quarta-feira, 5 de julho de 2023

Paulo Kliass: A urgência da nova industrialização

As últimas décadas foram marcadas pela consolidação da hegemonia do financismo em nossa sociedade. Em quase todas as esferas de nosso convívio social e de nossa articulação econômica a dominação do sistema financeiro condicionou a regressão do processo industrializante, ao mesmo tempo em que se verificou o avanço dos modelos associados ao paradigma neocolonial de exportação de commodities. Por outro lado, esse período foi igualmente marcado pelos efeitos de um ingresso irresponsável do Brasil na esfera da globalização, sem que tivessem sido programadas as necessárias medidas de proteção do tecido social ou de preservação das estruturas econômicas e produtivas consideradas mais estratégicas para o país.

A participação da indústria no Produto Interno Bruto (PIB) experimentou uma queda acentuada e contínua a partir do início da década de 1990. A data simbólica pode ser identificada com a eleição do governo Collor e a adoção de medidas extremas da agenda do chamado Consenso de Washington, dentre elas um programa de liberalização comercial de forma unilateral. Com isso, todo o esforço das políticas de natureza desenvolvimentista das décadas que se seguiram ao final da Segunda Guerra Mundial e mesmo o modelo pró industrialização do regime militar que se instalou em 1964 foram rapidamente consumidos. O gráfico abaixo ilustra o fenômeno, onde quatro décadas de aumento da participação da indústria no PIB são revertidas em apenas um único decênio.

Os defensores de tal estratégia buscavam argumentar que a perda de participação relativa do produto industrial no conjunto das atividades econômicas do país não era necessariamente um problema. E dá-lhe falação a respeito dos casos dos países mais desenvolvidos, onde esse processo foi substituído pela chamada “revolução digital”, quando os setores dos serviços ligados ao conhecimento e à inovação tecnológica realmente cresceram no conjunto do PIB. Mas o caso brasileiro é bastante distinto, uma vez que as atividades que mais cresceram não eram geradoras de alto valor agregado. Nossos serviços emblemáticos foram áreas como telemarketing e transportes por aplicativos. Por outro lado, o crescimento expressivo do agronegócio e da exploração de minérios também contribuiu para manter o padrão de baixa agregação de valor.

·         Reindustrialização ou neoindustrialização?

Apesar da evidência dos equívocos de tal caminho adotado, a tomada de consciência a respeito da necessidade de reverter os efeitos da desindustrialização levou muito tempo para se manifestar. Mesmo as parcelas das classes dominantes não diretamente beneficiadas por esse processo aderiram ao modelo que as comprimia em termos econômicos, tudo isso em nome de uma adesão aparentemente irracional aos pressupostos ideológicos do neoliberalismo. Apenas depois da crise econômico-financeira de 2008/9 é que a questão da necessidade de reverter tal tendência e propor uma reindustrialização veio a ganhar maior destaque na agenda política nacional. Afinal, até então o esmagamento patrocinado pelo ideário neoliberal convertia expressões como “política industrial” em ofensa e palavrão. Tudo aquilo que cheirasse a Estado ou a intervenção pública na seara econômica era bombardeado no nascedouro.

Somente agora, com o debate em torno do programa de Lula 3.0 e o início de seu governo, é que o tema ganha a relevância na agenda governamental e no debate mais amplo na sociedade. A nomeação do vice-presidente para o importante cargo de ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDICS) oferece a leitura de que o assunto deve ganhar maior relevo e densidade na pauta do governo. Além da presença de Alckmin na pasta, foram recuperados instrumentos públicos para o desenvolvimento da política industrial. Os compromissos em fortalecer as capacidades de financiamento e empréstimo do BNDES permitem antever uma recuperação do banco como importante agente da reversão da tendência desindustrializante.

