As medidas para
evitar que El Niño provoque 'hecatombe' na Amazônia
O
El Niño pode causar uma “hecatombe ambiental” na Amazônia neste ano ou no
início do próximo, afirma a bióloga brasileira Erika Berenguer, pesquisadora
das universidades de Oxford e Lancaster, ambas no Reino Unido.
O
fenômeno climático, que envolve um aquecimento incomum no Oceano Pacífico, deve
ser bastante intenso neste ano e pode causar mudanças acentuadas em todo o
mundo.
Recentemente,
os climatologistas anunciaram que o fenômeno já se formou e irá se fortalecer
entre o fim do ano e os primeiros meses de 2024.
Um
dos temores de pesquisadores brasileiros são os problemas que isso pode causar
na Amazônia.
Uma
das principais dificuldades, apontam os especialistas, é a seca extrema causada
pelo El Niño, o que pode culminar em grandes problemas em meio à devastação da
Amazônia nos últimos anos, período em que o bioma enfrentou altos índices de
desmatamento e incêndios.
“Isso (o desmatamento) só começou a cair
principalmente a partir de abril deste ano. Se esse El Niño for realmente
forte, o que há grande probabilidade, é uma grande preocupação porque vai
aumentar o número de incêndios e destruir ainda mais a floresta, acelerando o
processo de degradação”, diz Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudos
Avançados da Universidade de São Paulo (USP).
O
cenário, dizem especialistas, pode ser pior do que o registrado entre o segundo
semestre de 2015 e o início de 2016, período do El Niño mais recente.
Naquela
época, o fenômeno causou efeitos devastadores em diferentes regiões do mundo.
Na
Amazônia, houve redução de chuvas e intensa seca em uma mata que normalmente é
úmida, cenário que favoreceu a disseminação do fogo causado por humanos.
“Eu
passei meses na Amazônia em 2015 (no período de El Niño) e foi traumático olhar
tudo aquilo”, diz Berenguer.
"Eram
milhares e milhares de áreas de floresta queimando e isso dava uma sensação de
impotência. Tenho muito medo porque se acontecer algo semelhante agora, após
tanto desmatamento, o El Niño pode causar uma verdadeira hecatombe
ambiental", acrescenta a bióloga.
O
governo federal disse à BBC News Brasil que tem acompanhado o avanço do El Niño
e que tem se preparado para enfrentar os possíveis impactos do fenômeno
climático (leia mais abaixo).
·
Desmatamento e fogo na Amazônia
A
Amazônia enfrentou um período intenso de desmatamento e incêndios durante a
gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que costumava minimizar a
gravidade desses fenômenos.
Na
gestão Bolsonaro, eram recorrentes críticas de pesquisadores sobre a falta de
fiscalização ambiental no país e o sucateamento de órgãos de fiscalização.
“No
governo anterior houve muito desmatamento, mas, em relação às questões
climáticas, como quando ocorreram os grandes incêndios na Amazônia em 2019, o
clima não era tão seco", comenta a bióloga Joice Ferreira, pesquisadora da
Embrapa Amazônia Oriental e da Rede Amazônia Sustentável.
"Então,
se a gente pode dizer assim, a sociedade brasileira teve sorte, porque o que
foi ruim (nos anos anteriores) poderia ter sido muito pior se estivéssemos em
um ano seco."
No
ano passado, o desmatamento na Amazônia bateu um novo recorde. Segundo
monitoramento feito via satélite pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da
Amazônia (Imazon), a cobertura vegetal da floresta perdeu 10.573 km², uma área
semelhante a quase 3 mil campos de futebol por dia.
É
o maior número anual, ao menos, desde 2008 – ano em que o Imazon começou a
monitorar a região. De acordo com o levantamento, foi o quinto ano consecutivo
de recorde de desmatamento desde o início do monitoramento.
