Plano safra de
agricultura familiar – repetindo erros
O
novo plano de safra, que inaugura a ação do novo governo Lula para a
agricultura familiar, foi festejado pelos movimentos sociais em cerimônia com a
presença do presidente em ato apoteótico. No entanto, trata-se da reprodução,
sem qualquer modificação, do modelo de crédito iniciado pelo presidente
Fernando Henrique Cardoso em 1996, quando foi criado o Programa Nacional de
Apoio à Agricultura Familiar, PRONAF e o próprio e recém recriado Ministério do
Desenvolvimento Agrário, MDA.
Qual
a orientação deste crédito? Ao longo de todos estes 27 anos, do governo liberal
de FHC, passando pelos governos ditos populares de Lula e de Dilma Rousseff,
pelo governo golpista de Michel Temer e o governo protofascista de Jair
Bolsonaro, o crédito facilitado para a agricultura familiar foi orientado para
promover o uso de insumos químicos (adubos e agrotóxicos), sementes melhoradas
(híbridas e transgênicas) para melhor aproveitarem adubos sintéticos e uso de
maquinário agrícola (tratores, colheitadeiras).
Esse
modelo produtivo, idêntico ao adotado pelo agronegócio de grande porte,
responde a um paradigma produtivo que busca a máxima artificialização e
controle do meio ambiente para favorecer uma monocultura. É um modelo
sabidamente insustentável em qualquer escala em que for aplicado, mas é mais
arriscado para os agricultores familiares. Dependendo de combustíveis fósseis
em todas as suas operações no campo e na produção dos insumos e máquinas, o
modelo está à mercê dos preços e disponibilidade de petróleo e gás e de fósforo
e potássio. E todos estes insumos estão em fase de esgotamento e, em
consequência, com custos sempre mais elevados.
O
crédito altamente subsidiado pelo governo permitiu que uma camada
significativa, mas bastante minoritária, da agricultura familiar tivesse acesso
a estes insumos e provocou uma enorme diferenciação entre os beneficiários. A
parcela mais capitalizada ou mais bem-dotada em termos de condições naturais de
produção (solos de melhor qualidade, clima mais favorável, sobretudo na região
sul, relevo mais plano, áreas maiores) progrediu em termos de volume de
produção e melhoria de renda. A maioria, entretanto, teve dificuldades em pagar
os créditos e muitos quebraram, apesar das várias anistias e renegociações de
dívidas concedidas pelos governos populares.
Se
olharmos para as negociações anuais entre as organizações dos agricultores
familiares (CONTAG, CONTRAF e MST, MPA e MMC) e os governos populares (Abril
Vermelho, Marcha das Margaridas, outros) vamos notar que o foco das
reivindicações foi se dirigindo cada vez mais para tentar enfrentar o problema
do endividamento, sem nunca o resolver de forma estável. Isto lembrando que
estes governos criaram seguros de safra para cobrir os riscos climáticos para a
produção. Estes riscos foram se tornando cada vez mais importantes ao longo
destes anos, com secas mais longas e intensas na região nordeste e com a
ampliação, no tempo e no rigor, do chamado veranico na região sul. A
instabilidade do regime de chuvas foi se agravando sem limites e não houve
seguro ou subsídio que desse conta do estrago.
Muitos
analistas apontam para o fato de que o agronegócio também foi afetado por todos
estes fatores e, no entanto, parece ter convivido melhor com eles. É bom notar
que o agronegócio recebeu apoios ainda mais importantes por parte dos governos
e que os subsídios, facilitação de créditos e isenção de impostos também os
favoreceram. Mas há um outro fator que deu vantagens ao agronegócio: a escolha
do que produzir. O agronegócio centrou sua atividade sobretudo em commodities do
mercado internacional ou produtos dirigidos para o mercado interno de alta
renda.
Quando
se olha para a evolução da produção da agricultura familiar no período indicado
acima, verificamos que a produção de alimentos para o mercado interno,
sobretudo os chamados alimentos de base como arroz, feijão, milho e mandioca,
caiu de forma sistemática, enquanto a produção voltada para as commodities como
soja e milho (para ração animal) de exportação só fez crescer.
Quase
metade de todo o crédito distribuído pelo PRONAF foi dirigido a projetos de
produção de commodities no final do governo de Dilma Rousseff,
sobretudo na região sul, que voltou a concentrar a maior parte dos créditos do
programa depois de alguns anos de diversificação regional. Os projetos dos
agricultores da região sul foram ficando cada vez mais caros, inclusive levando
à criação de novas categorias do PRONAF, com limites mais elevados de créditos.
Qual a razão para esta opção? O risco financeiro dos créditos levou estes
agricultores a escolherem produtos com preços mais altos e mais estáveis e, nas
condições do mercado nacional e do internacional, as commodities são
mais rentáveis.
