extrema direita chegou a um teto ou esse tropeço foi fruto de erros cometidos durante a campanha do primeiro turno?

A figura do Milei, por si mesmo, chegou a um teto, isso é fato. Se ele quiser conquistar mais votos terá que se aproximar do macrismo e tentar voltar a ser o queridinho dos meios de comunicação, como era antes de fazer política, quando aparecia em diferentes programas como um comentarista supostamente especializado em economia, até chegar a ser esse deputado exótico que é hoje.

Mas ele também conquistou espaço. Nas eleições de meio de mandato, em 2021, seu partido elegeu apenas três deputados, ele e mais dois. Na eleição deste domingo saltaram para 39 parlamentares, o que é uma bancada considerável. Está longe de ter maioria, ou de garantir governabilidade, mas é claro que é um ótimo resultado.

No discurso após o primeiro turno ele tentou se aproximar do Jorge Macri, que é primo do ex-presidente Mauricio Macri e candidato a prefeito de Buenos Aires, que disputará o segundo turno contra o Leandro Santoro, candidato do peronismo.

Milei acena para Macri, tanto Jorge quanto Mauricio, e acena para o voto conservador das províncias, mas seu discurso é muito extremado e às vezes dá a impressão que ele mesmo não sabe o limite disso. Ele tem um voto transversal, socialmente falando, mas é um voto muito juvenil, um voto marcado por idade, de uma geração que não viveu o final dos Anos 80, nem o corralito, no ano 2000. Superar essa barreira geracional será crucial para a sua candidatura.

·         O apoio de Lula a Massa no primeiro turno foi um fator positivo para o peronista? Poderia se repetir no segundo turno (acha que Massa deverá insistir nisso)?

A presença brasileira na campanha é visível, tanto pelo lado do Milei, com o próprio Eduardo Bolsonaro em Buenos Aires no dia da eleição, quanto pelo lado do Massa.

A campanha peronista trouxe vários assessores brasileiros que foram importantes para buscar uma reação depois do resultado das primárias, especialmente na questão de como lidar com as mensagens disruptivas promovidas pela extrema direita. O aprendizado da campanha de 2022 foi muito positivo, e o fato de o Brasil ter uma extrema direita com forte presença cibernética pelo menos desde 2015.

Não se sabe quem são os assessores mais próximos do Milei na campanha, mas é evidente que seu discurso agressivo contra parceiros econômicos importantes para a Argentina, como o Brasil e a China, mobilizou as possíveis alianças externas.

Por exemplo, o presidente Alberto Fernández viajou para a China na semana anterior ao primeiro turno e tinha planejado pedir um swap de US$ 5 bilhões, e voltou com uma ajuda ainda maior, de US$ 6,5 bilhões. E o Brasil também tem feito vários acordos buscando o quanto o comércio entre os países pode crescer em um possível governo Massa mantendo boas relações com o governo Lula, o que pode não acontecer se o Milei for presidente.

·         Essa influência brasileira na campanha permite traçar um paralelo entre a disputa Massa-Milei e a disputa Lula-Bolsonaro em 2022? Como essas duas figuras brasileiras afetam o imaginário do eleitorado argentino?

Essa comparação entre as duas disputas faz sentido, mas se formos posicionar as figuras ideologicamente de forma correta, o Sergio Massa se parece mais a um Geraldo Alckmin que a um Lula, e o Javier Milei é mais um Paulo Guedes que um Jair Bolsonaro.

Porém, é importante ressaltar que, embora esse paralelo exista, partiu mais do Milei, que usou sua aproximação com o Bolsonaro como elemento da campanha, e depois o Trump, quando deu aquela entrevista para o Tucker Carlson (jornalista norte-americano de extrema direita, ex Fox News), que foi transmitida pelo X (ex Twitter) e que teve uma audiência enorme.

·         A entrada da Argentina no Brics+ foi um tema de campanha no primeiro turno? Poderia ser abordado também no segundo?

A dimensão do Brics é fundamental em termos de projeto de país, mas também é preciso entender que uma parte da elite argentina mantém um pensamento muito colonizado. Assim como no Brasil o industrialismo foi deixado de lado, aqui na Argentina ocorre, em parte, o mesmo fenômeno, com a defesa da indústria nacional sendo mantida como bandeira exclusiva do peronismo.