Nos
últimos quatro anos, segundo o Imazon, a perda florestal da Amazônia foi
correspondente a 35.193 km² – área maior que os estados de Sergipe (21 mil km²)
e Alagoas (27 mil km²).
Por
diversas vezes, Bolsonaro minimizou os números sobre desmatamento e incêndios
na Amazônia, mesmo com os dados oficiais mostrando alta nos indicadores.
“Os
ataques que o Brasil sofre quando se fala em Amazônia não são justos. Lá, mais
de 90% daquela área está preservada. Está exatamente igual quando foi
descoberto no ano de 1.500”, disse Bolsonaro em novembro de 2021, durante uma
reunião com investidores em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.
Em
fevereiro deste ano, o desmatamento na Amazônia atingiu 322 km², número que
equivale a aproximadamente o tamanho da cidade de Fortaleza (CE). O dado,
divulgado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), é o recorde
daquele mês desde 2015, quando esse levantamento começou a ser feito – o maior
número até então no mesmo mês era de fevereiro de 2022, com 199 km².
“Não
dá pra avaliar muito bem somente com o dado mensal. Existe o problema das
nuvens. O ideal é analisar pelo menos três meses (juntos) para minimizar as
incertezas. Por isso, não sugiro associar o desmatamento de um mês com ações de
um governo”, diz o pesquisador Luiz Aragão, chefe da Divisão de Observação da
Terra e Geoinformática do Inpe.
Aragão
frisa que ao analisar os primeiros meses do ano, é possível notar queda no
desmatamento no bioma.
Segundo
o Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Inpe, o
desmatamento na Amazônia caiu 31% no acumulado de janeiro a maio de 2023, em
comparação ao mesmo período do ano passado.
·
Como atenuar os impactos do El Niño
Os
pesquisadores acreditam que, entre as principais medidas para reduzir os danos
do El Niño, estão a fiscalização intensa sobre o fogo na região, especialmente
as consideradas menos úmidas, e alertas para a população sobre os riscos de
incêndios no período de seca.
“Essas
ações, caso implementadas, têm capacidade de prevenir e evitar essa grande
catástrofe que pode acontecer se não houver nenhuma ação”, diz Ferreira.
Berenguer
avalia que ainda há tempo para enfrentar o problema de uma forma que seja
possível minimizar os impactos do fenômeno climático. “Não acho que ainda seja
o fim do mundo. A gente ainda tem cerca de dois meses para se preparar e lidar
com essa crise climática. Não está tudo perdido, mas o relógio está fazendo
tic-tac”, afirma a bióloga.
O
El Niño tem sido uma preocupação para o governo federal, afirma à BBC News
Brasil o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (Ibama), Rodrigo Agostinho.
"O
El Niño, de fato, pode trazer um período de seca notadamente na região Norte do
país e isso pode ter implicações no agravamento dos problemas dos incêndios
florestais”, diz.
“A
chegada do El Niño está sendo um processo bastante rápido e está sendo
monitorada pelos técnicos do PrevFogo (Sistema Nacional de Prevenção e Combate
aos Incêndios Florestais).”
Agostinho
afirma que o Ibama tem mantido contato com as principais agências de
meteorologia do país para acompanhar o avanço do fenômeno climático e se
organizar para enfrentar os possíveis impactos.
Ele
aponta que o orçamento do instituto aumentou 113%, em relação ao ano anterior.
Recentemente, o órgão abriu edital para a contratação de brigadistas.
“A
previsão é de um aumento de aproximadamente 18% de brigadistas em relação a
2022, com atuação de 2.101. Destes, 1.385 atuarão na Amazônia Legal (AM, AP,
AC, RR, MT, RO, TO, MA), ou seja, um aumento de 15% do número de brigadistas
previstos nos estados em comparação ao ano passado”, diz nota do instituto, que
informa que 57% das brigadas serão compostas por indígenas e quilombolas.
