A economista que
desmascarou a “austeridade”
A
professora e escritora Clara Mattei é objetiva: já no título de seu mais
recente livro ela fala da conexão direta entre austeridade econômica e o
fascismo. Em The Capital Order: How Economists Invented Austerity
and Paved the Way to Fascism (ainda sem título em português – em
tradução livre: “a ordem do capital: como os economistas inventaram a
austeridade e abriram caminho para o fascismo”) ela destrincha essa relação. O
livro será lançado no Brasil ainda este ano pela editora Boitempo.
Mattei
foi a convidada do Brasil de Fato Entrevista desta semana. Ela contou
sobre o processo para elaboração da obra, que é fruto de dez anos de estudo.
Italiana radicada nos Estados Unidos (ela é professora de Economia na The New
School for Social Research, em Nova Iorque), a pesquisadora cita personagens
como Benito Mussolini, Donald Trump e a atual primeira-ministra italiana,
Giorgia Meloni, como frutos políticos de um caminho trilhado com apoio na
lógica da austeridade econômica.
“Para o capitalismo funcionar, a maioria das
pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso
que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham
dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de
patrimônios e rendas”, afirma ela, que destaca que a alternativa a esse sistema
passa pela organização das pessoas em suas comunidades locais.
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Confira abaixo a entrevista
·
A senhora passou dez anos escrevendo o livro que nasceu
da sua tese de doutorado. Como e quando decidiu se aprofundar neste assunto?
Tudo
começou quando estava vivendo os anos de grande austeridade de Mario Monti, na
Itália. Ele chegou ao poder após a crise da dívida soberana em nosso país e
estava estudando e vivendo na pele, assim como a maioria das pessoas no mundo
ainda vive hoje, os efeitos da austeridade, a redução de verbas para a
educação e saúde pública. Vi as pessoas na Itália ficarem cada vez mais pobres
a olhos vistos. Era um país em que não tínhamos pessoas morando na rua e as
ruas estavam ficando cheias de gente. Não havia moradia.
·
Mas você passou dez anos pesquisando e procurando
material em arquivos, certo?
Sim,
é um trabalho em economia histórica e política. É baseado em fontes primárias e
na reconstrução do passado através de uma nova perspectiva, analisando material
que ainda não havia sido publicado. O tipo de debate sobre austeridade que
estava ocorrendo na mídia, na política pública e até entre movimentos de
esquerda era muito insatisfatório porque era muito apolítico.
Transformaram
a austeridade em uma ferramenta técnica para gerir a economia e a discussão era
se a austeridade estava ou não funcionando para equilibrar o orçamento e
promover crescimento. Era um debate sem solução. E não muito útil para entender
por que a austeridade continuava emergindo mesmo que claramente não estivesse
gerando crescimento, nem ajudando a resolver a questão da dívida.
Então
o estudo histórico é muito importante porque nos dá uma análise com perspectiva
de classe que estava ausente no debate econômico contemporâneo, que era muito
tecnocrático. A tentativa era então olhar para o que aconteceu 100 anos atrás e
mostrar como a austeridade tem uma clara lógica política que visa manter todos
nós em uma situação de precariedade, de dependência do mercado, desempoderando
assim a população para que o sistema se proteja e mantenha a ordem do capital,
que é o título do livro: A ordem do capital, para se manter
intacto.
Se
olharmos para a história, isso só é visível porque aconteceu em um momento em
que o capitalismo foi muito contestado depois da Primeira Guerra, e assim
realmente vemos como a austeridade operava como uma contraofensiva usada pelas
elites para impedir qualquer alternativa ao nosso sistema.
·
Na apresentação do livro, você fala sobre várias crises
econômicas e políticas em países do mundo todo, já que essas crises e essa
austeridade são intrínsecas à nossa sociedade moderna. Nos últimos anos, mais
uma vez vimos uma crise do neoliberalismo no mundo todo, algo que já se dizia
no início do século passado. Esse modelo econômico não é o mais adequado,
certo?
Sim,
com certeza. Estamos em outro momento em que as pessoas não acreditam no
sistema, penso eu. Aliás, é por isso que a austeridade voltou com força total.
Não só no Brasil. Eu moro nos Estados Unidos e o motivo pelo qual o Federal
Reserve, o [equivalente ao] Banco Central, está aumentando a taxa de juros é
porque a maioria das pessoas não está voltando ao trabalho.