A
segunda política mais importante dos governos populares, no que toca a
agricultura familiar, foi a de assistência técnica e extensão rural, ATER. Apoiando-se
sobretudo nas entidades dos governos estaduais de assistência técnica e
extensão rural, as EMATER, a política de assistência técnica convergiu para
estimular o uso do pacote técnico típico do agronegócio, em sintonia com a
orientação do crédito.
Qual
o efeito destas políticas para a categoria dos agricultores familiares? Já foi
dito que elas favoreceram a inclusão de parte deste setor na economia de commodities,
mas qual o impacto sobre a renda e a sustentabilidade dos produtores?
Se
olharmos para os resultados dos censos agropecuários de 2006 e de 2017,
constatamos que o número de famílias camponesas diminuiu fortemente no período.
São, aproximadamente, menos 470 mil famílias, 10,7% das que existiam em todo o
país. Isto aconteceu apesar de terem sido assentadas perto de 480 mil famílias
no programa de Reforma Agrária. Ou seja, quase um milhão de famílias deixaram o
campo em 11 anos.
Estes
números cobram uma explicação e nem na campanha eleitoral ou na fase de
transição entre os governos de Jair Bolsonaro e de Lula alguém se debruçou
sobre este dado importantíssimo para avaliar o efeito da ação governamental sob
responsabilidade da esquerda.
Qual
a origem geográfica desta pesada evasão de camponeses? O maior número veio do
Nordeste, quase 350 mil famílias (16% do total de agricultura familiar na
região). Da região Sul saíram quase 185 mil (22%). Da região Sudeste saíram 11
mil. Nas regiões Norte e Centro Oeste o número de agricultores familiares
aumentou, 68 mil e 6 mil respectivamente.
Qual
a causa destas evasões? Há um sabido e estudado processo de envelhecimento da
população rural, com agricultores se aposentando e sem sucessores. Mas os
números citados são muito altos para esta ser a explicação principal. A evasão
no Nordeste é histórica e tem a ver com o impacto cada vez mais importante de
secas cada vez mais longas e intensas. Mas também foi constatado um alto nível
de inadimplência nos empréstimos do PRONAF na região, o que sugere que esta
pode ter sido também uma causa importante. No entanto, o tipo de empréstimo que
prevaleceu na região Nordeste, conhecido como PRONAF B, não se voltou para a
promoção do uso de insumos químicos e sementes melhoradas, como nas regiões Sul
e Sudeste.
Na
região Sul, a que mais recebeu créditos do PRONAF, a orientação técnica foi
voltada para as monoculturas de soja e milho e para o uso de adubos químicos,
agrotóxicos, sementes transgênicas e maquinário agrícola. É neste público e
nesta região que se deveria avaliar o programa de crédito, sobretudo pelos
valores despendidos tanto no volume total como no volume por beneficiário. E o
indicativo é que uma boa parte dos agricultores que deixaram o campo o fizeram
por problemas financeiros.
Durante
a campanha Lula adotou a política de prometer “mais do mesmo”, idealizando as
realizações do seu governo, já que o de Dilma Rousseff foi mal avaliado. Deu
certo eleitoralmente, mas a equipe de transição que tratou do tema da
agricultura familiar adotou uma importante mudança em relação aos tempos
passados: a meta do novo Ministério do Desenvolvimento Agrário passou a ser a
promoção da agroecologia como estratégia para dar sustentabilidade à produção
desta categoria.
Sem
ter havido uma avaliação das políticas aplicadas no passado, esta decisão a
favor da agroecologia implica em uma crítica implícita aos governos de Lula, já
que neles, assim como nos de Dilma Rousseff, prevaleceu amplamente a promoção
das práticas do agronegócio visando a sua adoção pela agricultura familiar. As
medidas de apoio à produção agroecológica foram residuais.
O
que a equipe de transição não fez foi discutir como traçar políticas de
crédito, de assistência técnica e extensão rural, de seguro e de acesso a
mercados para realizar o objetivo definido. A experiência mostra que as
medidas, bem marginais, adotadas nos governos passados para favorecer a
agroecologia tiveram muitos problemas. Os créditos PRONAF agroecologia,
semiárido e floresta foram mal formulados e tiveram pouquíssimos acessos; as
chamadas de assistência técnica e extensão rural para financiamento de projetos
de promoção da agroecologia também tiveram enormes problemas de formulação e
execução. As compras da CONAB (PAA, Programa de Aquisição de Alimentos)
favorecendo produtos agroecológicos tiveram melhores resultados, mas os valores
foram diminutos e beneficiaram poucos agricultores.
