Os planos da líder
que ajudou a restringir acesso a aborto nos EUA
Kristan
Hawkins começou a dormir no escritório quando tinha 23 anos.
Anos
mais tarde, sua organização Estudantes pela Vida da América (SFLA, na sigla em
inglês) viria a se tornar um dos maiores e mais influentes grupos de combate ao
aborto dos Estados Unidos. E, mais de uma década depois, ela apareceria em
frente à Suprema Corte americana para anunciar aos seus apoiadores triunfantes
que o direito ao aborto no país havia sido revogado.
Mas,
em 2008, a sede da SFLA ficava em Arlington, no Estado americano da Virgínia. E
a cidade mais próxima onde Hawkins e seu marido conseguiram comprar uma casa
ficava a 90 minutos de distância.
Inicialmente,
ela tentou fazer a viagem todos os dias, saindo de casa às cinco horas da manhã
e voltando às oito da noite. Mas o trajeto era longo demais e a gasolina, muito
cara.
Ela
então comprou um sofá barato da rede de lojas Ikea, imaginando se poderia
encaixar 30 horas de trabalho em dois dias, antes de voltar para casa dormir.
Hawkins tomava banho em uma academia próxima e usava o sofá novo para cochilar.
E,
quando descobriu que o escritório era também o lar de um ninho de baratas, ela
comprou uma máscara para dormir e começou a passar as noites com as luzes acesas
para mantê-las afastadas.
“Era
terrível, terrível...”, comenta seu marido Jonathan sobre aquele período. Eles
estavam casados há apenas dois anos.
Mas
Kristan Hawkins era incansável e tinha um trabalho pela frente. Ela queria ver
a revogação do caso Roe x Wade, eliminando o direito ao aborto no país, que
havia sido protegido por quase meio século.
Em
junho de 2022, ela conseguiu. Os ativistas favoráveis ao direito ao aborto
afirmam que o ativismo de Hawkins ajudou a eliminar o acesso ao aborto de cerca
de 20 milhões de mulheres e levou o país a uma crise de saúde pública.
Agora,
Hawkins tem um novo objetivo, mais ambicioso: ela quer tornar o aborto
impensável e proibido em todo o território americano.
No
ano que se seguiu à revogação do caso Roe x Wade, Hawkins trabalhou
intensamente. Ela aumentou o tamanho e o alcance da SFLA e usou esse poder para
pressionar os legislativos estaduais a aprovar proibições cada vez mais
severas.
“É
a questão do momento, sabe? OK, toda a América está assistindo, pise no acelerador
com tudo, agora”, ela diz. “Mais, mais, mais, mais, mais.”
Hawkins
agora tem 38 anos e é mais audaciosa e inabalável do que seus antecessores. Ela
é o reflexo de uma nova geração de ativistas trabalhando rumo ao seu objetivo:
a proibição federal do aborto nos Estados Unidos, a partir da concepção.
“Ela
representa a virada do movimento para a direita... e até onde o movimento pode
chegar”, afirma a professora de direito Mary Ziegler, da Universidade da
Califórnia em Davis, nos Estados Unidos. Ziegler é uma das principais
especialistas no debate sobre o aborto no país.
“Kristan
é muito importante para compreender o que vem em seguida”, diz.
Os
planos de Hawkins seguem a direção contrária da opinião pública — a maioria dos
cidadãos americanos apoia o acesso legal ao aborto — e até alguns republicanos
afirmam que ela está indo muito longe, rápido demais.
Mas
a revogação do caso Roe x Wade também era considerada um objetivo distante. E,
agora, um ano depois, Hawkins acredita que irá liderar o movimento contra o
aborto rumo a outra vitória improvável.
• A trajetória
A
maioria dos ativistas contrários ao aborto tem uma história de origem, um
momento que, nas suas palavras, colocou-os em uma missão a favor da vida. O
momento de Kristan Hawkins veio quando ela tinha 15 anos.
Ela
morava na Virgínia Ocidental quando começou a fazer trabalhos voluntários em um
centro de gravidez de risco — uma espécie de instituição para dissuadir as
mulheres de abortar, oferecendo aconselhamento pró-vida, ultrassons e auxílio
material, como fraldas, por exemplo.
Antes
que pudesse começar a trabalhar, Hawkins precisou aprender o que era o aborto,
para entender como funcionava.
Durante
este processo, alguém da clínica ofereceu a ela uma fita VHS de Silent Scream
(“Grito silencioso”, em tradução livre), um controverso filme de propaganda
contra o aborto produzido em 1984, que se propunha a mostrar o ultrassom de um
feto sofrendo a tensão de um aborto com 12 semanas de gestação.