Muitos
trabalhadores estadunidenses, 46 milhões, em 2022, largaram seus empregos
porque estão cansados da exploração e porque veem que o sistema não trabalha
para eles e sim para uns poucos que enriquecem constantemente. Então é nessa
situação que a austeridade deve voltar para nos convencer que, na verdade,
estamos enganados e não existe outra saída a não ser através do sacrifício dos
trabalhadores e, em última instância, do corte de salários para atrair a
confiança dos investidores.
·
E o capital parece tentar se reestabilizar e se
preservar o tempo todo. Mesmo diante de uma crise, os bancos, o sistema
inteiro, e até os governos liberais, ainda tentam protegê-lo.
Com
certeza. Mas acho que existe aí uma mensagem de esperança que surge quando
levamos a História a sério: o capital não é fixo, não é algo dado e não é uma
coisa, não é um objeto. É uma relação social e se traduz em uma maioria que
aceita sua condição e aceita sua condição de vender sua capacidade por um
salário.
A
relação social não é de maneira alguma estática. É dinâmica e pode ser
subvertida. É dinâmica e pode ser subvertida. Então a realidade é que a
ordem do capital é muito frágil. E é por isso que a austeridade é tão cara a
ela, porque a protege de todas essas demandas de transformação social que vão
surgindo.
A
mensagem aqui é que precisamos saber como a classe dominante opera para
preservar um sistema injusto. Precisamos parar de idealizar o capitalismo como
um sistema que pode ser reformado e que tem flexibilidade para incorporar
nossas necessidades, e perceber que o capitalismo tem limites rígidos. É
um sistema que só cresce e produz para gerar lucro e isso requer austeridade.
A
tese central aqui é que a austeridade não é uma exceção no capitalismo, não é
algo que só se vê nas etapas neoliberais, começando nos anos 80. Ela é muito
mais intrínseca à longa história do capitalismo. Está no DNA do sistema
exatamente porque, para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve
estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a
austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro
através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios
e rendas.
·
A pesquisa aborda os primeiros anos do século 20 até a
atualidade. E a austeridade esteve sempre presente, como você acaba de dizer,
desde o período entreguerras, que é onde começa a pesquisa. Você disse que a
austeridade foi uma ferramenta técnica e despolitizada para a ascensão de
lideranças autoritárias. Por que unir Mussolini, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e
Giorgia Meloni, por exemplo? A pergunta é: “o que os une?”
É
muito importante aqui dar um passo para trás. No livro, faço uma reconstrução
da crise do capitalismo após a Primeira Guerra, há exatos 100 anos. Em 1919 e
1920, a população em geral tinha desistido do capitalismo, pensando que haveria
um futuro melhor após a reconstrução pós-guerra. E todos esses experimentos que
surgem de conselhos de trabalhadores demandam democracia econômica, o que
significa que as pessoas estavam se reapropriando da produção e distribuição de
recursos. Isso estava acontecendo concretamente.
Meu
foco é o movimento de Antonio Gramsci, em Torino, L’Ordine Nuovo,
em que é possível ver um esforço real não só para pensar diferente, como também
para agir diferente. E só se podia agir diferente realmente pensando diferente
e só se podia pensar diferente agindo diferente. Então é a importância da
prática, de uma sociedade diferente nascer de experimentos dentro das fábricas
e também no campo, em que as pessoas se reapropriaram dos meios de produção e
da organização do trabalho.
Nessa
situação explosiva, a burguesia ficou muito assustada. Porque, é claro, ela se
beneficiava do capitalismo, queriam protegê-lo e qualquer forma de distribuição
e democracia econômica teria significado, de certo modo, o fim dos seus
privilégios. É nesse momento em que vemos emergir a austeridade como uma
contraofensiva e aqui há dois fatores relacionados à sua pergunta. O primeiro é
que os economistas participaram muito ativamente na construção de modelos
econômicos supostamente “neutros”, teorias “neutras”, conhecimento científico,
para dizer às pessoas que elas eram ignorantes, que elas não entendiam e, em
suma, que estavam vivendo por conta própria e tinham que aceitar a verdade
dura, como diziam, do trabalho duro e abster-se de consumir.