O
novo Ministério do Desenvolvimento Agrário tem dificuldades em fazer esta
revisão das políticas. Em primeiro lugar, porque virou uma praxe desde os
governos populares escantear qualquer crítica às ações do governo. As quedas de
braço entre membros do Conselho do Ministério do Desenvolvimento Agrário
(CONDRAF) e técnicos e dirigentes deste ministério foram constantes e
resultaram em pelo menos um enfrentamento público por ocasião da primeira
conferência nacional de assistência técnica e extensão rural, no governo Dilma
Rousseff, com Pepe Vargas como ministro.
Já
o programa de crédito ficou blindado pelo Ministério do Desenvolvimento
Agrário, que conseguiu impedir a formação de um Comitê de
acompanhamento/avaliação da política no CONDRAF ao longo de 13 anos. Apenas no
apagar das luzes do governo Dilma conseguimos criar um grupo de trabalho para
avaliar esta política, apoiado pelo ministro Patrus Ananias. Este GT chegou a
reunir uns 10 pesquisadores de universidades do nordeste, sudeste e sul,
técnicos de ONGs, agentes financeiros e responsáveis governamentais. Durou
pouco. O golpe em Dilma Rousseff matou essa iniciativa no nascedouro.
Em
segundo lugar, o novo Ministério do Desenvolvimento Agrário está composto por
um grupo pequeno de técnicos, longe do número de pessoas que nele trabalhavam
quando foi extinto por Michel Temer. O pior é que não consegui identificar,
entre os que hoje se encarregam deste ministério, algum dos membros das equipes
que nele trabalharam nos tempos de Lula I e II e de Dilma I e I/3. Não há hoje,
na equipe atual, a memória viva das experiências, exitosas ou fracassadas, dos
períodos anteriores.
De
todas as políticas em prol da agricultura familiar, a de maior impacto e de
maior durabilidade foi a de crédito. Ela foi concebida e dirigida por um
técnico altamente competente, João Luiz Guadagnin, desde o governo FHC até a
queda de Dilma. Foi o único programa a que Michel Temer e Jair Bolsonaro deram
continuidade, promovendo técnicos que já trabalhavam no mesmo. E este programa,
com todos os seus erros de concepção, está tendo continuidade neste governo,
sem qualquer avaliação crítica. Me pergunto como é que o MST, importante
participante do ato de lançamento do Plano de Safra no Planalto, recebeu esta
“nova” proposta. Desde o governo Dilma Rousseff o MST tornou-se um defensor
coerente e incisivo da agroecologia, assim como a CONTRAF e a CONTAG, embora
estes dois últimos sejam menos convictos desta proposta, pelo menos como
proposta universal.
A
mesma crítica pode ser feita ao segundo dos programas mais importantes do
antigo ou do novo Ministério do Desenvolvimento Agrário: o de assistência
técnica e extensão rural. As novas chamadas para projetos de assistência
técnica repetiram praticamente todos os vícios e erros das chamadas anteriores,
em 2010/2016.
A
necessidade de se fazer um planejamento rigoroso, baseado numa revisão das
políticas passadas e dos seus efeitos é premente ou veremos a repetição dos
resultados anteriores. A meu ver, não é apenas necessário discutir cada um
desses programas, mas a própria abordagem do governo para a promoção do
desenvolvimento da agricultura familiar.
Com
efeito, não é de hoje que eu comparo os métodos e práticas dos projetos de
promoção do desenvolvimento da agricultura familiar de entidades da ONU, como a
FAO e o PNUD e as adotadas pelos governos populares. No Brasil as iniciativas
de apoio à produção são distribuídas por várias políticas distintas (crédito,
assistência técnica e extensão rural, compras governamentais, acesso a
mercados, beneficiamento, seguro, pesquisa). Nos programas de desenvolvimento
que acompanhei na África todas estas políticas estavam integradas em cada um
dos projetos, com um só orçamento sendo gerido harmonicamente.
Na
prática, a diferença se traduz (aqui) na necessidade de cada entidade que
trabalha com um público definido de agricultores formular projetos para acessar
os recursos que necessita: um projeto para a assistência técnica e extensão
rural, centenas de projetos individuais para cada agricultor acessar crédito,
centenas de outros para acessar o PAA, sendo que não existem recursos para
projetos que envolvam pesquisas participativas ou para facilitar a integração
com entidades como a EMBRAPA ou as equivalentes estaduais. Além dessa dispersão
de recursos provocar enormes dificuldades operacionais para as equipes de
apoio, existem incoerências na orientação de cada uma das políticas.
O
modelo atual de políticas separadas funciona para a promoção de modelos
convencionais de produção, mas são totalmente ineficazes para a promoção da
produção agroecológica.
Se
não for realizado um intenso esforço de avaliação das políticas e dos
mecanismos de financiamento da promoção da transição agroecológica vamos
assistir a repetição dos problemas já vividos pela agricultura familiar ao
longo das últimas três décadas. Mais do mesmo não é uma solução.
Fonte:
Por Jean Marc von der Weid, em A Terra é Redonda
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