Segundo
o instituto, desde janeiro deste ano houve aumento das medidas aplicadas pela
fiscalização federal para controlar o desmatamento na Amazônia.
O
Ibama afirma que ocorreu um aumento de 179% dos autos de infração, 128% dos
embargos, de 107% das apreensões e 203% das destruições de equipamentos usados
em crimes ambientais, entre janeiro e maio, na comparação com a média para o
mesmo período nos últimos quatro anos.
O
presidente do instituto frisa à BBC News Brasil que uma das principais
preocupações no atual período são as áreas da Amazônia que foram desmatadas nos
últimos anos.
“De
fato, elas podem sofrer bastante com os incêndios florestais”, diz Agostinho.
·
Fogo e desmatamento
O
fogo costuma fazer parte de uma das etapas do processo de desmatamento no
bioma. Isso porque a queima é considerada o meio mais rápido e barato para
remover a biomassa que fica do material desmatado. Em alguns casos, o fogo se
espalha de forma descontrolada, se tornando um incêndio florestal, avança pela
mata e atinge grandes proporções.
Isso
ocorre, segundo estudiosos, principalmente para a expansão da área de
agropecuária por grandes propriedades.
A
reportagem procurou setores do agronegócio para comentar sobre as ações de
desmatamento no bioma, mas eles optaram por não comentar o caso.
Esses
incêndios ocorrem principalmente no período de seca, que normalmente começa por
volta de maio e se estende até outubro – o período exato varia conforme cada
região.
No
ano passado, os registros de focos de calor (que costumam representar
incêndios) na Amazônia foram os maiores em mais de uma década, segundo dados do
Inpe, que faz esse monitoramento via satélite desde 1998.
Em
2022, foram registrados 115 mil focos de calor na Amazônia, segundo o Inpe. O
dado mais recente que atingiu marca superior a essa foi 2010, quando foram
134,6 mil focos de calor no bioma.
A
diferença, apontam os pesquisadores, é que houve uma forte seca em 2010, que
intensificou as queimadas. Já em 2022, segundo os especialistas, não foi
considerado um período de seca no bioma.
·
O efeito El Niño
Em
meio a esses problemas dos últimos anos, a Amazônia encara o risco de enfrentar
um El Niño intenso.
No
começo de junho, cientistas americanos afirmaram que o fenômeno climático já
havia começado a afetar o planeta.
Segundo
especialistas do Escritório Nacional de Administração Oceânica e Atmosférica
dos Estados Unidos (NOAA, na sigla em inglês), esse fenômeno aumentará as temperaturas no mundo, que, nos últimos
anos, já vem crescendo como resultado das mudanças climáticas.
Chefe
de previsões de longo prazo da agência britânica de meteorologia, Adam Scaife
disse no começo de junho que a previsão é de que a temperatura do planeta
atinja um pico no final deste ano.
"Um
novo recorde de temperatura global no próximo ano é definitivamente possível.
Depende do tamanho do El Niño. Um El Niño em grande escala até o final deste
ano confere uma alta probabilidade de que teremos um novo recorde global de
temperatura em 2024”, afirmou Scaife.
Para
especialistas, o período do El Niño deve causar diversos problemas na Amazônia.
O
bioma sofre com os impactos das mudanças climáticas e, desde o início dos anos
2000, tem ficado mais seco e quente, segundo os estudos.
“Com
o El Niño, a floresta perde ainda mais água e entra em um déficit hídrico. Só
esse efeito já tende a matar muitas árvores da região, parte da biomassa
daquela floresta morre só por esse efeito da seca intensa”, diz o pesquisador
Luiz Aragão, do Inpe.
Com
o cenário de seca, o fogo entra na floresta com mais intensidade. “De todos os
incêndios na Amazônia, 95% são causados por humanos. Primeiro derrubam a
floresta, como para fazer pastagem, normalmente esperam a madeira secar
bastante e jogam fogo. Esse fogo normalmente pula para a floresta e mata as
árvores. É um ciclo de degradação”, explica Nobre.