Por outro lado, ganha destaque também a reconstituição do Conselho Nacional do Desenvolvimento Industrial (CNDI), que tinha sido criado por Lula em 2004, mas nunca havia ocupado um lugar de destaque tão necessário na agenda da recuperação do tempo perdido na questão industrial. Pois agora a preocupação com o tema parece ser outra. O governo publicou em abril um novo decreto a respeito e as movimentações na Esplanada parecem indicar que a questão da indústria também voltou. O Conselho foi fortalecido e ampliado. Está composto por 20 ministros, pelo presidente do BNDES e por vinte e um representantes de entidades da sociedade civil. De acordo com portaria do MDICS, estarão presentes associações de classe empresarial e as centrais sindicais.

·         A volta do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial

A doutora em economia Verena Hitner Barros foi nomeada para a Secretaria Executiva do órgão e a agenda proposta para debate no colegiado aponta para o termo “neoindustrialização por missões”. O objetivo é estabelecer diretrizes que não se restrinjam exclusivamente a recuperar padrões de capacidade industrial que foram perdidos em consequência da orientação imposta pelo neoliberalismo. O prefixo “neo” oferece o sentido de dotar o Brasil de uma nova estrutura industrial, antenada com o que se encontra na vanguarda tecnológica dos tempos atuais no resto do mundo. Assim o que se pretende é ampliar e superar a mera reindustrialização, buscando alcançar um novo patamar de qualidade na capacidade industrial brasileira. Já a referência às “missões” se refere àquelas abordagens mais modernas adotadas nos processos de elaboração e implementação de políticas públicas.

Quando se trabalha com o conceito de política industrial, a referência nos remete a um programa amplo de governo. A vontade política de adotar esse instrumento implica uma mudança substantiva na postura do setor público perante o processo econômico. Política industrial geralmente vem acompanhada de algum grau de direcionamento dos órgãos públicos para que esse objetivo seja alcançado, rompendo com a passividade liberal de deixar que tudo seja resolvido exclusivamente pela livre ação das forças de oferta e demanda. O estabelecimento de uma política industrial supõe, por exemplo, o uso de instrumentos como a desoneração tributária, as linhas de crédito subsidiado e a política de compras governamentais. Mas o que se recomenda, por outro lado, é a exigência de contrapartidas das empresas e dos setores beneficiados, tais como o compromisso com a geração de emprego, o respeito a determinações de sustentabilidade, o uso de parâmetros de conteúdo nacional e a geração de tecnologia de interesse do país.

O que se espera é que tal processo venha acompanhado da recuperação também da capacidade de planejamento no interior do Estado. Isso significa adoção de planos de desenvolvimento de médio e longo prazos, para além de programas emergenciais como o PAC ou mesmo posturas burocráticas perante o Plano Plurianual (PPA). O que se faz necessário é dotar o governo federal dos meios de preparar seu Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), tal como previsto na própria Constituição e nunca colocado em prática desde 1988. Assim, com toda a certeza, a agenda da nova indústria ganharia destaque como um dos elementos fundantes do planejamento governamental.

A divulgação dos primeiros resultados do Censo 2020 apresentam elementos preocupantes quanto à capacidade de o Brasil reverter a tendência à estagnação ou de permanecermos com baixas taxas de crescimento do Produto. Ora, um dos meios de se alavancar o potencial de desenvolvimento econômico, social e ambiental é justamente avançarmos na capacitação de processos que proporcionem a geração de alto valor agregado. Mas isso supõe superar o modelo orientado apenas aos serviços de baixa qualificação ou ao modelo primário exportador. Eis uma das principais razões que justificam a urgência da neoindustrialização.

 

Ø  Pochmann: Sinais da mudança de época

 

O governo da Argentina pagou ao Fundo Monetário Internacional (FMI) em yuans (moeda chinesa), com base no Direito Especial de Saque (DES), a quantia referente a 2,7 bilhões de dólares. O acontecimento, ademais de inédito desde a criação do FMI em 1944, anuncia a profunda mudança de época em curso na Ordem Mundial.

Isso porque não se confirmou a expectativa trazida pelo fim da Guerra Fria (1947-1991) de um novo ciclo de expansão econômica com inclusão social, estabilidade política e paz. Com o desmoronamento da União Soviética, não se concretizou o anúncio de um “novo século estadunidense”, assentado no retorno aos anos de ouro do capitalismo, como na experiência passada no fim da Guerra Mundial, diante da derrota do nazifascismo.

