Conflito Israel-Hamas é um trauma para gerações
“Nas duas últimas semanas, vimos um ato terrorista do Hamas que ceifou
a vida de 1.300 israelenses, que por si só deve ser lamentado e condenado. Isso
é um trauma para as gerações que estão envolvidas diretamente, mas que vem sendo retaliado de maneira brutal, ilegal
e desproporcional por Israel”, disse Dawisson Belém Lopes na videoconferência “O papel das potências
emergentes na reconfiguração geopolítica global”, promovida pelo Instituto
Humanitas Unisinos – IHU em 18-10-2023.
Segundo ele, o atual conflito entre Israel e Hamas “se insere
em um quadro mais amplo, complexo e que traz crises em profusão” e que
desencadeia comportamentos distintos nos países integrantes do Norte e do Sul Global. “Já está claro que há uma
sedimentação dos blocos e, enquanto o Norte parece mais próximo de uma
perspectiva israelense, sem comprar completamente o pacote em alguns casos, o
Sul Global parece mais inclinado a uma visão palestina, não do grupo terrorista
Hamas, mas do país palestino”, compara.
As guerras em
curso no mundo, somadas aos efeitos da pandemia de Covid-19, que demonstraram
“um festival de nacionalismo
sanitário”, estão reconfigurando a geopolítica internacional porque
países emergentes passaram a reivindicar uma ordem internacional diferente. Um
exemplo da nova reconfiguração é o BRICS. “Os últimos anos serviram para tornar mais nítida
a linha que divide o Norte do Sul Global geopoliticamente. Não
falo apenas da disparidade econômica. Até porque no Sul Global se insere
a China que, pelas
medidas agregadas da economia, já faz parte do grupo das potências mundiais”.
A conferência de Dawisson Belém Lopes, publicada a seguir no formato de entrevista,
integra o Ciclo de Estudos (Des)globalização e a reconfiguração geopolítica global, que se estende até 20-11-2023.
A próxima videoconferência tem como tema “Novo BRICS
e a implosão da ordem internacional. Análises, prospectivas e desafios” e será ministrada pela Profa. Dra. Elen de Paula Bueno, da Universidade de São Paulo (USP) e o Prof.
Dr. José Luis
da Costa Fiori, da mesma universidade, nesta quinta-feira,
26-10-2023. O evento será transmitido na página eletrônica do IHU e no Canal do
IHU no YouTube.
>>>> Confira
a entrevista.
·
Como analisa a conjuntura
internacional neste momento?
Dawisson Belém Lopes – Temos vividos dias duros e difíceis. Todos que se ocupam das
relações internacionais profissionalmente têm dormido pouco, têm estado
absorvidos pela temática do conflito entre Israel e Hamas; tem sido dias
que exigem muito de nós. Todos nós estamos operando no limite da capacidade,
buscando digerir tantos fatos e versões. Uma carga grande de sentimentos está
envolvida na compreensão desse conflito internacional. O conflito é o que
captura as manchetes neste momento e é o que acaba chamando a atenção para as
relações internacionais, mas, seguramente, ele se insere em um quadro mais
amplo, complexo e que traz crises em profusão. Esse quadro exige de nós uma
capacidade analítica que é impossível que nós, meros seres humanos, tenhamos. O
que quero dizer é que dar conta analiticamente de tudo que está acontecendo ao
mesmo tempo é uma missão para a inteligência coletiva. Não há um indivíduo que
dê conta do que tem acontecido ao mesmo tempo com o mundo.
Externo minhas condolências às comunidades mais
diretamente afetadas neste conflito: judeus, árabes e muçulmanos. Existem muitas pessoas
sofrendo com tudo o que se passa neste momento. Evidentemente, isto está muito
além de qualquer exercício que podemos fazer de geopolítica. Neste momento, é
necessário manifestar solidariedade e exercitar esse tipo de empatia, e
entender que há muito sofrimento, particularmente para as comunidades que estão
implicadas no conflito em curso.
E não apenas: é importante entender que este tipo
de contexto, que envolve sofrimento humano, precisa ser tratado a partir de uma
vertente humanista. Isto é, quero dizer que a despeito da carga emocional muito
pesada que se impõe sobre todos nós, este também é um tempo fértil para a
reflexão, é um momento que nos permite amadurecer certas ideias que já vinham
povoando o imaginário, mas que, ao longo dos últimos dias, ganharam uma
materialidade bastante própria.
