Além da aldeia
global
Para
alguns povos originários, “Munduruku” significa “formigas vermelhas”, sinônimo
de gente guerreira, estrategista e nômade. Outrora poderosos, os Mundurukus
hoje vivem em cerca de 30 aldeias espalhadas pelo Amazonas, Pará e Mato Grosso.
Militante de causas indígenas, Daniel Munduruku não foge à regra de
seu povo: é um guerreiro, porém, que se utiliza da palavra falada e
escrita.
Radicado
em Lorena, interior de São Paulo, ele já foi aluno de seminário, educador
social de rua pela Pastoral do Menor e candidato a prefeito de sua cidade.
Hoje, além de professor graduado em Filosofia e doutor em Educação pela USP, é
um dos expoentes da literatura indígena. E, quando possível, um ator
bissexto.
Como
escritor, é autor premiado e membro da Academia de Letras de Lorena. Entre 60
títulos editados, voltados em grande parte a professores e jovens, seus livros
conquistaram dois prêmios Jabuti, uma menção honrosa pela UNESCO e menções de
Livro Altamente Recomendável pela Fundação Nacional do Livro Infantil e
Juvenil.
Entre
os temas abordados em aulas e textos estão o respeito à natureza e à vida em
comunidade, apropriação indevida do conhecimento indígena sem direito a
reconhecimento nem ressarcimento, educação diferenciada a partir da criação de
uma escola indígena, adoção efetiva do termo “indígena” ou “povo originário” em
vez de “índio”, e o porquê das coletividades indígenas escolherem locais sobre
jazidas de minérios. Questões que, de fato, Daniel enfrentou desde a
infância.
Nascido
em Belém, Pará, em 1964, ano do golpe militar que instaurou a ditadura, ele
recebeu, devido à imposição do governo, uma educação “ocidentalizada”— a
começar por seu nome de branco, Daniel Monteiro Costa. Contudo, criado numa
aldeia no interior do estado, para onde sempre retorna, nunca perdeu de vista
sua ancestralidade. Adotou assim o sobrenome Munduruku. No premiado livro Meu
Vô Apolinário, ele conta como os ensinamentos do avô paterno o
ajudaram a valorizar sua identidade.
A
sua mais recente obra, Sawé, O Grito Ancestral, que trata da
destruição da natureza pelos humanos na busca de riqueza e poder, é bilíngue.
Foi escrita em português e munduruku, para que o leitor possa travar contato
com uma das 250 línguas originárias existentes – o Brasil está entre os dez
países mais multilíngues do mundo, mas mantém a maior parte da população
monolíngue do planeta. Ele crê na existência de um vazio no povo brasileiro,
formado, como afirma, sem a perspectiva dos povos originários.
Após
transmitir a cultura indígena por meio de palestras, livros e até festivais
culturais, Munduruku assume agora seu papel mais midiático. Além de assessorar
a equipe de roteiro de Walcyr Carrasco na atual novela das 21h da TV Globo, ele
estrela um papel entre os atores indígenas de Terra e Paixão: o do
sábio pajé Jurecê Guató. Confira a entrevista:
·
Você tem 60 livros publicados. Existe algum método para
a alta produção?
Descobri
minha vocação para a escrita um pouco tardiamente. Já estava com mais de 30
anos quando publiquei meu primeiro livro Histórias de Índio, pela
Companhia das Letrinhas, em 1996. Na ocasião, pensei que seria o único que iria
publicar, pois o mercado editorial estava fechado para o tipo de literatura que
eu eventualmente poderia produzir. No entanto, o “mosquito” da literatura me
mordeu e fui aperfeiçoando meu estilo ao longo do tempo, juntamente com uma
presença muito constante nas escolas brasileiras. Não deixava passar nenhum
convite para falar sobre os povos originários e, mesmo sem receber pagamento
por isso, fui tendo meu esforço reconhecido pelos editores que me encontravam
nos eventos literários. Não demorou muito e os convites para escrever outros
textos começaram a chegar. Isso aumentou muito no começo dos anos 2000, graças
às políticas de ações afirmativas que foram desenvolvidas àquela época. Ficou
ainda melhor a partir de 2008, quando o governo assinou a lei 11.645 que
garantia a temática indígena na sala de aula. A partir daí, vieram vários
editais para aquisição de livros com essa temática e o consequente surgimento
de autores indígenas.
·
O que a literatura indígena pode nos ensinar?
Ela
pode ensinar muitas coisas que sempre foram negadas a todos os brasileiros. Por
exemplo: pode nos ajudar a pensar o Brasil sob outras perspectivas para além do
modelo econômico hegemônico; a aceitar a diversidade cultural e linguística
como um patrimônio na formação de nossa identidade; a nos lembrar de que todo
brasileiro tem uma memória ancestral; que nossa história nacional foi contada
de forma excludente e que é preciso recontá-la para as novas gerações
apresentando seus atores ancestrais.
·
Você repudia o termo “índio”, reducionista do que
verdadeiramente significa o indivíduo e sua cultura, assim como a apropriação
indevida do conhecimento indígena, como a biopirataria. O que é preciso para
sanar essas distorções e apropriações?