O
filme foi denunciado como fraude pelos ativistas pelo direito ao aborto porque
contraria as descobertas dos principais cientistas, que afirmam que o feto não
tem capacidade de sentir dor antes de pelo menos 24 semanas de gestação.
Mas
Hawkins ficou horrorizada — e também incrédula.
Na
sua visão, ela havia acabado de conhecer a maior atrocidade aos direitos
humanos do nosso tempo: a morte rotineira de “bebês antes do nascimento” – a
expressão que ela usa para descrever fetos. Por que ninguém estava tentando
parar com aquilo?
“Lembro
que, no primeiro dia no centro de gravidez, eu andava e dizia ‘oh, meu Deus,
como a vida segue normalmente enquanto isso acontece?’”, contou ela durante uma
entrevista, em maio. “Aquilo mudou tudo.”
Após
passar um verão trabalhando na clínica, Hawkins formou um grupo comunitário
contra o aborto chamado Adolescentes pela Vida. Ela entrou para a seção local
da organização Direito à Vida e para o diretório local do Partido Republicano.
“Eu
era a mais jovem ali, com cerca de quatro décadas [de diferença]”, ela conta.
Em
2006, após se formar na faculdade e ter rápidas passagens pelo Comitê Nacional
Republicano e pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos, Hawkins foi
convidada a dirigir a organização Estudantes pela Vida. Na época, a organização
estava nos seus primórdios, com 180 grupos atuantes. Ela tinha então 21 anos.
Desde
aquela época, 17 anos se passaram e Hawkins permanece obsessiva e disposta a
enviar e-mails e mensagens de texto para os seus colegas a todo momento.
Sua
agenda diária, digitada no seu iPhone, é um pesadelo, com mais de duas dezenas
de encontros e compromissos espremidos em intervalos sobrepostos.
Às
vezes, seus dias são interrompidos pelas ligações de um coach de saúde. “Eles
estão tentando me fazer beber água”, segundo ela. “Sempre brinco que a
Estudantes pela Vida foi construída sobre refrigerante diet.”
Ela
e Jonathan moram em um trailer com seus quatro filhos. Com isso, toda a família
pode acompanhá-la nas suas viagens frequentes pela SFLA. Jonathan trabalhou
como professor e oferece educação em casa.
“Simplesmente
acompanho, é tudo o que posso fazer”, contou Jonathan durante uma visita da
família ao zoológico de Pittsburgh, nos Estados Unidos, em maio.
“Acho
que você está cansado da palavra ‘aborto’”, disse Hawkins a ele naquele dia.
“Quando falo, às vezes, juro que consigo ver você se contorcer.”
Quando
a vemos com seus seguidores e doadores, observamos que Hawkins é sarcástica e,
muitas vezes, recorre ao humor — um hábito, às vezes, inesperado de uma mulher
que luta pela proibição total do aborto. Ela também costuma usar palavras
ofensivas e fica inquieta enquanto fala.
Hawkins
não tem amigas, segundo ela, “no sentido tradicional”.
“Eu
não tenho amigas para ir tomar lanche comigo...”, ela conta. “Do que eu iria
falar, além do fim do aborto?”
A
missão de Hawkins, nascida naquele dia no centro de gravidez, acabou por
consumi-la totalmente — e ela sabe bem disso. Hawkins tentou ensinar à sua
equipe o princípio DBW (“não seja esquisito”, na abreviação em inglês), que é
um código para “não deixe as pessoas nervosas”.
“Você
precisa saber quando mostrar sua paixão”, explica ela. “Se você carregar
consigo um livro de bolso com imagens de crianças que foram abortadas e bater
com aquilo na mesa de jantar, algumas pessoas irão ficar malucas com você.”
Em
um dia úmido de junho na capital americana, Washington, entre grupos de
adolescentes em excursões escolares e visitantes uniformizados, seis membros do
grupo Estudantes pela Vida caminharam até o Capitólio, prontos para fazer lobby
pela proibição do aborto.
Todos
eles estavam vestidos de vermelho e a metade usava roupas da SFLA. A frase “a
Geração Pró-Vida VOTA” estava estampado no peito como uma divertida
advertência.
Uma
dessas pessoas usava um par de brincos com minúsculos pés de ouro suspensos,
com o tamanho do pé de um feto de 12 semanas. “É uma ilustração da sua
humanidade”, segundo ela.