Então
esse lema de austeridade, “consuma menos, produza mais”, foi imposto à
população italiana e inglesa. Esses dois países são o foco dos meus estudos
porque meu interesse é mostrar que a austeridade surge onde a democracia
econômica é mais palpável. E naquele momento na Europa as pessoas tinham
ganhado o direito ao voto, por exemplo. Mas o que se vê é uma aliança entre
economistas e governos. Os economistas são convocados pelos governos para
ajudar a impor à população a austeridade. E a austeridade veio em uma variedade
de formas. Não foram só cortes de gastos, foi, em primeiro lugar, cortes de
gastos sociais, taxação regressiva. Então houve aumento em impostos sobre o
consumo, como ainda vemos no mundo todo hoje, mais impostos para pessoas físicas
e corte de impostos para ricos e impostos corporativos ou sobre patrimônio etc.
Também
se tratava de aumentar as taxas de juros, que também vemos hoje, ou seja,
austeridade monetária, e, por último, aquilo que chamo de medidas industriais,
que são ataques diretos a sindicatos, privatização, desregulação do trabalho e
arrocho salarial. Então essa tríade da austeridade; fiscal, monetária e
industrial; foi imposta à população também graças a economistas que estavam
dizendo: “Este é o caminho certo a seguir e somos especialistas e objetivos”.
Nesse sentido, fica evidente que os economistas desempenharam um papel bastante
classista, participaram nessa guerra de uma classe contra o resto dos cidadãos
e isso poderia ter sido feito de outro jeito, como foi na Inglaterra, onde a
democracia liberal usou a austeridade contra seu povo e isso aumentou o
desemprego e assim disciplinou os trabalhadores.
Eles
tiveram que deter as greves, voltar ao trabalho com um salário bem menor e em
piores condições. Voltando à pergunta, na Itália, vemos que Benito Mussolini, o
fundador do fascismo, foi o mais eficiente implementador e aprendiz da
austeridade. Mussolini chegou ao poder através de uma eleição, não um golpe,
assim como Giorgia Meloni e Orbán hoje. Mas com uma intenção explícita de impor
austeridade, dizendo às pessoas para não se preocuparem porque iriam fazer os
cidadãos italianos pararem as greves, as reclamações e voltarem ao trabalho.
Agora,
eu acho que hoje vemos muitos desses políticos “autoritários parafascistas” emergirem
porque as pessoas estão insatisfeitas com a austeridade. A austeridade venceu a
um ponto em que não há mais a noção de classe: as pessoas pensam que são
indivíduos [isolados], e é uma típica mensagem de austeridade: “Não há classes,
não há antagonismo, só indivíduos. E são os empresários que lideram a máquina
econômica, não os trabalhadores.”
Então,
no caso da Itália, para mim, Meloni chegou ao poder porque prometeu
redistribuição de renda, e é claro que não cumpriu, porque assim que assumiu o
poder mais uma vez impôs austeridade, como Mussolini e outros regimes
autoritários.
·
Sobre isso, você diz que a austeridade não teve sucesso
em estabilizar a crise econômica, mas teve sucesso em estabilizar as relações
de classe. Estamos vendo agora uma mudança global nas relações de trabalho. Os
sindicatos estão enfraquecidos, perdendo poder em alguns países. Como
poderíamos ver nascer uma nova organização de trabalhadores?
Tenho
algumas ideias sobre isso. Em primeiro lugar, mesmo se existe essa ideia de que
os trabalhadores estão enfraquecidos, isso se deve à ação da austeridade sobre
nossa vida por mais de 100 anos. Ela foi muito bem-sucedida, como você disse. A
austeridade não teve sucesso em atingir os objetivos estabelecidos de
crescimento econômico e pagamento da dívida, mas teve muito sucesso em atingir
seu verdadeiro maior objetivo: garantir que as pessoas não pensem que podem
viver em outro tipo de sociedade, aceitem sua condição de trabalhadores
assalariados. Mais uma vez, impondo a ordem do capital. E isso também é uma
armadilha para a mente porque os modelos econômicos reafirmam que os
trabalhadores não importam, só os empresários.
Então
é justo e correto afastar os recursos dos preguiçosos e favorecer os
supostamente meritórios. Eles oferecem justificativas para essas políticas de
extração de todos nós. Claramente a austeridade teve sucesso e vemos que,
historicamente, os trabalhadores perderam poder, o poder de barganha, o poder
de imaginar um novo futuro. Dito isso, quero chamar atenção ao fato de que, no
capitalismo, a luta de classes nunca para. É uma constante. Nosso sistema está
em movimento, é um processo, não há nada fixo, mesmo que os economistas queiram
que acreditemos que há algo fixo. Porque acreditar que algo é fixo nos
desempodera e aprisiona nossa imaginação.