Os últimos dias mostraram certas tendências para o
mundo que ainda estavam encapsuladas ou embrionárias. Hoje elas se mostram mais
evidentes. As tendências da geopolítica
mundial se fizeram ainda mais claras em virtude dos eventos das
últimas duas semanas. Houve uma aceleração do tempo. Essas duas semanas me
fizeram lembrar uma frase: “Há décadas em que nada acontece. Mas há semanas em
que décadas acontecem”. É um pouco isso que estamos vivendo.
>>>> Anos 20
No século XX, a historiografia brasileira – e
ocidental de modo geral – se refere aos anos 1920 como os loucos anos 20 em
função da enorme transformação pela qual passávamos à época nos campos das
artes, da cultura, da política, da economia e das relações internacionais. Eram
tempos desafiadores. Um século depois não seria exagerado tomar de empréstimo
este epíteto: os loucos anos 20 voltaram.
·
Qual o papel das
potências emergentes na reconfiguração geopolítica global?
Dawisson Belém Lopes – Vou me debruçar sobre alguns dos momentos mais críticos e
dramáticos dos loucos anos 20 do século XXI, em três macroepisódios, para
desenvolver o argumento sobre o papel das potências emergentes na
reconfiguração geopolítica global e responder à questão sobre como as potências
emergentes têm o seu papel reconhecido e modificado na atualidade. Estes três
macroeventos são a pandemia de
Covid-19, a guerra na Ucrânia e o conflito entre Israel e Hamas.
As potências emergentes nunca tiveram enorme centralidade
no debate acadêmico das relações internacionais. Fiz o exercício, ao longo dos
últimos dias, de revistar alguns clássicos do pensamento ocidental em Relações Internacionais. Diria que
eles são um pouco conformadores deste campo disciplinar no Brasil e em boa
parte do mundo ocidental. São eles, o livro de Hedley Bull, The Anarchical Society, de 1977, o
livro que vem na sequência, Theory of International Politics,
de Kenneth Waltz, e,
finalmente, nos anos 1980, After Hegemony, de Robert Keohane.
Ao fazer esse itinerário de volta a obras clássicas
da disciplina de Relações Internacionais na academia, pude me dar conta de
algumas coisas. Geralmente, lemos os clássicos durante a graduação, mas a
verdade é que, ao longo da vida, quando envelhecemos, essas leituras ganham
outra conotação e densidade. Nos damos conta de aspectos que não estavam tão
evidentes aos 20 anos de idade.
O que fica muito claro no cânone da literatura
canônica de Relações
Internacionais é a forma como se teoriza a respeito do mundo, baseada
no comportamento das grandes potências. É claro que existem um componente
etnocêntrico indisfarçável e uma leitura centrada na Europa e no sistema
eurocêntrico. É um vício que permanece, mas, para além disso, quero ressaltar a
ênfase em grandes potências e a história contada a partir dos países que detêm
capacidades materiais abundantes. A versão da história que conhecemos é a das
grandes potências, dos países que dominam a cena internacional, a partir das
noções: “polo de poder” e “potência”. Esse rótulo é atribuído pela aferição das
capacidades físicas e materiais [dos países].
As narrativas fundamentais para estruturar o campo
disciplinar de Relações Internacionais não foge a essa regra. São leituras
baseadas sobretudo na ótica dos países que detêm muitos recursos. Waltz diz, de
forma frontal, que não faz sentido pensar um sistema internacional que não seja
pela ótica das potências, dos polos de poder. Isso aparece também em Bull, que atribui às grandes potências
a condição de serem instituições secundárias que acabam estruturando o campo
internacional. O jogo das grandes potências é, por si só, o elemento
explicativo para as dinâmicas internacionais.
>>>>
Potências emergentes
Estou resgatando esse traço do cânone literário das
relações internacionais porque os loucos anos 20 do século XXI parecem desafiar
este tipo de mirada centrada no comportamento das grandes potências. Há,
aparentemente, uma perspectiva que está sendo consolidada enquanto conversamos
aqui, que vai sendo elaborada e ganha cada vez mais consistência, coesão e
lógica teórica por parte das potências emergentes dos países que, na
atualidade, veem aumentar suas capacidades físicas, materiais e geopolíticas e,
por isso, passam a desafiar certos consensos valorativos, institucionais, jurídicos.
Esses países começam a reivindicar uma ordem internacional diferente, ligada a reformas nas
organizações internacionais, nas leituras e entendimentos de mundo que são
hegemônicos. Esse desafio acontece de uma maneira autoevidente nos três eventos
que cito: a pandemia,
a guerra na Ucrânia e
o conflito entre Israel e Hamas.
