Resgatar a
Venezuela após fracasso das sanções dos EUA favorece o Brasil, diz analista
Presidente
Lula aposta na reintegração da Venezuela ao cenário regional, apesar da forte
oposição de países como Chile, Uruguai e Paraguai. A Sputnik Brasil conversou
com especialista para saber qual o melhor caminho para retomar as relações com
Caracas e o que o Brasil tem a ganhar com isso.
O
início da presidência brasileira no Mercosul coloca a volta da Venezuela ao
bloco no topo da agenda. Ao assumir o cargo temporário, o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva pediu que "problemas de democracia" no país
fossem encarados pelos parceiros do bloco.
"Com
relação à questão da Venezuela, gente, todos os problemas que a gente tiver de
democracia, a gente não se esconde deles, a gente enfrenta", disse Lula
durante a Cúpula de Líderes do Mercosul.
Assim
como Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, a Venezuela é membro pleno do
Mercosul. No entanto, o país foi suspenso do bloco em 2017, por não atender às
cláusulas democráticas impostas pelo Protocolo de Ushuaia.
Desde
então, a Venezuela foi alvo de política ativa de isolamento, que buscava
impedir a participação de Caracas em foros regionais. Além disso, o país é alvo
de sanções econômicas impostas unilateralmente pelos Estados Unidos, que
impedem a sua participação plena no comércio internacional.
De
acordo com o professor de História da América da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (UERJ), Rafael Pinheiro de Araújo, o presidente Lula acerta ao
buscar reintegrar Caracas às relações internacionais.
"O
isolamento e o embargo econômico não contribuíram em nada para a solução da
crise venezuelana, pelo contrário geraram mais de 7,2 milhões de emigrantes,
6,2 milhões dos quais se encontram espalhados pela América Latina", disse
Araújo à Sputnik Brasil. "Está provado que as sanções só prolongam a crise
e punem os mais humildes."
Além
disso, a imposição do embargo econômico por parte dos EUA e aliados contra a
Venezuela "legitimou o discurso anti-imperialista do governo de Maduro e
deu carta branca para medidas eleitorais contestadas".
"Resgatar
a Venezuela é o correto a ser feito, apesar de que o Brasil ainda não parece
ter encontrado a forma ideal de lidar com essa questão", considerou
Araújo.
Por
onde começar?
Os
ganhos econômicos da reintegração venezuelana esbarram em obstáculos políticos,
impostos por diversos governos do continente americano. Durante a reunião do
Mercosul, Uruguai e Paraguai não se mostraram dispostos a dialogar com o
governo Maduro.
A
Argentina, aliada de Lula nessa empreitada, pode mudar de lado após as eleições
presidenciais, previstas para outubro de 2023.
"Independentemente
do que acontecer com a Argentina, já sabemos que Uruguai e Paraguai vão impor
resistência", disse Araújo. "A volta da Venezuela para o Mercosul
exigirá negociações difíceis."
O
especialista ainda nota que a oposição a Maduro não é monopólio de governos de
direita, uma vez que o presidente esquerdista do Chile, Gabriel Boric, também é
contra o diálogo com Caracas.
Nesse
sentido, o canal mais favorável para a normalização das relações diplomáticas
com a Venezuela é o bilateral. Brasil e Venezuela já retomaram sua agenda, como
demonstrado durante a visita de Maduro a Brasília em maio deste ano.
Na
ocasião, o Brasil considerou a renegociação da dívida venezuelana, estimada em
US$ 1 bilhão pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, conforme reportou o
jornal O Globo.
Apesar
da retomada econômica venezuelana ainda ser tímida, o retorno de Caracas ao
Mercosul garantiria a abertura de importante mercado para o Brasil, além de
acesso a recursos energéticos relevantes.
"A
Venezuela é a Arábia Saudita das Américas. Então mesmo em crise, é um parceiro
interessante não só para o Brasil, mas para a América Latina como um
todo", concluiu Araújo.
Ø
Conter a inflação e
encerrar o bloqueio: qual o caminho para ‘desdolarizar’ a Venezuela
Sofrendo
os impactos da crise econômica e da hiperinflação, a Venezuela convive hoje com
uma espécie de sistema plurimonetário informal que atinge praticamente todos os
setores da economia. Na prática, esse efeito colateral permite que os
venezuelanos possam utilizar tanto a moeda nacional, o bolívar, quanto o dólar
para realizar pagamentos e transações. A divisa estadunidense, que circula
livremente de maneira legal desde 2021, serviu como uma válvula de escape para
as graves desvalorizações que o bolívar sofreu na última década e viabilizou
uma modesta recuperação econômica que começou a dar frutos há pelo menos dois
anos.
A
complexa situação financeira não impede que o governo cogite abandonar o uso do
dólar. Ainda que não tenha apresentado um programa formal de desdolarização,
com metas produtivas e medidas monetárias para a tarefa, membros do Executivo
passaram a sinalizar positivamente a projetos que não dependam da moeda
estrangeira.