Grupos
como este podem ser encontrados nos legislativos estaduais e campi
universitários pelos Estados Unidos a todo momento.
Sob
a direção de Hawkins, a SFLA cresceu e hoje são mais de 1,4 mil grupos atuantes
nos 50 Estados, supervisionados por 80 funcionários remunerados. E, desde 2006,
mais de 160 mil ativistas contra o aborto foram treinados pela SFLA.
Especialistas
afirmam que o poder particular de Hawkins reside na sua capacidade de fazer as
pessoas se manifestarem. Os ativistas da SFLA são agora presença comum nas
manifestações contra o aborto em todo o país.
“Nós
lançamos a SFLA para que seja esta geração pós-Roe”, afirma ela. “Vamos ter
este exército treinado.”
Após
a reversão do caso Roe x Wade, em 2022, o exército de Hawkins se mobilizou,
ajudando a pressionar dezenas de leis contra o aborto nos legislativos
estaduais. Até agora, 13 Estados controlados pelos republicanos criminalizaram
o aborto — e proibições em pelo menos mais seis Estados estão aguardando
decisões judiciais pendentes.
Cerca
de um terço das mulheres americanas com idade reprodutiva agora vive em Estados
onde o aborto não é possível ou sofre severas restrições, segundo o Instituto
Guttmacher, um grupo de pesquisa pró-escolha.
Ao
longo do último ano, surgiram histórias sobre as aparentes consequências dessas
proibições. Uma vítima de estupro com 10 anos de idade teve o aborto negado no
seu Estado natal de Ohio e 13 mulheres do Texas afirmam que tiveram seu aborto
negado, mesmo com a gravidez apresentando complicações que poderiam ser fatais.
Casos como esses dão força ao apoio pelo acesso ao aborto.
“O
que a SFLA e outros grupos contra o aborto promovem é a pior política, mais
prejudicial e mais criminalizadora”, segundo Angela Vasquez-Giroux,
vice-presidente da organização NARAL Pró-Escolha América. “Ela [Kristan
Hawkins] é a encarnação do extremismo do movimento.”
“Você
está fazendo com que seja perigoso ficar grávida nos Estados Unidos”, afirma
Vasquez-Giroux.
• Movimento fragmentado
O
caminho a ser seguido pelo movimento contra o aborto, agora que o caso Roe x
Wade foi revogado, ainda é questão de debate.
Hawkins
e a maioria dos outros líderes continuam a compartilhar uma única filosofia: um
feto é uma pessoa que tem direitos. Eles também têm o mesmo objetivo: a
proibição federal do aborto.
Mas
existem divergências sobre o que seria essa proibição e, exatamente, como
chegar lá.
“O
movimento realmente é fragmentado”, segundo Mary Ziegler. “Não existe
consenso.”
A
SFLA defende o que os ativistas chamam de “modelo de aborto precoce”, por meio
de leis para proibir o aborto a partir da concepção ou, pelo menos, depois que
for detectado o início da atividade cardíaca, o que normalmente ocorre com
cerca de seis semanas de gravidez.
Em
outras palavras, a organização de Hawkins abandonou o gradualismo que orientou
as primeiras manifestações do movimento contra o aborto — uma estratégia ainda
defendida por alguns dos parceiros da SFLA.
Um
desses grupos chama-se Pró-Vida América Susan B. Anthony (SBA). Presença
poderosa estabelecida há muito tempo no lobby contra o aborto, a líder da SBA,
Marjorie Dannenfelser, afirma que irá se opor a qualquer candidato presidencial
que não adote a proibição nacional após 15 semanas, que é um limite defendido
por 44% dos americanos, segundo uma pesquisa recente.
Mas
não é o suficiente para Hawkins. Para conseguir o apoio da SFLA, os candidatos
devem se comprometer a apoiar a proibição federal após seis semanas.
Hawkins
reconhece a tensão.
“Marjorie
está no sistema... e eu sou a pessoa que chega e diz, ‘[dane-se], estamos
fazendo o que sabemos que é o certo’”, afirma ela. “Não estamos brigando.”
Hawkins
também é mais expansiva no falar e mais abertamente conservadora sobre outras
questões relativas ao aborto. Ela se opõe às exceções em casos de estupro e
incesto.
E
ela também combate diversas formas de controle de natalidade, incluindo os
contraceptivos orais — uma posição que outra líder de oposição ao aborto chama
de “contraproducente”.
“O
que mudou é que eles estão querendo dizer a parte sigilosa em voz alta”,
segundo Elisabeth Smith, diretora de política de Estado do Centro pelos
Direitos Reprodutivos, um grupo pró-escolha. “Eles querem ser extremistas em
público.”