Após quase quatro décadas da globalização liderada pelos Estados Unidos, a ilusão foi desfeita. A prevalência da unipolaridade e unilateralidade como governança neoliberal do mundo fez valer o crescente poder das altas finanças e das grandes corporações transnacionais.

Com isso, uma espécie de neocolonização financeira e extrativa da natureza foi posta em marcha no mundo com elevada expropriação do trabalho humano. Pelo Consenso de Washington (1989), por exemplo, a desindustrialização no Ocidente avançou de forma compatível com o esvaziamento da capacidade de governança interna em grande parte dos países, cada vez mais subordinados aos ditames dos donos do dinheiro.

As próprias instituições multilaterais do sistema das Nações Unidas foram enfraquecidas e desconectadas da atuação para a qual foram constituídas ainda no segundo pós-guerra mundial. Ao mesmo tempo, deu-se o reaparecimento de uma outra Divisão Internacional do Trabalho amplamente apoiada na precarização do mundo do labor.

Simultaneamente, a generalização da combinação das dívidas financeiras com a difusão das privatizações tornou os EUA uma economia de elevado custo. O resultado foi a própria desindustrialização interna, o que lhe retirou a posição de liderança industrial, comparável ao declínio do Reino Unido ocorrido desde o final do século 19.

Assim, o encerramento da fase de expansão produtiva foi sucedido pelo ciclo de ganhos financeiros (juros, lucros de investimentos estrangeiros e créditos dos bancos centrais a inflar ganhos de capital). Sem gerar riqueza assentada no trabalho pelo complexo industrial, coube à globalização unipolar e unilateral operar com a forma financeira neocolonial em paralelo ao uso recorrente de forças militares e dos esquemas de cancelamentos e sanções econômicas.

Para além das questões econômicas, financeiras e comerciais referentes à gestão conjuntural e emergencial no conjunto dos países da atualidade, emergiu como centralidade a estruturação de uma nova Divisão Internacional do Trabalho em plena Era Digital. O avanço do processo de digitalização das economias e sociedades conduz à separação do mundo em dois agrupamentos distintos de países.

De um lado, as nações que produzem e exportam bens e serviços digitais. De outro, os países que dependem fundamentalmente das importações de bens e serviços digitais, pois os consomem sem produzi-los internamente.

Na maior parte das vezes, as economias importadoras de bens e serviços digitais terminam financiando o consumo moderno com a produção e exportação de commodities minerais e vegetais. Isso muitas vezes é combinado à pobreza e baixos salários de ampla parcela da população com a intensa agressão ao meio ambiente.

Por ser de maior valor agregado e conteúdo tecnológico, a produção de bens e serviços digitais tem concedido aos países exportadores maiores vantagens comparativas no comércio internacional. Isso tem ocorrido, muitas vezes, devido à deterioração dos termos de troca que impulsiona o deslocamento de renda e riqueza gerada pela estrutura produtiva primário-exportadora dos países importadores aos exportadores de bens e serviços digitais.

Com isso, o curso da Divisão Internacional do Trabalho se assenta no retomo às condições de produção e reprodução do subdesenvolvimento. Pelo deslocamento do antigo centro dinâmico do Ocidente para o Oriente, acontece a reconfiguração periférica dos países em novas bases, permeada pela desigualdade econômica e pela emergência climática.

Nos dias de hoje, contudo, a prevalência do enorme desequilíbrio relacionado à repartição da renda, riqueza e poder se relaciona ao avanço da própria desordem em dimensão global. O seu enfrentamento, ademais de urgente, precisa ocorrer em nova base geopolítica e econômica mundial.

Isso dificilmente ocorrerá de forma espontânea. A redefinição geopolítica é parte das tarefas que o Brics pode e deve perfeitamente conduzir neste final do primeiro quarto do século 21. Para tanto, o desenvolvimento deve ser alcançado sem que se reproduza de forma desigualmente combinada.

 

Fonte: Outras Palavras

 

Nenhum comentário: