segunda-feira, 3 de julho de 2023

Renato Essenfelder: O adeus de um homem minúsculo

O homem minúsculo, o homúnculo, apagou as luzes do palácio e foi dormir. Depois de tanto bradar, gritar e babar, depois de ameaçar e conspirar à luz do dia, incessantemente, calou-se. Recolheu-se à insignificância que o espera. Amém.

Como os livros de história no futuro irão se referir a esse homem tão pequeno? Terá alguma importância, o seu nome, ou irão se interessar apenas pelo surto coletivo que se apossou de milhões de brasileiros, por meia década ao menos, e que resultou na eleição de um ninguém, um nada, um palhaço macabro? Um fantasma descarnado, insepulto e obcecado pela morte, sua especialidade, no qual milhões projetaram suas próprias fantasias autoritárias. Como? Por quê?

Quantos afinal projetaram naquele corpo sem vida, naquela vida sem alma, a virilidade perdida, as certezas corroídas, o desejo e a inveja da criança egoísta que brinca de motinho enquanto o mundo acaba em fome e doença. As pessoas morrem, ele debocha: e daí? Nada interrompe seu gozo sem fim.

Os livros de história no futuro talvez falem de um homem minúsculo que emergiu dos porões sujos do Congresso Nacional, já em avançado estado de decomposição moral e física, para canalizar todo o ressentimento de uma nação. Esse vórtice de maldade, cercado por gente ainda menor, ainda mais ridícula e ignorante orbitando ao redor de sua sombra.

Homens minúsculos, a história demonstra, podem projetar sombras imensas. Mas passam, os homens e suas sombras.

Ele tentou, com todas as minúsculas forças, tentou eternizar sua sombra horrível. Mas decrépito, fraco, bronco e insignificante, não conseguiu manter-se no poder. Porque destruir é uma coisa, mas construir é outra, muito mais difícil, muito mais complexa. O homem pequeno veio e apequenou o país inteiro, apequenou o Estado e as suas instituições, apequenou o povo, os amigos, as famílias. Destruiu, passou bois e boiadas, sufocou, boicotou, conspirou, enquanto ocupavamo-nos de sobreviver.

Mas então, enfim consciente da sua pequenez, emudeceu no canto do palácio vazio, vítima da própria insignificância.

Depois de destruir e destruir e destruir, descobriu-se incapaz, impotente, brocha. Um fantasma de brochidão e fraqueza, incapaz de fecundar o que quer que seja – planos, corpos, natureza. Homens pequenos não constroem coisa alguma.

Já era hora de dar um basta, já era hora de lembramos a nós mesmos que o homem pequeno é pequeno demais para um país tão grande.

 

Ø  Ao Brasil, com amor, verdade, memória e Justiça. Por Jamil Chade

 

Carta às instituições democráticas brasileiras,

No final de janeiro de 2019, eu me sentei ao lado da mesa do clã Bolsonaro, num café da manhã no luxuoso hotel no qual sua delegação se hospedou em Davos, aqui na Suíça. Entre os vários absurdos que escutei, um deles me deixou duvidando se de fato aquela era a delegação que comandava um dos maiores países do mundo.

O filho do então presidente, o deputado, perguntou a quem estava naquela mesa enquanto tentava usar as redes sociais:

“A palavra “bilionário” é com ou sem a letra “H”?

Não sei exatamente onde ele pensava colocá-la. Mas resposta de alguém na mesa foi ainda mais surpreendente: “Veja se aparece a cobrinha vermelha do corretor”.

Aquele crime à língua de Guimarães Rosa, Conceição Evaristo, dos meus amigos Itamar Vieira Junior, Juliana Monteiro e Eliane Brum e tantos outros escritores que eles jamais leram me acendeu um sinal de alerta: do que seriam capazes aquelas pessoas?

Descobrimos da pior forma possível, enterrando nossos irmãos, pais, amigos e, por pouco, nossa tão frágil democracia.

Nesta semana, a inelegibilidade de Bolsonaro abriu aquela esperança típica dos sonhadores de que isso significará o fim da sua carreira política, usada como plataforma para interesses pessoais.

Mas escrevo esta carta para dizer que isso não me basta, ainda que possa ser uma decisão importante para a saúde das instituições nacionais.

Eu, particularmente, vou cobrar três outros aspectos: verdade, memória e justiça.

Quero a verdade, para que a história recente do Brasil não se repita. Nem como tragédia e nem como farsa.

Verdade, essa palavra traduzida na capacidade de a população saber o que de fato ocorreu enquanto seu grupo usou o poder para se apoderar de instituições de estado. O que de fato foi considerado quando foram tomadas decisões que resultaram na morte de pessoas. O que estava em jogo quando, debochando do sofrimento de milhões de pessoas, buscava-se apenas a reeleição.

O direito à verdade é o direito à integridade de uma pessoa, a saber o que ocorreu diante da angústia instalada. Num cenário pós-guerra, as famílias querem a verdade sobre o destino dos corpos de seus filhos, quem disparou a bala, por qual ideal padeceram.

No Brasil, exigimos saber por qual motivo vidas foram criminosamente abreviadas. Qual era o objetivo quando a democracia foi estilhaçada no planalto central.

Quero também preservar a memória, para que a história recente do Brasil não se repita. Nem como tragédia e nem como farsa.

Para que as próximas gerações saibam exatamente o que ocorreu no Brasil entre 2019 e 2022, para que os livros de história tragam o isolamento que se estabeleceu para o país no mundo e para que cada cova cavada não seja a história de uma inevitabilidade.

