Como disputa sobre
linguagem neutra virou guerra cultural no Brasil
Quando
anunciou no Instagram no fim de junho que ainda estavam disponíveis
"últimes entrades" para um show, o cantor Djavan sofreu duras
críticas.
Imaginando
que o músico havia alterado o final das palavras para neutralizar o gênero
delas, muitos o ridicularizaram nas redes sociais.
"Mais
fácil aprender japonês em braile", escreveu um comentarista, citando uma
letra célebre do cantor alagoano.
Alguns
então esclareceram que aquele show de Djavan seria em Barcelona - e que o post
fora escrito na língua local, o catalão. "Últimes entrades", em
catalão, significa "últimas entradas".
Era
tarde demais. Djavan já havia sido arrastado para uma das grandes batalhas
culturais do Brasil atual: a batalha em torno do que vem sendo descrito como
"linguagem neutra", ou "linguagem não binária".
A
disputa em torno desse tema é abordada num episódio de Brasil Partido, um podcast
da BBC News Brasil, veiculado nesta sexta-feira (07/07) no site da BBC e em plataformas de áudio como:
Apresentado
pelo repórter João Fellet, o podcast trata de diferentes conflitos sociais que
têm sido vividos pela sociedade brasileira em campos como gênero, religião e
cultura.
·
A língua como campo de batalha
Há
décadas, muitas mulheres denunciam o que consideram um viés masculino na
linguagem.
Esse
movimento fez com que hoje muitos evitem termos masculinos para se referir a
grupos de pessoas de gêneros distintos. Por exemplo: em vez de usar os termos
"médicos" ou "professores" para se referir a coletivos de
pessoas, essas pessoas optam pelas expressões "a classe médica" ou o
"corpo docente".
Mas
a busca por uma linguagem mais neutra só se tornou realmente controversa quando
foi associada a uma proposta de mudança mais radical - e que foi abraçada
principalmente por parte da esquerda.
A
ideia era abrir espaço na língua para pessoas que se declaram não binárias,
pois não se identificam como homens nem como mulheres, podendo também se
identificar com as duas categorias ao mesmo tempo.
Para
isso, seria preciso alterar o final das palavras pra neutralizar o gênero
delas. Alguns propuseram que essa metamorfose se desse pela substituição da
letra “o” no final das palavras pela letra “x”, e outros sugeriram o emprego da
@.
Outros
ainda defenderam o uso da letra “e” - que é a fórmula que tem prevalecido. Foi
assim que surgiram termos como "todes" e "bem-vindes".
Mas
nem todos acharam as propostas bem-vindas.
·
Projetos de lei contra a linguagem neutra
O
site da Câmara dos Deputados lista 25 projetos de lei em tramitação que são
contrários ao uso da linguagem neutra em escolas e/ou concursos públicos.
Os
primeiros projetos surgiram em 2020. Desde então, o interesse dos deputados
pelo tema vem crescendo. Só nos seis primeiros meses de 2023 foram apresentados
dez projetos relacionados ao assunto.
A
maioria das propostas é de deputados aliados de Jair Bolsonaro.
“O
conceito de 'linguagem neutra' é fruto da ideologia de gênero, a qual ensina
que o sexo biológico não é o suficiente para definir a sexualidade humana.
Sendo que meninos podem ser meninas e meninas podem ser meninos", diz a
justificativa de um projeto de lei contra a linguagem neutra da deputada
federal Dani Cunha, do União Brasil do Rio de Janeiro.
A
deputada diz ainda que, se a linguagem neutra for ensinada nas escolas,
"estaria se dizendo para os jovens que o gênero é uma abstração social e
que esse jovem pode escolher o que ele quer ser à mercê das próprias
vontades".
·
Sexo X gênero
Os
argumentos para o projeto de lei mostram como o debate sobre a linguagem neutra
se relaciona com outra batalha cultural em curso: o embate entre gênero e sexo
como o que determina oficialmente se alguém é um homem ou uma mulher.
A
partir de 1960, com o surgimento da segunda onda do feminismo, alguns grupos
começam a questionar as noções tradicionais de gênero e sexo.
Segundo
os adeptos dessas ideias, o gênero é uma construção social e deve ter primazia
sobre a biologia.
Para
esse grupo, gênero é algo relacionado a um senso pessoal de identidade: pode
ter a ver com as roupas que a pessoa gosta de vestir, com os trejeitos que usa
para se expressar ou outros códigos sociais que são normalmente associados a um
gênero ou outro.
É
uma visão que gera discussões acaloradas entre as próprias feministas e que se
choca com a noção histórica de que o gênero é determinado pelo sexo biológico e
pela composição dos cromossomos de cada um.
·
'Crises de identidade cromossômica'
Numa
audiência em 2021 que debateu outro projeto de lei contra a linguagem neutra em
materiais didáticos em escolas, proposto pela deputada Chris Tonietto (PL-RJ),
o embate entre gênero e sexo também foi evocado.
Presente
na audiência, o escritor Sidney Luiz Silveira da Costa disse que o projeto de
lei em discussão buscava impedir pessoas de "torcer a língua para fazê-la
dizer o que ela não diz naturalmente porque A, B ou C têm crises de identidade
cromossômica".
"Ninguém
aqui está defendendo a imposição de nada, e sim apenas que a natureza siga seu
curso, a natureza da língua", prosseguiu.
Sidney
Silveira é um dos mais ativos integrantes do movimento contrário à linguagem
neutra. Nos últimos dois anos, ele foi convidado a falar sobre o tema nas
Câmaras Municipais de Belo Horizonte e de Niterói, na Assembleia Legislativa do
Rio e na Câmara dos Deputados em Brasília.
Ele
já foi descrito como um “intelectual católico” por Olavo de Carvalho, um dos
gurus da direita brasileira.
E,
assim como Olavo, Silveira é monarquista, começou a carreira escrevendo para
jornais e dá cursos sobre filosofia mesmo sem ter formação acadêmica na área.
O
escritor é formado em Comunicação e trabalhou vários anos como jornalista, mas
hoje se define em sua página no Instagram como um “estudioso da escolástica”,
uma corrente filosófica da Idade Média.
Contatado
pelo podcast Brasil Partido com um pedido de entrevista, ele não respondeu até
a veiculação do episódio.
·
Preservação da norma culta
Outra
pessoa engajada no movimento contra a linguagem neutra é Tânia Manzur,
professora de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Ela também
já participou de audiências sobre o tema no Congresso.
Manzur
explica ao podcast Brasil Partido por que se envolveu com o assunto.
"Porque
a língua portuguesa é um patrimônio e eu vejo como uma necessidade de ser
preservada das modas."
Ela
faz uma crítica bastante citada por opositores da linguagem neutra: a de que
ela criaria dificuldades de comunicação para muitas pessoas.
"Se
a gente parte do pressuposto de que a linguagem neutra estaria incluindo as
pessoas do grupo LGBTQIA+, eles, pela contagem mais recente, perfariam algo em
torno de 3% da população brasileira. Mas o que essa linguagem neutra faria com
os surdos que fazem leitura labial? Excluiria, e os surdos correspondem a mais
ou menos cinco 5% da população brasileira", afirma.
É
frequente a queixa de que a linguagem neutra prejudicaria não só surdos que
fazem leitura labial, mas também cegos que usam aplicativos de leitura e
disléxicos, que são pessoas com dificuldade pra ler.
O
movimento pró-linguagem neutra reconheceu a pertinência dessas críticas no caso
de cegos e disléxicos. Por isso, muitos ativistas hoje defendem que se use a
letra “e” pra neutralizar o gênero das palavras, e não a letra “x” nem a @, que
podem criar dificuldades na leitura.
No
caso dos surdos, a coisa é mais complexa.
Há
nas redes sociais vários surdos que expressam opiniões contrárias à linguagem
neutra. Algumas dessas pessoas argumentam que a linguagem neutra realmente
criaria problemas para os surdos oralizados - que são aqueles que leem lábios e
fazem oralização pra se comunicar.
Mas
há divergências. Leo Viturinno, que é surdo, gay e professor de Libras, a
Língua Brasileira de Sinais, diz ao podcast que surdos oralizados podem se
adaptar perfeitamente à linguagem neutra, e que opositores dessa causa podem
estar usando os surdos em seu ativismo.
Pra
ele, esses críticos deveriam expor suas opiniões sem mencionar pessoas com
deficiência, porque não falam em nome delas.
·
Bom dia a 'todes'
Se
hoje predominam no Congresso propostas contrárias à linguagem neutra, em partes
do Executivo e do Judiciário parece existir uma abertura maior à causa.
No
governo federal, alguns ministérios têm usado o termo "todes" na
abertura de discursos e eventos oficiais.
"Boa
tarde a todas, todos e 'todes'", afirmou o ministro das Relações
Institucionais, Alexandre Padilha, na cerimônia em que assumiu o posto, em
janeiro.