Essa perspectiva que vai se articulando por parte
das potências emergentes é uma das grandes novidades do campo acadêmico de
Política Internacional e Relações Internacionais. Estamos diante da
possibilidade de uma nova safra de construtos conceituais, teóricos, que
recentralizam as narrativas sobre o que pode e deve acontecer nos próximos
anos. Essa seria minha aposta. Há essencialmente algo de novo.
·
Quais são as potências
emergentes?
Dawisson Belém Lopes – Quando trago a ideia de potências emergentes, eu não gostaria que
se confundisse com a ideia de potência média genericamente. Potências médias há
várias e de vários perfis: Austrália, Suécia, Canadá, Holanda, Coreia do Sul. São países de
capacidades materiais medianas em uma escala imaginária. Mas são países também
perfeitamente acomodados à ordem internacional que se configura a partir do fim
da Segunda Guerra Mundial. Esse
conjunto de países é acomodatício. Eles conseguiram encontrar seu lugar na
ordem internacional e não querem revisar essa ordem de forma mais ou menos
radical.
As potências emergentes a que estou me referindo e
que desafiam o consenso têm como elemento que as conecta o desejo de reforma
baseado em valores morais, como maior justiça no campo internacional, uma
tentativa de buscar maior igualdade na distribuição dos recursos, que é
profundamente desigual no mundo. São essas potências que desafiam as compreensões
da geopolítica global. Essas potências emergentes também têm muitas distinções
entre si.
>>>> BRICS
O BRICS é
um dos fóruns, uma materialização de potências emergentes. Esse grupo de países
nasceu na primeira década do século XXI, de modo um tanto artificial, a partir
de uma ideia ventilada por um banqueiro que fazia referência a economias
emergentes. A conotação entre eles era muito evidente. À época, o que
conectava Brasil, Índia, China, Rússia e África do Sul era a promessa de
que aqueles mercados representavam uma promessa de prosperidade e crescimento
econômico para o mundo. Daí nasce, por vias oblíquas, um grupamento político
com conotações geopolíticas. Recentemente, no encontro realizado na África do
Sul, o grupo passou por uma macroexpansão e mais que dobra de tamanho.
Essa mudança passará a vigorar em 2024, mas já
houve a deliberação para seis novos membros: Arábia Saudita, Emirados
Árabes, Egito, Etiópia, Argentina, Irã.
Enfim, mudam a escala e a capacidade de articulação geopolítica, e muda também
a capacidade de pressionar pela reforma das relações internacionais.
O papel das potências emergentes na reconfiguração
geopolítica global:
Cito o BRICS para
mostrar como o grupo de potências emergentes pode ser heterogêneo. Entre Brasil
e Irã há pouca semelhança no modo de comportamento internacional. O Brasil é,
em larga medida, uma potência internacional institucionalista, joga dentro das
regras, conta com uma diplomacia institucional e tem sido um ator muito
respeitador das regras ao longo dos dois últimos séculos. É diferente do Irã, por exemplo, que é um ator que não se comove com a institucionalidade
vigente. O Irã desrespeita certos protocolos e convenções no seu modo de ação
internacional. Tem sido um ator que desafia as regras. Isso é evidente ao longo
das últimas décadas e leva ao país o pesado ônus de arcar com sanções, embargos
e hostilização por boa parte da comunidade internacional.
Essas potências emergentes encontraram uma razão de
ser e um denominador comum para a ação nos últimos tempos. Elas se coesionaram
ao longo do tempo em função da percepção que hoje é cristalina: há uma
crescente clivagem entre os interesses e os modos de ação dos países do Atlântico Norte – ou Norte Global –, incluídos nesse
conceito países como Austrália, que não está geograficamente no hemisfério
Norte, mas compartilha dos valores e modos de ação do Atlântico Norte, e os
do Sul.
>>>> Sul
Global: 2/3 do mundo
De um lado, há o bloco do G7, que é a tropa de choque do Norte Global e, de outro lado, os
países do Sul Global, os
emergentes e aqueles que não são potências geopolíticas, mas engrossam o coro e
compõem essa maioria. Um total de 2/3 do mundo é composto por países do Sul
Global. Este bloco começa a se coesionar e agir com coesão e lógica interna
própria a partir dos estímulos que recebe do entorno.
