'Fiquei 4 dias sem
comer e dormir, só com drogas e sexo': o que é chemsex, prática que cresce no
Brasil
Enquanto
a maior parte das pessoas estava confinada em meados de 2020, Samuel (nome
fictício) passava todos os seus finais de semana fora de casa, encontrando
parceiros para usar drogas e fazer sexo casual.
“Cheguei
a ficar quatro dias inteiros acordado, sem beber água ou comer, apenas usando
(drogas) e transando”, relata o homem de 30 anos, morador de São Paulo, que é
homossexual.
Samuel
havia se tornado adepto do chamado chemsex — abreviação de chemical sex, ou
sexo químico, em inglês. O termo denomina a prática de ter relações sexuais sob
efeito de substâncias ilegais psicoativas, geralmente sintéticas.
Esse
tipo de comportamento explodiu na Europa há mais de dez anos e, agora,
especialistas vêm observando um crescimento também no Brasil, especialmente
após a pandemia de covid-19.
Não
há dados oficiais sobre a prática no país, mas estudiosos afirmam que atrai
principalmente homens que fazem sexo com homens, que buscam as drogas durante o
ato sexual com o intuito de provocar desinibição.
Apontam,
no entanto, que acarreta sérios riscos, como a maior vulnerabilidade de
contaminação por infecções sexualmente transmissíveis, risco de overdose,
adicção e prejuízos à saúde mental.
Além
disso, a Lei de Drogas prevê atualmente que é crime adquirir, guardar ou
transportar drogas ilícitas para consumo pessoal, assim como cultivar plantas
com essa finalidade.
Não
há previsão de prisão para esse crime. As penas previstas nesse caso são
“advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade”
e/ou “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.
Para
o psiquiatra e psicanalista especializado no atendimento da população LGBTQIA+
Bruno Branquinho, a prática é mais frequente entre homens gays justamente
porque, segundo ele, esse grupo tende a apresentar baixa autoestima e mais
dificuldade em aceitar sua sexualidade, além de ser vítima de violências
físicas e verbais.
“Sempre
tive dificuldade de aceitar meu corpo, minha forma física. E, quando usava
drogas, me libertava disso totalmente”, relata Samuel.
Ele
conta que usou substâncias psicoativas durante o ato sexual pela primeira vez
em 2019, quando um parceiro ofereceu metanfetamina durante um encontro casual.
“Mas
foi no início da pandemia que comecei a usar com mais frequência”, diz.
“Na
verdade, muita gente passou a usar na quarentena, tanto que passamos a chamar
de ‘quarentina’, em um trocadilho com o termo ‘tina’, usado para se referir à
metanfetamina.”
A
droga é a mais usada para chemsex hoje no Brasil, segundo especialistas, mas
outras substâncias, como o GHB (gama-hidroxibutirato, usada por estupradores
para dopar suas vítimas), o LSD e a cocaína também são populares.
O
uso das drogas acontece entre casais, em grupos maiores e em festas nas grandes
cidades do país, especialmente São Paulo e Rio de Janeiro, de acordo com os
relatos.
Na
capital paulista, há até motéis usados quase que exclusivamente para a prática
do chemsex, segundo apurou a reportagem.
Muitos
dos encontros são marcados por aplicativos de relacionamento. Nesses programas,
os adeptos do uso de drogas manifestam seu interesse por meio de emojis com
significados próprios para cada tipo de droga.
• Vida sexual atrelada às drogas
O
termo chemsex foi cunhado pelo assistente social e ativista australiano David
Stuart no começo dos anos 2000.
Segundo
ele, o uso de algumas drogas específicas por homens gays durante o sexo passou
a ser visto como um problema de saúde pública na Europa, e especialmente no
Reino Unido, por volta de 2012.
Segundo
Stuart, uma das maiores preocupações das autoridades de saúde está em como a
prática pode afetar a saúde sexual dos usuários, especialmente porque muitas
pessoas acabam não usando proteção durante o sexo quando estão sob o efeito de
substâncias.
“As
coisas com as quais as pessoas se importam quando estão sóbrias, como seus
planos para o dia seguinte, o dinheiro que estão gastando ou as escolhas que
fazem sobre sua saúde sexual, não importam tanto quando se está sob o efeito
dessas drogas”, disse o ativista em entrevista à BBC News em 2015.
No
Brasil, a prática se tornou mais comum em 2019 e cresceu intensamente durante o
período de maior isolamento social provocado pela pandemia de covid-19, de
acordo com um estudo realizado por acadêmicos de diversas universidades do
Brasil e de Portugal divulgado em 2020.
Outros
pesquisadores ainda associaram o chemsex a um aumento no consumo de
metanfetamina por brasileiros.
Segundo
dados da Polícia Federal, as apreensões de comprimidos da droga em todo o país
mais que duplicaram entre 2019 e 2020 e cresceram 20% em 2021.