A
bióloga Erika Berenguer ressalta que é provável que parte do material derrubado
durante o intenso desmatamento da Amazônia no ano passado ainda não tenha sido
queimada.
“Esses
últimos meses foram de chuva, então, não tinha como colocar fogo. Então, o que
normalmente ocorre é que o produtor rural espera chegar a estação seca, deixa a
biomassa da floresta derrubada pegando sol, espera por semanas ou meses até
ficar bem seco e, aí, acende o fogo”, explica Berenguer.
·
As consequências
Há
diversas consequências que podem ser causadas pelo El Niño na Amazônia. Uma
delas é o duro impacto nas emissões de dióxido de carbono, em razão da
possibilidade de inúmeras mortes de árvores, o que intensifica o efeito estufa.
“Os
organismos decompositores dessas árvores liberam carbono para a atmosfera. Uma
árvore que morre mesmo sem qualquer tipo de interferência, envelheceu e morreu,
tem carbono contido em sua biomassa, que equivale a cerca de metade de seu peso,
e que será emitido para a atmosfera por meio desse processo de decomposição”,
explica Aragão.
Já
o desmatamento causa a morte forçada das árvores, que são derrubadas pela ação
humana. Só isso já emitiria carbono com a decomposição. E como o fogo também é
usado nesse processo, para acabar com a biomassa que está na área desmatada,
ocorre então a combustão do material, o que aumenta ainda mais a liberação de
dióxido de carbono e outros gases como monóxido de carbono e metano.
Durante
períodos de El Nino, o fogo, usado no desmatamento, pode sair do controle e
penetrar nas florestas adjacentes. “Quando o fogo entra na floresta, adiciona
emissões diretas de carbono, em relação ao emitido pelo desmatamento, porque
vai queimar a matéria orgânica que está morta no solo, como pedaços de troncos,
folhas e também algumas árvores”, detalha Aragão.
Esses
processos contribuem para o aumento das emissões do CO², que intensificam as
mudanças climáticas globais, intensificando eventos extremos de seca e chuva.
No
período do El Niño de 2015/2016, por exemplo, um estudo apontou que a intensa
seca e os incêndios florestais mataram ao menos 2,5 bilhões de árvores e cipós
apenas no Baixo Tapajós, uma parte da floresta que foi epicentro dos efeitos do
fenômeno climático na Amazônia naquela época.
Os
pesquisadores calcularam quanto carbono foi liberado na atmosfera em
consequência da morte dessas bilhões de árvores: 495 milhões de toneladas de
CO² — valor maior que o liberado pela floresta em um ano inteiro de
desmatamento.
E
descobriram ainda que as árvores continuaram a morrer e a liberar mais carbono
na atmosfera por causa da seca provocada pelo El Niño anos depois do fenômeno
climático.
Esse
estudo, intitulado “Tracking the impacts of El Niño drought and fire in
human-modified Amazonian forests" (monitorando os impactos da seca e
incêndios do El Niño em florestas amazônicas com interferência humana), foi
publicado no periódico científico PNAS (Proceedings of the National Academy of
Sciences of the United States of America) em julho de 2021.
Berenguer
foi a principal autora do estudo. Ela ressalta que os possíveis impactos do El
Niño na Amazônia vão além da floresta e devem afetar milhões de pessoas.
“Não
é só uma discussão ambiental sobre as emissões de CO2 com a floresta queimando
e a perda de biodiversidade. É também um problema de saúde pública. Isso
aumenta a busca por atendimento médico por problemas respiratórios. Muitas
crianças são internadas, o que acaba tirando muitos pais de seus postos de
trabalho”, diz Berenguer.
“Além
disso, há aviões que enfrentam dificuldades para pousar em alguns lugares, a
fumaça também vai para outras regiões do país, entre outros problemas.”
Fonte:
BBC News Brasil
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