Os últimos anos serviram para tornar mais nítida a
linha que divide o Norte do Sul Global geopoliticamente. Não falo apenas da
disparidade econômica. Até porque no Sul Global se insere a China que, pelas medidas
agregadas da economia, já faz parte do grupo das potências mundiais. China e
Rússia são países que têm assento permanente e veto no Conselho de Segurança da
ONU. Isso evidencia que não se trata meramente de uma diferenciação de
perspectiva econômica. É geopolítica. É leitura de mundo. É projeto. É visão
sobre a ordem internacional.
Essas visões vão ficando mais nítidas e se
diferenciando umas das outras. Os projetos do Norte e do Sul para o mundo vão
ficando muito diferentes entre si e a novidade histórica é, de certa maneira,
acelerada pelos eventos dos anos 20. Isto é, esses países emergentes e
revisionistas da ordem passaram a adotar uma lógica de atuação coletiva; isso
não havia antes. As ações tendiam a ser individualizadas, a ter menos senso de
direção; umas anulavam as outras. No contexto da Guerra Fria, alguns países eram “capturados” para serem parte da
zona de influência de Washington,
outros, de Moscou. As
coisas acabavam se bloqueando e os vetores se anulavam.
A novidade histórica é que este blocão do Sul Global, as potências
emergentes, começa a pensar em termos de ação coletiva. Não lembro de algum
bloco ou iniciativa institucional que tenha sido desenvolvido no marco das
relações internacionais modernas como o BRICS+, com 11 membros. É uma ação de potências médias,
em sua maioria, revisionistas, que se associam e têm capacidades para forçar
algum tipo de mudança.
Isso é diferente de organizações como o G77 [Grupo dos 77], movimento não
alinhado, com apelo simbólico, que pressionava, mas lhe faltava a força de
poder que o BRICS tem.
Esse bloco tem capacidade instalada, força econômica, tecnológica, ogiva
nuclear, penetração nas instituições diplomáticas globais, tem força regional,
é capilarizado, conta com capacidade energética incontrastável, basta olhar as
reservas de petróleo, de gás, seu poder e capacidade na perspectiva ambiental.
O Brasil é uma potência global em recursos hídricos, energéticos, de
biodiversidade, energia limpa e renovável, produção de alimentos.
O BRICS+ é
a encarnação e instanciação dessa nova fase das relações internacionais. De
certa maneira, a mera existência de um grupo de atores que agora se enxerga
como ator coletivo e busca reformar a ordem força o consenso da literatura a
ser revisado. Os pontos de vista para a teorização terão que mudar e incorporar
a existência desse desafio. Isso é urgente.
·
Como analisa as potências
emergentes à luz dos eventos mencionados anteriormente: pandemia de Covid-19,
guerra na Ucrânia e o conflito entre Israel e Hamas?
Dawisson Belém Lopes – Vamos à exemplificação. A pandemia de Covid-19 tornou claros alguns elementos. O
primeiro deles foi a ideia do “cada um por si hobbesiano” nas relações
internacionais. O ano de 2020 foi muito eloquente neste sentido. A ideia de solidariedade global fracassou.
Assistimos ao autosserviço. Países com mais capacidade industrial, tecnológica
e instalada tentaram servir aos seus interesses nacionais e, depois, distribuir
e vender as sobras de vacina. Foi um festival de nacionalismo sanitário nos EUA, Canadá. Israel foi o país que mais
rapidamente imunizou sua população com a primeira dose da vacina.
Os europeus brigaram entre si, desviando cargas de
suprimentos médicos. O primeiro momento da pandemia entre eles foi dramático. Depois, a União Europeia passou a agir com
uma lógica mais coletiva. Isso resultou na escala de vacinação, onde houve uma
priorização do Norte Global. Os gráficos da época mostram que enquanto o Norte
Global começava a ser imunizado em dezembro de 2020, em 2021, de forma ampla,
os países do Sul Global ficaram no fim da fila. Não houve solidariedade e
preocupação com a distribuição equânime e equilibrada da vacina. Houve atores
que exploraram geopoliticamente esse fato.
Talvez alguns de nós não recordam, mas a Rússia, a China e a Índia tinham
suas vacinas próprias, desenvolveram-nas e tentaram fazer a diplomacia da
vacina. A China, muito evidentemente. A Índia, de forma mais focada na região,
no sul da Ásia, e a Rússia, buscando cooperação com alguns países de governos
mais à esquerda. As vacinas russas chegavam à Argentina, ao México,
à Venezuela. A China foi
mais universalista. Tentou atender a África, que ficou no fim da fila. Brasil e
outros países se beneficiaram da diplomacia da vacina.