Então
quero dizer que, é claro, existe um motivo por que a coisa não vai tão bem para
os trabalhadores neste momento histórico, mas não é à toa que existem muitas
mobilizações novas. Nos Estados Unidos, por exemplo, é o setor de serviços: pessoas
em restaurantes, hotéis, em áreas em que normalmente o trabalho é muito
precarizado e individualizado, estão agora se sindicalizando. Starbucks,
Amazon, Chipotle. E isso está assustando muito as classes dominantes.
Eu
diria que estamos em um momento, na verdade, em que existe novamente certa
turbulência. Claro, não é o espírito revolucionário de 100 anos atrás, mas há
muita demanda por libertação. Respondendo a sua pergunta, me sinto muito
esperançosa. Há pouco estive na África do Sul, apresentando o livro, e me
organizei e me encontrei com ativistas das townships [áreas
urbanas comparáveis a favelas]. As townships são lugares onde
o apartheid ainda existe, em termos de precarização econômica.
No entanto, há muita energia no território, muita gente das novas gerações que
abandonou as velhas categorias e estão pensando o novo.
Acho
que o importante, para avançarmos, é abrir espaço para essas iniciativas que
buscam recuperar independência e autossuficiência. Trata-se de romper a
principal armadilha, que é a dependência do mercado. O que quero dizer? Que a
maioria de nós, para poder viver, precisa ter dinheiro no bolso. Se quiser
comer, tem que comprar algo no supermercado. Se quiser morar, tem que pagar
aluguel. Se quiser ser curado, tem que pagar pelos médicos. Se quiser ir à
escola, muitas vezes tem que pagar. Este é o resultado da austeridade. A
mercantilização de todos os aspectos da nossa vida para nos desempoderar cada
vez mais.
Acho
que a primeira missão aqui é ser capaz de recuperar nosso poder através da
organização, de conselhos, da vizinhança, de atividades locais, de formas de
produzir e distribuir por nossa conta. Assim não dependeremos do salário dos
capitalistas e não gastaremos nosso dinheiro em supermercados, para que o
dinheiro não vá embora assim que entrar. Precisamos que os recursos permaneçam
dentro da comunidade. E acho que esse é um primeiro passo importante para
engajar as pessoas na ideia de organizar, colaborar e perceber que não é
suficiente só votar nas eleições. Votar nas eleições é um ato muito
superficial. E é algo que mantém viva a servidão econômica.
Então
é preciso romper e combater a servidão econômica. E esse seria um primeiro
passo em um projeto muito mais ambicioso, que vai além da democracia social. É
a derrubada das relações salariais em si. Repito que isso está acontecendo.
Está acontecendo nas townships, eu estive lá há pouco. Está
acontecendo no Chile, onde os conselhos são fortes. Acho que está acontecendo
no mundo todo, mas a mídia não fala disso. Mas é suficiente para se envolver,
ir para a rua, conhecer sua vizinha, ver que essas realidades existem e a
austeridade está aí justamente para parar esses processos. Mas nós precisamos
lutar contra isso.
·
Você mencionou a viagem à África do Sul. Seu livro será
publicado no Brasil no segundo semestre, editado pela Boitempo. Está preparada
para esse tour ao redor do mundo?
Tenho
um filho de 8 meses que está viajando conosco. Seria melhor não ter que me
mover tanto, mas faço isso porque acredito no poder do conhecimento, em ajudar
a levar processos adiante. Novamente, a mudança tem que vir de baixo, de quem
está mobilizado. Mas acho que as bolsas de estudo de militância podem ajudar a
desenvolver ferramentas para afiar a mente e o conhecimento sobre as
estratégias inimigas. E é por isto que a História é útil, para abrir espaço a
novas maneiras de fazer as coisas, para fomentar a imaginação política porque,
no passado, houve muitos esforços para mudar a nossa sociedade. E ainda existem
esforços assim e acho que meu papel é fazer a discussão avançar e dar esperança
às gerações mais novas.
·
A ideia de ter um orçamento elevado é o debate central
no Brasil hoje. Esse debate eterno torna impossível avançar em direção a uma
agenda positiva para o país. Por outro lado, muita gente, incluindo o
presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, acredita que os juros altos
vão barrar o crescimento econômico e que o controle da inflação não deveria ser
o foco principal. Essa ideia sobre o orçamento primário tem a mesma origem que
a austeridade?