É
preciso recontar a história do Brasil e fazer com que os brasileiros se
reconciliem com seu passado ancestral. Isso levaria nossa gente brasileira a
reconhecer sua identidade e a valorizá-la. Creio que isso aumentaria sua
autoestima e seu pertencimento a este território que, sendo seu, deveria
desenvolver-se para fazer nosso povo feliz. Creio que fazendo essa caminhada,
aos poucos iríamos perceber que nossas diferenças são, na verdade, nosso melhor
tesouro.
·
Você é a favor de educação diferenciada com a fundação
de uma universidade indígena. O que é necessário para sua criação?
Sou
a favor que os saberes da tradição sejam reconhecidos como saberes canônicos.
Com esse reconhecimento fatalmente se criaria um instituto onde a transmissão
deles fosse possível. Um instituto onde os protagonistas fossem os indígenas,
mas onde todos os brasileiros que quisessem pudessem frequentar e
aprender.
É
necessário, para que isso ocorra, criar condições para que os indígenas que já
são doutores pudessem adentrar nas universidades e começassem a formar uma
geração de pensadores capazes de entender que tais saberes são urgentes e
necessários para a manutenção do planeta como um todo. Precisaria também,
claro, que houvesse políticos menos retrógrados e alienados que os atuais que
comandam o país.
·
Suas aulas, palestras e livros, mesmo os
infanto-juvenis, possuem teor político. A questão ecológica é um tema
recorrente, como no último livro Sawé, O Grito Ancestral. Você poderia
explicar, resumidamente, o que ocorre com o povo Munduruku por causa da
contaminação dos rios com o mercúrio?
O
povo Munduruku está sendo vítima do modelo econômico
exploratório que
hoje comanda o mundo. Tal sistema entende que a expropriação das riquezas
naturais é a porta de entrada para o desenvolvimento. Por conta disso, o uso
cada vez mais frequente de produtos químicos para “lavar” as pedras que são
extraídas da terra, está sujando o ambiente que é utilizado por todas as formas
de vida. Os rios são os catalisadores do mercúrio jogado em seu leito; por sua
vez, os peixes que se alimentam das plantas aquáticas são contaminados e acabam
contaminando as pessoas que deles se alimentam. Conclusão: crianças, mulheres
grávidas e demais pessoas passam a ser corroídas em seus órgãos por conta do
mercúrio ingerido. Há estudos que já mostram as sequelas desse consumo: doenças
cardíacas, doenças mentais, corpos mutilados, entre outras enfermidades. E isso
está se espalhando por toda a Amazônia.
·
Por que as coletividades indígenas escolhem locais
sobre jazidas de minérios?
Não
se escolhem esses locais pelas jazidas de minérios, mas pela energia que emana
desses locais. Os povos indígenas não se interessam pelo valor do minério, mas
pelo poder de cura, de equilíbrio, de fartura que esses elementos, unidos com a
própria força da natureza, são capazes de gerar. Nesses lugares há maior
incidência da carga espiritual necessária para o bem viver.
·
Qual sua opinião sobre o marco temporal?
O
marco temporal é um nó que os inimigos dos povos originários querem dar na
Constituição brasileira, uma verdadeira jabuticaba na legislação. Como diria
Ciro Gomes, um tatu não sobe no toco. Se há algum lá em cima é porque alguém o
colocou. O marco temporal é um tatu no toco. Uma aberração que afronta nossa
inteligência. Temo que a história há de considerar nossos políticos atuais um
bando de canalhas incapazes de perceber sua própria canalhice. Digo, com toda
certeza, que os filhos deles irão sofrer as consequências das suas
burrices.
·
Você crê na implantação de políticas do Ministério dos Povos Indígenas?
Sempre
me posicionei com reserva pela criação do tal ministério. Minha péssima
previsão é de que ele não sobreviverá a uma reforma ministerial daqui a dois
anos. Acho, inclusive, que há alguns equívocos na condução das ações do
ministério. Um deles é não levar a sério o poder educativo e transformador da
cultura indígena. Há muitos advogados conduzindo um ministério que precisaria
contar com a presença de artistas.
·
Você atuou no filme Tainá 2 e agora
interpreta o pajé Jurecê na novela Terra e Paixão, além de
assessorar a equipe de roteiro. A atuação nas telas é uma maneira de
popularizar a cultura indígena e desfazer a imagem caricata criada pelos
brancos?
Não
sou ingênuo em pensar que uma novela seja a solução para um problema que se
arrasta há mais de 500 anos. Está arraigada na cultura brasileira uma visão
distorcida dos povos indígenas. Isso não se arranca da noite pro dia. Há uma
pequena chance de usar a novela como um instrumento educativo, mas não caio na
ilusão de que estar ali é, por si só, o sinal de mudança. Quero imaginar que a
novela seja um pontapé inicial para que a sociedade brasileira perceba, de uma
vez por todas, que nós indígenas somos seus contemporâneos e podemos ocupar
espaços que vão ajudá-la a ser mais Brasil.