A pandemia deixou
muito clara a divisão entre o Norte e
o Sul Global. Reforçou essa
linha e coesinou o Sul em relação ao Norte e o Norte em relação ao Sul. A
pandemia foi um evento importante para entender esse movimento recente nas
relações internacionais e a forma como as potências emergentes desafiam
frontalmente a organização do mundo.
>>>> Guerra
na Ucrânia
O segundo momento é a guerra na Ucrânia, que pega de surpresa os
comentaristas internacionais. A Rússia invade
a Ucrânia e viola uma
regra do direito internacional público, a soberania ucraniana, e isso desencadeia
uma série de consequências. Vimos claramente o Norte Global se coesionar e tomar uma posição de rechaço
inequívoco à ação militar russa. Boa parte do mundo concordou com essa posição
inicialmente, inclusive o Sul
Global, porque boa parte do Sul Global é feita de países que
conquistaram tardiamente sua independência nacional. Aqui falamos da América
Latina, que conquista a independência no século XIX, e dos países africanos e
asiáticos, que conquistam a soberania territorial no século XX.
Então o Sul Global é soberanista. O Sul Global não
gosta de ver esse tipo de manifestação ou agressão à soberania de um Estado. O
princípio não agrada ao Sul Global. Ainda assim, com o passar dos meses, Sul e
Norte vão se diferenciando em relação ao conflito. Enquanto o Norte foi com
tudo e passou, num segundo momento, a impor sanções cada vez mais duras à
Rússia, os países do Sul Global não foram por esse caminho. Condenaram em
abstrato, nas instâncias devidas – alguns, porque vários não condenam a Rússia
–, mas a partir do momento em que o Norte passa a impor sanções econômicas, o
Sul se reposiciona.
De forma ampla, o Sul global não embarca na proposta de punir a Rússia na
perspectiva econômica, basicamente sob o mesmo argumento: seria uma autopunição
porque os países do Sul Global não podem se dar ao luxo de renunciar a algumas
rendas, de cooperação militar, de acesso a certos bens comuns. Há alianças
constituídas ao longo do tempo. Assim, o Sul Global se reposiciona no segundo
momento. Os blocos ficam claros. Hoje, 2/3 do mundo não impõem sanções à Rússia
e boa parte dos países do Sul aumentaram os fluxos econômicos e comerciais com
a Rússia, incluindo o Brasil.
>>>> Conflito
Israel-Hamas
Agora, o momento que se vive na contemporaneidade,
o conflito brutal entre Hamas e Israel tem um histórico muito longo. Nas duas
últimas semanas, vimos um ato terrorista do Hamas que ceifou a vida de 1.300
israelenses, que por si só deve ser lamentado e condenado. Isso é um trauma
para as gerações que estão envolvidas diretamente, mas que vem sendo retaliado
de maneira brutal, ilegal e desproporcional por Israel. A cifra de mortes de
palestinos já excedeu a de israelenses sob o argumento de que Israel está se
defendendo e precisa acabar com as estruturas físicas que servem ao terrorismo
no território de Gaza.
É o quadro das duas últimas semanas. O evento
também parece desencadear comportamentos no Norte e no Sul.
Os países têm reflexos e formas de reagir diferentes. Já está claro que há uma
sedimentação dos blocos e, enquanto o Norte parece mais próximo de uma
perspectiva israelense, sem comprar completamente o pacote em alguns casos, o
Sul Global parece mais inclinado a uma visão palestina, não do grupo
terrorista Hamas, mas do
país palestino. Esse é o atual estado de coisas. Esses três eventos
fortaleceram a clivagem entre o Norte e o Sul.
·
Quais as expectativas
para o futuro?
Dawisson Belém Lopes – Com boas razões, devemos assistir, nos próximos anos, um
reenquadramento amplo das relações
internacionais. Eu apostaria, pela próxima década, na produção de obras,
de novos clássicos, que nos ajudarão a pensar o admirável mundo que vem por aí.
Pontos de apoio vão mudando. É necessário, a bem da heurística, recentralizar
as narrativas das relações internacionais e produzir algo que incorpore mais
centralmente a mirada das potências emergentes. Há vida inteligente no Sul Global, nas academias das
potências emergentes, e qualquer projeto de explicar as relações internacionais
contemporâneas precisa levar em devida conta as perspectivas geopolíticas que
emergem com as potências emergentes.
Fonte: Entrevista com Dawisson Belém Lopes, para
IHU OnLine
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