Com
certeza. É exatamente isto que a austeridade faz. Passa a mensagem de que não
há alternativa. Equilibrar o orçamento é uma prioridade indiscutível. É uma
prioridade neutra e necessária. Agora, sabe que a mensagem do livro não é que
esses economistas estão necessariamente errados. Acho que em boa parte dos
casos, principalmente em países do Sul, nos quais os limites do capitalismo são
reais, é realmente um problema que a inflação esteja alta, que a moeda
esteja desvalorizada. Mas isso dialoga com a violência econômica que é muito
estrutural no sistema. Por isso a solução não é só fazer remendos no nosso
sistema, com algumas reformas. Porque o estrangulamento é forte.
E
é verdade que, sob o capitalismo, dependemos da confiança dos investidores para
o crescimento econômico. E como você atrai investidores? Só se mantiver baixas
as taxas sobre grandes riquezas e as taxas empresariais. Só se abrir às
privatizações. O que ocorre agora é que grandes gestores de ativos estão
comprando infraestrutura, imóveis, para tirar o máximo de taxas e renda, para
aumentar o máximo possível as nossas necessidades diárias. Mas é exatamente
isto que o Estado capitalista deve fazer, em suma, abrir-se a esses
investidores privados. Essa é a realidade do sistema. É por isso que é
muito idealista pensar que o Estado capitalista pode se opor a essas tendências
global de austeridade. É por isso, repito,
que temos que encontrar formas através de processos de libertação da
propriedade privada, meios de produção e relações salariais. Porque o
capitalismo realmente nos aprisiona. Não sei se isso faz sentido.
Esse
debate entre economistas soa, é claro, como se não fosse uma escolha política.
E podemos dizer que obviamente é uma escolha política. Mas também é uma escolha
restritiva porque são decisões políticas favoráveis à manutenção da
estabilidade de certa forma de mercado capitalista, certo? E isso requer nossa
subordinação às leis do mercado que nos estrangulam e beneficiam uma minoria
muito pequena. Essas escolhas políticas são restritivas. Mas nós podemos pensar
grande, querer mais que migalhas para manter o povo controlado. Precisamos
pensar grande, pensar em realmente romper com a nossa posição de subordinação
ao mercado.
·
Aqui no Brasil, em 2016, o governo, que aliás não tinha
sido eleito pelo povo, criou um marco fiscal conhecido como “teto de gastos”. A
ideia era controlar o orçamento e a relação entre gasto público e PIB. Na
verdade, vimos uma drástica redução em investimentos sociais, como educação,
saúde pública e outros programas sociais. Essa política de austeridade, junto a
outros eventos do sistema político brasileiro, pavimentaram o caminho para a
eleição de Jair Bolsonaro. Movimentos como esse poderiam dar lugar ao avanço de
partidos de extrema direita?
Sim,
esse é outro exemplo de que a austeridade não é um erro. Muita gente na
esquerda diz que é fruto de uma economia ruim, que é um erro. Infelizmente, não
é um erro. O que você descreveu mostra o sucesso da austeridade. As pessoas
foram tão desempoderadas, que perderam seu senso de união de classe. Perderam a
noção da luta coletiva contra o inimigo, que é a minoria que se beneficia do
sistema, e terminaram votando por essa minoria que se beneficia do sistema.
Porque a austeridade nos individualiza, nos convence que todos nós podemos ser
empresários se nos esforçarmos e que deveríamos sentir vergonha de ser pobres.
O motivo por que as pessoas votam em alguém como Trump é exatamente o sucesso
da austeridade. Não acho que podemos culpá-las por votarem em Bolsonaro ou Trump.
Deveríamos culpar a elite dominante, incluindo, infelizmente, o Partido
Democrata [dos Estados Unidos] e todos os partidos supostamente progressistas
que, de forma hipócrita, já vinham praticando a austeridade.
A
austeridade atravessa fronteiras partidárias. Infelizmente, aqueles que
supostamente representam o povo, incluindo os sindicatos, apoiaram a
austeridade, criaram a sensação de falta de esperança e de que deveríamos fazer
o possível para nos salvar como indivíduos, sem olhar para o fato de que somos,
na verdade, produtores, produtores coletivos que deveriam lutar contra a
exploração e contra aqueles que nos exploram. Então é só através da recriação
do senso de coesão de classe e da conscientização de classe que podemos nos
libertar da armadilha de pensar que regimes autoritários vão nos salvar. Eles
não vão. Mas o mesmo vale para partidos democratas, como o de Biden, que estão
desfinanciando todos os setores sociais. Por toda parte.
Fonte:
Brasil de Fato
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