O
termo "todes" também já foi citado em eventos dos ministérios da
Fazenda, Igualdade Racial e Direitos Humanos, entre outros.
E,
no Judiciário, uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal pôs um freio às
iniciativas legislativas contrárias à linguagem neutra.
Em
fevereiro, a corte considerou inconstitucional uma lei contra a linguagem
neutra aprovada pela Assembleia Legislativa de Rondônia. A lei proibia as
escolas de citar a linguagem neutra na grade curricular e em materiais
didáticos.
Ou
seja, não era apenas uma questão de evitar que professores dissessem “bom dia a
'todes'”, mas de impedir que o tema fosse mencionado aos alunos.
O
relator da ação, ministro Edson Fachin, decidiu que a lei era inconstitucional
porque legislar sobre normas gerais de ensino é uma atribuição da União, e não
de Estados.
Fachin
também disse que proibir a linguagem neutra violaria a liberdade de expressão
nas escolas e atentaria contra o direito à igualdade sem discriminações.
O
ministro também disse que “o direito à igualdade sem discriminações abrange a
identidade e a expressão de gênero”, e que cabe ao Estado reconhecer a
identidade de gênero manifestada por cada pessoa.
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Divisões entre linguistas
Engana-se
quem pensa que, entre os linguistas, há uma posição unânime sobre a linguagem
neutra.
Se
parte da categoria rejeita a causa, há também quem simpatize com ela na
academia.
Cecilia
Farias, que faz doutorado em Linguística na USP, pertence ao segundo grupo.
Pesquisadora
sênior do Museu da Língua Portuguesa, ela diz acreditar que o tema mobilize
tantas paixões por "mexer com as certezas das pessoas".
Ela
se refere principalmente a pessoas "que têm uma visão que separa o mundo
por gênero, e uma visão biológica de gênero muito forte também, que atribui o
papel masculino e o papel feminino como se fosse algo inerente àquela
constituição física, sem pensar no quanto isso é social, na verdade".
"Na
hora que você questiona essas certezas, essas estruturas que as pessoas tomam
há séculos como fundantes do mundo... Não custa nada falar um pronome tal, uma
palavra com 'e' no final. Não vai cair minha língua, mas desestabiliza uma
visão de mundo", opina.
Farias
rejeita o argumento de que a linguagem neutra seria uma ameaça ao idioma.
"Uma
língua que não muda é uma língua que já está morta. Qualquer língua que
continuar sendo falada, ela vai continuar mudando."
"Então,
uma defesa de preservação da língua, de manter o nosso legado, é balela. É uma
justificativa para não querer que o mundo mude, de certa forma."
·
Qual a posição do MEC?
A
BBC procurou o Ministério da Educação para saber a posição da pasta sobre o
ensino da linguagem neutra e se existe algum levantamento que meça o quanto - e
como - o tema tem sido abordado em escolas brasileiras.
O
diretor de Políticas e Diretrizes da Educação Integral Básica do MEC,
Alexsandro do Nascimento Santos, afirmou ao podcast Brasil Partido que o
ministério não tem nenhum levantamento medindo o uso da linguagem neutra nas
escolas.
Disse
também que todas as diretrizes sobre o ensino da língua portuguesa nas escolas
brasileiras foram estabelecidas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
documento que teve suas últimas versões aprovadas em 2017 e 2018, no governo
Michel Temer.
Segundo
Santos, a BNCC orienta que os currículos da educação básica precisam discutir
com os estudantes as diferentes formas de uso da língua.
"O
fenômeno social da linguagem neutra é mais um desses fenômenos que se
manifestam nos usos da língua", diz o diretor do MEC.
"Esses
fenômenos precisam ser estudados na escola como objetos de conhecimento de uma
ciência, que é a linguística (...) O que não significa dizer que haverá
qualquer tipo de orientação sobre se este ou aquele fenômeno linguístico é mais
correto ou menos correto", afirmou.
Embora
considere que os professores de português devam discutir a linguagem neutra com
os alunos, o diretor do MEC defende que o ensino da língua nas escolas priorize
a norma culta.
"Porque
talvez, para muitos estudantes, esse será o único lugar em que ele terá acesso
a esse registro de variação linguística", justificou.
·
Movimento queer
Em
vários países, o ativismo pró-linguagem neutra tem sido encabeçado pelo
movimento queer.
Queer
é um termo que abarca várias identidades sexuais e de gênero.