No
início de junho, quando participou de um fórum sobre economia realizado em São
Petesburgo, na Rússia, a vice-presidente da Venezuela que também é ministra da
Economia, Delcy Rodríguez, levantou a possibilidade de interromper a utilização
da moeda estadunidense no comércio petroleiro.
O
presidente Nicolás Maduro também chegou a comentar a proposta, dizendo que ela
ajudaria a aliviar os efeitos das sanções impostas pelos Estados Unidos. “Os
BRICS anunciaram que na próxima reunião vão discutir a proposta de criar uma
moeda. Um mundo novo para melhor, é esse mundo que está surgindo. Por isso
temos que estar atentos a essas iniciativas e ver como a Venezuela vai se
inserindo na iniciativa da desdolarização do mundo. Esse é nosso caminho, um caminho
novo, de uma nova economia, de liberdade, onde não se utilizem as moedas para
castigar e sancionar os povos”, disse o presidente durante uma transmissão da
emissora estatal VTV no final de junho.
O
enfrentamento à hegemonia do dólar vem ganhando destaque em debates econômicos
no chamado sul global, principalmente após países como China e Rússia, que
sofrem sanções financeiras dos Estados Unidos, começarem a cogitar mecanismos
de pagamentos e transações em suas próprias moedas. Para a Venezuela, que enfrenta
enormes dificuldades para negociar seu petróleo no mercado internacional por
conta do bloqueio, o surgimento de alternativas monetárias traria benefícios e
poderia acelerar a recuperação econômica.
Analistas,
entretanto, afirmam que o caminho é cheio de obstáculos e implicaria em
mudanças internas também. Para o ex-ministro da Economia da Venezuela Luis
Salas Rodríguez, o abandono do dólar como moeda global é algo inevitável, “como
ocorreu com o florim holandês e com a libra esterlina”.
“Agora
a pergunta é: qual moeda será a substituta? Será o yuan chinês, uma nova moeda
global comum, uma criptomoeda, ou distintas moedas de uma só vez? Eu acredito
que estamos caminhando a um longo período de transição no qual coexistirão
diversas moedas até que alguma delas assumir esse lugar hegemônico”, disse
ao Brasil de Fato.
Rodríguez
ainda menciona iniciativas regionais como as propostas sul-americanas para a
criação de moedas comuns que seriam utilizadas em transações entre os países da
região. No entanto, o economista afirma que nenhuma dessas propostas prevê a
criação de uma nova hegemonia monetária.
“O
que pode acontecer a curto prazo é uma espécie de moeda que funcione como
unidade de conta, como mecanismos de transação que estejam ancorados no valor
das demais moedas. Isso seria um passo rumo à desdolarização, mas não estaria
previsto o fim da hegemonia do dólar”, afirma.
O
ex-ministro também alerta para os “traumas que uma transição desse tipo poderia
trazer”, já que Washington se esforça para manter o posto de única emissora de
moeda global do planeta. “Boa parte dos avanços no processo de desdolarização
que estão ocorrendo hoje na economia russa e chinesa, por exemplo, passa
necessariamente pelos conflitos que ambos os países têm com os Estados Unidos e
com a União Europeia. Devemos evitar isso na América Latina, realizando essa
transição com paciência e improvisando o menos possível”, diz.
Mas
e o bolívar?
Se
no plano internacional uma desdolarização implicaria que outras divisas se
fortalecessem tanto quanto ou mais do que o dólar e os projetos de moedas
comuns em espaços multilaterais de comércio – como o Mercosul ou o BRICS –
estariam diretamente influenciadas pelas perturbações geopolíticas, a nível
nacional o cenário é ainda mais complexo.
Os
dólares que inundaram a economia a partir de 2018 e que só foram regularizados
em 2021 deixaram o país ainda mais suscetível às perturbações externas, além de
retirar poder de compra de trabalhadores que seguem recebendo salários em
bolívares e sofrem com as altas diárias da taxa de câmbio.
Apesar
disso, o processo não dá sinais de esgotamento. Segundo dados do Observatório
Venezuela de Finanças, entidade privada ligada à oposição, o dólar segue muito
presente na vida cotidiana dos venezuelanos. No mês de março, 47% de todos os
pagamentos no país foram realizados na moeda estadunidense e 97% dos comércios
afirmaram que basearam seus preços de acordo com o valor da divisa.
Para
o professor de Economia da Universidade Central da Venezuela (UCV) Elio Códova
Zerpa, um processo de desdolarização interna, que implicaria em um resgate de
confiança na moeda nacional, poderia auxiliar na recuperação do poder de compra
dos venezuelanos, mas tal movimento deveria ser acompanhado por medidas
econômicas e políticas tomadas pelo governo.
“O
que o venezuelano quer é estabilidade, tranquilidade, que seu salário possa
chegar até o fim do mês e, nesse contexto, a desdolarização aponta para isso se
nós pudermos chegar a um acordo e estabelecer mecanismos de compensação nesse
bloco de economias emergentes. Claro que, em paralelo, deve ser feito um
trabalho interno de estabilizar uma economia que tem mais de 930 sanções e que
a principal fonte de ingressos, o petróleo, não pode ser vendida livremente”,
afirma.