A
abordagem de Hawkins preocupa também alguns republicanos. Políticos têm sido
forçados a optar entre desapontar Hawkins e seus aliados e perder um eleitorado
muito mais moderado.
“Politicamente,
os republicanos estão em uma posição muito mais defensiva que os democratas,
pois eles continuam falando em restrições que não são apoiadas pela maioria dos
americanos”, afirma o ex-assessor republicano no Congresso John Feehery.
A
onda republicana prevista nas eleições americanas de 2022 parece ter colidido
com um pico de apoio pelos direitos ao aborto, que trouxe vitórias inesperadas
para os democratas em uma série de disputas importantes.
No
ano passado, os eleitores a favor do acesso ao aborto venceram todos os seis
plebiscitos relativos ao aborto, incluindo em Estados conservadores, como
Kansas e Kentucky.
“As
mulheres estão observando os republicanos pós-Roe e qualquer ação que não
inclua uma estratégia solidária para reconquistar as mulheres suburbanas e os
eleitores que alternam seus votos irá prejudicar severamente o movimento
pró-vida e o partido como um todo”, declarou à BBC Nancy Mace, uma das poucas
legisladoras republicanas que pediram publicamente maior flexibilidade com
relação ao aborto.
Mas
Hawkins não considera que o Partido Republicano seja problema dela. Ela tem
pouca paciência com os políticos que ela considera pouco favoráveis à vida e
lança ameaças básicas aos republicanos que não apoiarem as proibições no início
da gravidez.
O
senador republicano Merv Riepe, do Estado de Nebraska, votou contra a proibição
com seis semanas este ano. Segundo Hawkins, “ele irá se aposentar muito em
breve”.
As
três mulheres senadoras do Partido Republicano na Carolina do Sul que se
opuseram à proibição total também enfrentam a mesma ameaça. Duas delas apoiaram
a proibição após seis semanas, mas não foi suficiente para Hawkins.
Cada
uma delas havia recebido da SFLA uma coluna vertebral de plástico do tamanho de
um bebê no início deste ano, com uma nota sugerindo que elas cultivassem uma
espinha dorsal.
“Acho
que esta é a diferença entre nós e as outras organizações pró-vida”, afirma
Hawkins. “Eu realmente não me importo se este ou aquele em Washington DC não
está satisfeito comigo. Isso nem me dá pontos no meu perfil demográfico.”
Esta
abordagem agressiva e descompromissada impulsionou sua dominância entre os
ativistas contra o aborto, que agora se voltam para a direita, após a revogação
do caso Roe x Wade.
“O
movimento, como um todo, está passando a pedir proibições mais extremas”,
segundo a pesquisadora Zelly Martin, do laboratório de propaganda da Universidade
do Texas, nos Estados Unidos. Martin é especializada no debate americano sobre
o aborto.
“Eles
sentem que, agora que não temos Roe protegendo o aborto, por que vamos
recuar?”, explica ela. “E acho que Kristan Hawkins tem grande participação nisso.”
A
questão em aberto é até onde Hawkins irá chegar — até que ponto ela irá
conseguir a proibição do aborto.
“Não
vejo um momento na história americana em que os americanos irão querer uma
proibição completa do aborto”, afirma Mary Ziegler. “Não há sinais disso.”
Mas
Hawkins e outros estão explorando formas de contornar a opinião pública e a
resistência política, segundo Ziegler. Uma dessas formas, talvez a mais viável,
seria pedir à Suprema Corte, de tendência conservadora, que reconheça a
personalidade fetal com base na Constituição.
Parece
algo improvável, mas Hawkins está acostumada a este tipo de probabilidade.
Em
Northville, no Estado americano de Michigan, Hawkins falou em abril para um
seleto grupo de possíveis doadores em uma pequena sala de conferências. Ela
começou sua palestra com uma história do início da sua carreira:
Um
defensor pró-vida ofereceu a Hawkins um conselho que ela não havia pedido: que
parasse de dizer “quando” Roe x Wade for revogada. Ele a advertiu que, ao
considerar a revogação como certa, ela parecia “muito imatura, ingênua demais”.
Hawkins
o ignorou. Ela orientou a sua equipe a dobrar a aposta, amplificando a mensagem
que prometia enviar o caso Roe x Wade para a “lata de lixo da história”.
“Sempre
digo à nossa equipe: os vencedores visualizam a vitória”, afirma ela.
Fonte:
BBC News Mundo
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