Por
exemplo: um homem que sente atração por homens e mulheres mas só desenvolve
relacionamentos com outros homens pode escolher se definir como queer por
sentir que os termos gay ou bissexual não se aplicam fielmente a ele. Mas há
vários outros motivos que podem levar alguém a se identificar como queer.
Muitos
nesse movimento acreditam que o gênero de alguém é construído no dia a dia pela
maneira como nos comportamos, vestimos, gesticulamos e, principalmente, pela
linguagem que nós usamos.
Por
esse raciocínio, quando chamamos uma pessoa de homem ou mulher, nós estaríamos
ajudando a torná-la um homem ou uma mulher.
Por
isso que a linguagem é um ponto tão importante pro movimento queer: o movimento
defende ajustes na língua para que pessoas que não se veem nem como homens nem
como mulheres não sejam forçadas a adotar uma dessas identidades.
·
'Provocação do sistema linguístico'
Esse
é um tema que mobiliza Pri Bertucci desde o início da década passada. Naquela
época, Bertucci - que é uma pessoa não binária e se define como pertencente ao
"gênero queer" - tentava adaptar para o português brasileiro
propostas que o movimento queer dos Estados Unidos vinha fazendo para a língua
inglesa.
Bertucci
então elaborou com a psicóloga Andrea Zanella o que chamaram de “Manifesto pela
inclusão do gênero não binário na língua portuguesa”, publicado em 2015.
O
manifesto tinha duas propostas principais: a invenção do pronome
"ile" para quem não se sentisse representado pelos pronomes “ele” e
“ela”, e a substituição da letra “o” no final das palavras pela letra “e” como
alternativa ao masculino genérico.
"Meu
desejo era provocar esse sistema linguístico e fazer uma marcação muito
específica da existência de pessoas não binárias", diz Bertucci ao podcast
Brasil Partido.
"O
desafio é como é que a gente tira as pessoas da zona de conforto sem perder os
interlocutores nessa conversa", afirma.
Mas
a estratégia tem funcionado? Um simples “todes” pode gerar uma enxurrada de
críticas nas redes sociais, e muita gente argumenta que a pauta não seria
prioritária num país com tantas mazelas sociais.
Além
disso, políticos populares na direita têm usado o tema para mobilizar seus
apoiadores.
É
o caso do deputado federal mais votado última eleição para o Congresso - o
bolsonarista Nikolas Ferreira (PL-MG) -, autor de um dos vários projetos contra
a linguagem neutra apresentados em casas legislativas em anos recentes.
·
Contra 'leituras binárias do mundo'
Será
que o ativismo pró-linguagem neutra não poderia estar fortalecendo o campo
político contrário à causa?
"Eu
acho que não fortalece", diz Pri Bertucci. "Isso é uma pauta da
humanidade, não é uma pauta da direita ou da esquerda."
Bertucci
afirma que, quando começou a tratar do tema, 12 anos atrás, "não tinha
quase ninguém querendo me ouvir".
"Esse
nível de crítica que a gente vê hoje, lá atrás era muito maior."
Segundo
Bertucci, seu movimento tem tido sucesso e busca os seguintes objetivos:
"Em
primeiro lugar, reconhecimento, inclusão. Eu quero fazer parte da sociedade, eu
quero poder circular, pegar um voo, ir ao médico e ser 'reconhecide' por quem
eu sou".
"Não
havíamos, enquanto sociedade, parado para pensar que essas pessoas existem,
porque a colonização apagou as identidades não binárias dessa conversa."
Quando
cita a colonização, Bertucci expõe outra bandeira cara a uma parte do movimento
queer. Para essas pessoas, a luta pra transformar a linguagem é parte de uma
batalha bem maior: uma batalha contra leituras do mundo que o movimento
considera binárias, e contra conceitos e convenções culturais que, segundo
eles, se espalharam pelo planeta com o colonialismo.
"Minha
proposta é que sair da binaridade não só da questão linguística e de gênero vai
abrir um novo portal de consciência para que a gente possa perceber o que está
para além dessa polarização", afirma.
Bertucci
afirma que, hoje, boa parte da sociedade está presa a polarizações do tipo
"preto ou branco, homem ou mulher, direita ou esquerda".
"Mas
existem outras camadas aqui, entre uma coisa e outra, que precisam ser
examinadas. E, se a gente não parar e entender onde a gente está dentro desses
processos, vai ficar muito difícil a gente criar uma sociedade um pouco mais
sustentável, inclusiva e evoluída", defende.
Fonte:
BBC News Brasil
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