O
professor também alerta para os riscos inflacionários que uma retirada massiva
de dólares da economia sem planejamento poderia trazer, principalmente nesse
momento em que o país, apesar de ter abandonado a hiperinflação há um ano e
meio, ainda sofre com a pior inflação do continente. Segundo dados do Banco
Central da Venezuela, a inflação interanual registrada no mês de maio ficou em
429,2%. Para efeitos de comparação, a Argentina, que possui o segundo pior
índice da região, registrou no mesmo período um aumento interanual nos preços
de 114,3%.
Zerpa,
no entanto, afirma que sair da esfera do dólar de maneira controlada poderia
trazer benefícios inclusive para conter os preços em moeda local. “A recente
valorização do dólar significa o empobrecimento do resto das moedas, então a
taxa de câmbio se move e, em consequência, os preços sobem em moedas locais.
Esse fenômeno ocorre de maneira independente dos problemas estruturais da nossa
economia”, diz.
Entre
o político e o econômico
A
relação do governo do presidente Nicolás Maduro com o processo de dolarização
foi, ao longo dos anos, repleta de mudanças. Entre 2014 e 2017, período em que
o país entrou em recessão e começou a sentir os efeitos nocivos da queda nos
preços do barril de petróleo, o mandatário classificava a entrada de dólares na
economia comercial do país como uma tentativa de desestabilização que partia
dos Estados Unidos.
Nesse
momento, a Venezuela ainda mantinha um rígido controle cambial que proibia a
livre transação de moedas estrangeiras e mantinha todos os dólares sob controle
do Estado, obrigando empresas e pessoas físicas a negociarem diretamente com as
autoridades através da Comissão Nacional de Administração de Divisas (Cadivi),
substituído em 2014 pelo Centro Nacional de Comércio Exterior (Cencoex).
O
mecanismo, criado em 2003 pelo então presidente Hugo Chávez para impedir a fuga
de capitais durante o locaute petroleiro daquele ano, foi praticamente abolido
em 2019, após o Banco Central adotar uma política de câmbio flutuante e operar
em mesas de câmbio através dos bancos nacionais. Na prática, a decisão do
governo Maduro liberou os dólares na economia, o que foi formalizado em 2021
com a autorização para abertura de contas bancárias em moeda estadunidense.
As
mudanças nas normas vieram acompanhadas de uma mudança no discurso do governo,
já que o presidente venezuelano deixou de lado o discurso confrontativo contra
a moeda estrangeira e passou a classificar o processo com mais pragmatismo,
chegando a afirmar que ele era “uma válvula de escape”.
“São
contradições que devem ser entendidas nos diferentes contextos políticos”,
afirma o ex-ministro Luis Salas Rodríguez. Para o economista, o termo correto
para classificar as transformações monetárias que ocorreram no país seria
“desbolivarização”, já que foi a moeda nacional que foi sendo substituída por
outras divisas, inclusive pelo peso colombiano e pelo real brasileiro nas
regiões de fronteira. “A nível comercial, claro, podemos dizer que há uma
dolarização espontânea, parcial, mas esse fenômeno é típico de qualquer processo
de hiperinflação ao longo da história”, diz.
Rodríguez
explica que o governo reconheceu e normalizou a utilização de dólares na
economia com o objetivo de conter a hiperinflação, uma vez que precisava
reduzir a liquidez monetária em bolívares sem que isso implicasse em uma
redução drástica no consumo.
“O
governo fez do problema da dolarização uma virtude para poder aplicar uma
política anti-inflacionária que previa uma restrição máxima na circulação de
bolívares, algo que geraria uma contração econômica pelo choque na demanda.
Essa brecha foi resolvida pelo uso do dólar, que permitiu manter certa dinâmica
na economia”, afirma.
No
entanto, o ex-ministro aponta que a solução começa a demonstrar efeitos
colaterais, já que o plano está diretamente associado à restrição de liquidez
e, em consequência, um aumento de bolívares na economia poderia implicar em um
novo processo inflacionário.
“O
governo está sofrendo o vício de sua própria virtude, ou seja, sofrendo com
efeitos colaterais de seu próprio êxito. Foi uma política que teve êxito no
momento de combater a hiperinflação, mas como se baseia em uma restrição de
bolívares, qualquer medida de estímulo ao bolívar pode disparar um novo
processo inflacionário”, diz.
Para
Rodríguez, essa contradição na política econômica do atual governo seria um dos
principais obstáculos a uma iniciativa de desdolarização. “Se vamos
desdolarizar, precisamos aumentar os meios de pagamentos em bolívar e isso pode
disparar a inflação. O Banco Central não pode emitir mais bolívares se não
resolver os problemas estruturais de reserva que estão diretamente ligados às
sanções. Retirar todos os dólares da economia de maneira massiva e sem um plano
é impossível”, conclui.
Fonte:
Sputnik Brasil/Brasil de Fato
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