Ø
Lições
da Selva. Por Jacques Gruman
O
caso das quatro crianças indígenas que sobreviveram a um acidente de avião na
Colômbia, que caiu em mata densa e de difícil acesso, me mobilizou bastante.
Elas vagaram por 40 dias em terreno perigoso, lamacento, escuro (lá estão as
maiores árvores da região), com clima frio, insetos e muita umidade. Por lá
circulam onças e cobras venenosas. Uma delas, a verrugosa, é das mais
peçonhentas da América. A vegetação é, com frequência, ameaçadora. Plantas
venenosas podem matar quem as consome. Existem muitos aspectos nesta pequena, e
quase inacreditável, saga.
Lesly,
menina de 13 anos, liderou os irmãos Soleiny (9 anos), Tien (4 anos) e Cristin
(completou 1 ano na mata). Providenciou abrigos provisórios com grandes folhas
e gravetos, comida (principalmente frutas), água (coletada em folhas úmidas) e,
certamente, o estímulo necessário para não desistirem. Nós, urbanoides,
custamos a crer que isso foi possível. Alex Rufino, indígena Ticuna
especialista em cuidados da selva, nos ensina: “As crianças intuitivamente
aprendem muito com seus pais. Quando vão caçar, para colher frutas. Sua
observação é essencial. Eles estão aprendendo o que pode ser útil para eles e o
que não é (…) Cada árvore, cada planta, cada animal indica onde estamos, o que
está disponível e quais são as ameaças. E as crianças sabem interpretar isso”.
O
meio ambiente para os indígenas é um organismo vivo, complexo, cujo
conhecimento, acumulado por gerações e desdobrado em dimensão não apenas
física, é vital para a sobrevivência. Foi isso, tenho certeza, já assimilado
pelas crianças (na proporção de suas idades), que permitiu mantê-las vivas. Não
encontro outra explicação num caso em que as equipes de busca, treinadas em
terrenos hostis e com equipamento especializado, ficaram surpresas com o
comportamento maduro de crianças tão pequenas.
Alguns
afoitos disseram que o resgate foi um “milagre”. Volto ao Alex Rufino: “Os
territórios indígenas sempre foram vistos com uma narrativa herdada da
conquista, da religião católica, porém não falamos de milagres, mas da ligação
espiritual com a natureza. Milagre é a palavra que vende, mas eu falaria mais
do abraço da mãe que é a selva, da mãe que cuida de você”. Aí está, a
Terra-Mãe, a Pachamama dos irmãos andinos, a mesma que estamos nós, os
“civilizados”, tratando de destruir metodicamente.
Tento
me imaginar em situação semelhante quando tinha 13 anos. O Menino, largado em
Barros Filho, Marechal Hermes ou Sampaio, subúrbios cariocas, ficaria perdido
para sempre. Num limbo assustador. Não tinha iniciativa, era totalmente
dependente dos adultos e desconhecia o funcionamento dos mecanismos mais
básicos do cotidiano. Entendia de futebol de botões, decorava lições para o
colégio, era um lateral-esquerdo razoável. Índios? Dizia-se que gostavam de
apito, na televisão o curumim era o logotipo da Tupi, Tonto não passava de
serviçal do Lone Ranger. Natureza? No máximo o capim-navalha, abundante no
matagal que cercava a vila de casas, e a pedreira no final da vila, com suas
cavernas misteriosas. Cresci ignorante do meu planeta, achando natural ver
bicho apenas no zoológico ou na gaiola de casa, orientado por asfalto e
concreto.
O
avô das crianças indígenas agradeceu à Mãe-Terra que as libertou. Podemos achar
um tanto folclórica essa crença, mas, cá entre nós, que autoridade temos para
isso? Nossa vã sabedoria produziu uma sociedade que polui águas, envenena o ar,
esteriliza a terra. Uma sociedade supremacista, que exterminou 5 milhões de
indígenas desde 1500, tratando-os como animais, e agora quer terminar o serviço
sujo impondo o Marco Temporal. Uma sociedade arrogante, que sufoca culturas
ancestrais e as condena ao ostracismo e à galhofa.
Para
quem tem olhos de ver, Lesly e seus irmãos salvaram muito mais do que a si
mesmos. A tradição dessas crianças, invocada apenas no lusco-fusco midiático,
nos dá oportunidade de enxergar a vida no planeta de maneira diferente. Como
uma unidade, sem hierarquias. A vida de uma formiga, uma borboleta ou um
tubarão branco tem o mesmo valor do que a nossa, símios pelados que somos,
carregando um imperador e cinco empáfias nas barrigas estufadas. Convém ouvir o
que disse Ailton Krenak sobre a Terra-Mãe: “Seria como uma mãe, um dia pela
manhã, reunir os filhos e ela sentir que os filhos estão dizendo: a gente não
quer ficar aqui com você. A Terra está ouvindo isso da gente. Ela está sentindo
isso da gente. E a maior parte desses filhos não estão nem aí. Eles estão mesmo
a fim de ir para Marte”. Quem avisa, amigo é.
Fonte:
Por Sérgio Barbo, Le Monde Diplomatique Brasil/ Rede Estação Democracia
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