“Comecei
a receber no meu consultório pacientes com problemas de adicção por conta do
chemsex em 2019, mas com o passar do tempo o número só cresceu”, diz Bruno
Branquinho, que atende na capital paulista.
“Um
dos grandes problemas é que os adeptos acabam atrelando sua vida sexual ao uso
de drogas e passam a não conseguir mais ter relações sem elas.”
Segundo
o psiquiatra, muitos de seus pacientes ainda se envolvem tão profundamente com
a prática que passam a enfrentar problemas financeiros, de saúde e até
dificuldade de socialização.
“Há
pessoas que gastam mais do que ganham em drogas, desenvolvem problemas de saúde
por conta das sessões longas de sexo e transtornos mentais e se afastam de
amigos e familiares”, afirma o médico, que também é sócio-fundador da NuMA
(Núcleo de Medicina Afetiva), cujo foco é o atendimento à população LGBTQIA+.
• 'Estava desligado da realidade'
A
experiência vivida por Samuel segue os mesmos padrões. Após utilizar
metanfetamina algumas vezes de forma casual, o paulista passou a participar de
encontros e festas de chemsex todos os finais de semana.
“Na
minha cabeça, eu só podia me relacionar com alguém quando tivesse algum tipo de
droga envolvida”, diz. “Se tornou um vício.”
Ele
conta que participava de sessões de chemsex todos os finais de semana e, muitas
vezes, saía de casa na quinta-feira e só voltava na segunda, pulando de festa
em festa.
Essa
rotina se estendeu por cerca de um ano. Durante esse período, ele conta que foi
infectado com sífilis duas vezes e que levou um golpe de um de seus parceiros,
que esperou ele ficar inconsciente para esvaziar sua conta bancária.
“Estava
totalmente desligado da realidade, usando as drogas para fugir dela”, diz.
“O
ponto de virada foi quando fui roubado. Percebi que não dava mais para
continuar daquele jeito e fui morar com a minha mãe no interior. Precisava de
ajuda.”
Samuel
fez terapia e ficou alguns meses longe do chemsex. Quando retornou a São Paulo,
ainda teve contato com a metanfetamina mais algumas vezes, mas afirma ter se
livrado do vício.
“Depois
que me afastei, passei a me interessar mais pela questão, pesquisar sobre
chemsex e o efeito das drogas”, diz.
“Hoje
em dia, converso muito com meus amigos sobre isso, tento ajudá-los."
• 'Não podemos culpar os envolvidos'
O
médico infectologista Álvaro Furtado da Costa, do Centro de Referência e
Treinamento DST/AIDS do Estado de São Paulo, também acompanha o crescimento do
interesse pelo chemsex nas grandes cidades do Brasil.
Segundo
ele, os maiores perigos da prática são, além da maior vulnerabilidade para
contaminação por infecções sexualmente transmissíveis, o risco de overdoses e
adicção e os efeitos na saúde mental.
“Existem
pacientes que fazem uso recreativo e controlado, que não chegam à dependência,
mas outros acabam se envolvendo no uso abusivo”, diz.
“Nossa
maior dificuldade hoje, como profissionais da saúde, é identificar o paciente
antes que ele chegue a um estágio preocupante. Quando o paciente chega ao uso
abusivo, precisamos basicamente trazê-lo de volta à realidade — e, por vezes,
esse pode ser um processo muito difícil.”
O
médico britânico Richard Ma, que trata muitos pacientes envolvidos com chemsex
em Londres, afirma ainda que drogas como a metanfetamina e o GHB podem aumentar
a desinibição e a hipersexualidade, levando a algumas experiências sexuais das
quais os usuários podem se arrepender posteriormente ou até a casos de abuso
sexual.
“Outros
efeitos nocivos de drogas específicas incluem agitação, paranoia, psicoses e
intensas ‘quedas’ que podem fazer com que os usuários se sintam suicidas. Há
também interações medicamentosas perigosas com uma variedade de substâncias,
incluindo álcool e antirretrovirais para o HIV”, afirmou à BBC Brasil.
No
Reino Unido e em outros países europeus, existem atualmente diversas
instituições e projetos, governamentais e independentes, que se dedicam a
informar e prestar serviços a praticantes do chemsex.
Para
Álvaro Furtado da Costa, faltam esforços do tipo no Brasil. “Precisamos
preparar melhor os médicos para atender essas pessoas, mas também falar mais do
assunto publicamente”, diz.
Segundo
o médico, alguns países do mundo possuem cartilhas que destrincham exatamente as
consequências de cada uma das substâncias e até orientam como usá-las, em uma
espécie de esforço de redução de danos que é extremamente efetivo.
“O
sexo no mundo LGBTQIA+ ainda é um tabu em nossa sociedade, e muitas pessoas
carregam preconceitos e acreditam que a comunidade é promíscua”, afirma Costa.
“Não
podemos simplesmente culpar os envolvidos, precisamos entender que existe um
contexto de vulnerabilidade social, e muitas vezes individual, que as leva a
entrar nesse mundo.”
Fonte:
BBC News Brasil
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