Há sete décadas, a Alemanha destina milhões de euros para se desnazificar. Todos os dias. E parte desse trabalho é conduzido nas escolas e na conscientização do que representam as ideias que chegaram ao poder, nos anos 30.

A busca pela memória promove o debate, sem tabus. E, sem atalhos, esse é o caminho para promover uma reconciliação e fechar feridas.

Mas isso tampouco basta.

Quero e vou exigir ainda justiça, para que a história recente do Brasil não se repita. Nem como tragédia e nem como farsa.

Justiça, que Freud chamava de “o primeiro requisito da civilização”, não é erguer um picadeiro para que revanche seja feita. Justiça é, sobretudo, um reconhecimento da existência de vítimas e a proteção do futuro.

A democracia não morre apenas no escuro. Ela também morre em plena luz do dia, em publicações obscuras no diário oficial, em invasões de terras, na circulação de um vírus, na propagação do ódio, no uso da mentira como estratégia de poder.

E ela morre quando não lidamos com seus detratores e quando a impunidade vence.

Desta vez, a anistia não tem lugar.

Não estamos falando sobre o passado. Mas sobre a construção do futuro.

No dicionário da democracia, os conceitos de memória, verdade e justiça estão todos no mesmo capítulo. Aquele escrito com sangue e que tem como objetivo resgatar sociedades mergulhadas num ciclo de violência, recolocando num longo caminho de uma cultura da paz.

Já a letra “h” que eles procuravam, bem… sugiro guardá-la para usar na palavra “humanidade”, construída todos os dias com direitos e dignidade.

Saudações democráticas

 

Ø  Idolatrias. Por Julio Pompeu

 

Não há homenagem a herói, sábio ou santo que não escape à indiferença de quem passe por ela quotidianamente. As glórias são coisa do instante. Para além do seu tempo, é só esquecimento e indiferença. Quando muito, são lembrados em livros de história lidos por alunos desinteressados. Não há estátua que não acabe pontilhada de excrementos de pombos a enfeitar o vai e vem de uma multidão perdida com as mesquinharias do seu presente. Alguém distraído com uma cena assim poderia pensar que não há ídolos nesta Terra. Engana-se. Há os ídolos do presente. Por todos os lados. De todos os tipos.

Há os ídolos de metais, plásticos e vidros. Carregados para todos os lugares e ostentados não apenas pelas suas utilidades, mas, sobretudo, pelo que tê-los significa. As idolatrias das coisas são celebrações de si mesmo pelo olhar do outro. Um fazer sentir-se especial não por ser alguém especial, mas por ter algo especial. Algo que todos dizem ser especial pelas tecnologias especiais que tem. E que é caro porque tem as altas tecnologias que mal se sabe usar.

Também há os ídolos de carne e osso. Muitas vezes sem um bom caráter a animar as carnes. Idolatram-se genocidas, estelionatários, picaretas e heróis das mais variadas torpezas. Não se idolatra o que fazem, mas o que significam. E os significados quase sempre são melhores que o caráter. O que fazem, pouco importa, pois tudo vira motivo para reforçar o significado. Só se vê o significado. Pelo significado. Através do significado. Se fulano significa vida, quando tortura e mata é pela vida. Se significa honestidade, quando trai e rouba é por honestidade. A idolatria é cega aos fatos. Cega à realidade. Cega a tudo que não nos permita nos vermos como pessoas melhores do que somos porque idolatramos alguém.

Há, ainda, a mais abstrata das idolatrias. A das ideias. Quase sempre modelos de vida vividos só na cabeça de alguém que, depois, quer que sejam vividos pelos outros. O bom e o ruim da vida; quem presta e quem não presta; as genialidades e as burrices; tudo é julgado segundo a régua da ideia idolatrada. O idólatra só consegue ver o mundo pelas lentes da ideia idolatrada. Fora dela, não há razão. Nem sentido. Nem propósito. Nem diálogo. Só se dialoga dentro da ideia. Com quem concorda com ela. Quem discorda deve ser calado. Cancelado. Eliminado. Higienizando para que o mundo corresponda cada vez mais à ideia.

Ídolo é simulacro. Imagem de alguma coisa que não está ali. Antigamente, coisa divina. Hoje, coisa mundana. É a marca de uma ausência sentida. Da ausência de convicções verdadeiras. De um caráter verdadeiro. De virtudes verdadeiras. De um ser verdadeiro. Carência de uma vida verdadeira em suas alegrias e dores. Todo idólatra é alguém que faz da sua vida a imagem da vida que lhe falta. Toda idolatria é como a de narciso, que ama a imagem de si porque não consegue amar a si mesmo tal como é. E tampouco aos outros como eles são, seja lá como forem. Toda idolatria é perversa.

Mas toda idolatria passa. Torna-se estátua solitária e suja. Esquecida. Lembrança de um vazio no vazio da praça. E é no vazio de ídolos que se pode ver as coisas como são, com suas belezas e feiuras. Só no vazio de ídolos que se pode realmente ver a si mesmo e aos outros. Só no vazio de ídolos que se pode realmente respeitar e amar o outro pelo que ele é e não pela imagem que ele significa para quem o vê. Só no vazio de ídolos que o vazio da vida pode, realmente, ser preenchido.

 

Fonte: Combate ao Racismo Ambiental/UOL/Terapia Política

 

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