Os projetos econômicos, tanto do Milei quanto da Bullrich, se baseiam na visão de uma Argentina resignada a ser um país exportador de grãos e minerais, e dominado pelo mercado financeiro, por isso o discurso muito anti sindical, anti direitos trabalhistas.

Ainda assim, a relação entre a Argentina e o Brics é central porque nas economias das províncias do interior do país você tem uma presença do Brasil, da China e da Índia muito maior que a dos Estados Unidos, que tem uma projeção cultural, uma projeção financeira, mas que não se reflete na economia real.

·         O que se pode esperar da campanha no segundo turno? Quais estratégias devem ser adotadas por cada um dos candidatos?

A campanha do medo é a campanha contra o Milei, devido ao teor extremo de suas propostas, mas a estratégia do Massa tem buscado explorar isso de uma forma sutil, apresentando a chapa entre ele e Agustín Rossi (seu candidato a vice) como pessoas responsáveis, previsíveis, bons pais de família, o que inevitavelmente leva à comparação com o Milei, que não tem família. Na Argentina, a família heteronormativa clássica é minoria na sociedade, mas ela é idealizada até pelas classes mais pobres do país. A maioria das pessoas projeta essa figura da família com marido, mulher e filhos, mesmo que isso não seja a realidade de muita gente.

Outra coisa que pode acontecer é a entrada em campo dos operadores judiciais colocando todo o aparelho de lawfare contra atores políticos para buscar efeitos eleitorais. O Macri fazia muito isso, e esses setores poderiam atuar em favor do Milei neste segundo turno.

O governo do Alberto Fernández fez muito pouco para desmontar essa estrutura político-judicial, e acabou sendo visto como “frouxo” por alguns aliados. Isso mantém uma situação muito complicada para o campo popular argentino.

Também há um elemento da campanha relacionado à projeção internacional do país diante dessa disputa. O Milei defende um discurso similar ao do bolsonarismo, tentando associar o Massa com o Hamas, Cuba, Venezuela, comunismo, terrorismo e o que mais puder incluir na consigna de que “eles representam tudo de ruim que há no planeta”. Sua campanha é muito despolitizada, mas toca em signos fortes na internet.

·         Como Milei está lidando com a necessidade de moderação do discurso e de buscar o voto macrista?

Nestas primeiras 48 horas, o que se vê é um Milei que parece um pouco perdido. Ele deixou claro que vai buscar os votos do macrismo, buscando se aproximar não necessariamente da Patricia Bullrich, que era a candidata da coalizão macrista Juntos Pela Mudança, mas sim do próprio Mauricio Macri.

Porém, sua estratégia na campanha do primeiro turno queimou as pontes com outro setor importante da coalizão macrista que é a União Cívica Radical (UCR, legenda de centro ligada ao falecido ex-presidente Raúl Alfonsín).

Nesta segunda (23/10), ele apareceu dando diversas entrevistas a meios conservadores dizendo que, em um governo seu, a esquerda poderia ocupar o que ele chamou de Ministério do Capital Humano, que ele não faria distinção ideológica na composição do governo, que chamaria “os melhores”, deu a entender que nomearia a Bullrich como ministra do Interior e Segurança Interna, o que é estranho já que ele a atacou duramente no primeiro turno.

Essa tentativa de moderação do discurso, ao menos até agora, está custando muito ao Milei. Ele soa pouco convincente e com ideias que dão a impressão de um candidato mal orientado, mal assessorado. Mas acho que é muito cedo para dizer que ele não poderá alcançar essa moderação, ou que não será capaz de atrair outros setores.

O maior problema para ele é que essa coalizão macrista terminou rachada após a eleição de domingo. Eles não saem dessa eleição “juntos”, como diz o nome da coalizão, muito pelo contrário, e o Milei precisa de todos os votos da Bullrich para conseguir virar esse jogo, o que neste momento parece difícil de conseguir. 

 

Fonte: Primera Linea/Opera Mundi

 

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