sábado, 8 de julho de 2023

Além da aldeia global

Para alguns povos originários, “Munduruku” significa “formigas vermelhas”, sinônimo de gente guerreira, estrategista e nômade. Outrora poderosos, os Mundurukus hoje vivem em cerca de 30 aldeias espalhadas pelo Amazonas, Pará e Mato Grosso. Militante de causas indígenas, Daniel Munduruku não foge à regra de seu povo: é um guerreiro, porém, que se utiliza da palavra falada e escrita. 

Radicado em Lorena, interior de São Paulo, ele já foi aluno de seminário, educador social de rua pela Pastoral do Menor e candidato a prefeito de sua cidade. Hoje, além de professor graduado em Filosofia e doutor em Educação pela USP, é um dos expoentes da literatura indígena. E, quando possível, um ator bissexto. 

Como escritor, é autor premiado e membro da Academia de Letras de Lorena. Entre 60 títulos editados, voltados em grande parte a professores e jovens, seus livros conquistaram dois prêmios Jabuti, uma menção honrosa pela UNESCO e menções de Livro Altamente Recomendável pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.  

Entre os temas abordados em aulas e textos estão o respeito à natureza e à vida em comunidade, apropriação indevida do conhecimento indígena sem direito a reconhecimento nem ressarcimento, educação diferenciada a partir da criação de uma escola indígena, adoção efetiva do termo “indígena” ou “povo originário” em vez de “índio”, e o porquê das coletividades indígenas escolherem locais sobre jazidas de minérios. Questões que, de fato, Daniel enfrentou desde a infância. 

Nascido em Belém, Pará, em 1964, ano do golpe militar que instaurou a ditadura, ele recebeu, devido à imposição do governo, uma educação “ocidentalizada”— a começar por seu nome de branco, Daniel Monteiro Costa. Contudo, criado numa aldeia no interior do estado, para onde sempre retorna, nunca perdeu de vista sua ancestralidade. Adotou assim o sobrenome Munduruku. No premiado livro Meu Vô Apolinário, ele conta como os ensinamentos do avô paterno o ajudaram a valorizar sua identidade. 

A sua mais recente obra, Sawé, O Grito Ancestral, que trata da destruição da natureza pelos humanos na busca de riqueza e poder, é bilíngue. Foi escrita em português e munduruku, para que o leitor possa travar contato com uma das 250 línguas originárias existentes – o Brasil está entre os dez países mais multilíngues do mundo, mas mantém a maior parte da população monolíngue do planeta. Ele crê na existência de um vazio no povo brasileiro, formado, como afirma, sem a perspectiva dos povos originários. 

Após transmitir a cultura indígena por meio de palestras, livros e até festivais culturais, Munduruku assume agora seu papel mais midiático. Além de assessorar a equipe de roteiro de Walcyr Carrasco na atual novela das 21h da TV Globo, ele estrela um papel entre os atores indígenas de Terra e Paixão: o do sábio pajé Jurecê Guató. Confira a entrevista:  

·         Você tem 60 livros publicados. Existe algum método para a alta produção? 

Descobri minha vocação para a escrita um pouco tardiamente. Já estava com mais de 30 anos quando publiquei meu primeiro livro Histórias de Índio, pela Companhia das Letrinhas, em 1996. Na ocasião, pensei que seria o único que iria publicar, pois o mercado editorial estava fechado para o tipo de literatura que eu eventualmente poderia produzir. No entanto, o “mosquito” da literatura me mordeu e fui aperfeiçoando meu estilo ao longo do tempo, juntamente com uma presença muito constante nas escolas brasileiras. Não deixava passar nenhum convite para falar sobre os povos originários e, mesmo sem receber pagamento por isso, fui tendo meu esforço reconhecido pelos editores que me encontravam nos eventos literários. Não demorou muito e os convites para escrever outros textos começaram a chegar. Isso aumentou muito no começo dos anos 2000, graças às políticas de ações afirmativas que foram desenvolvidas àquela época. Ficou ainda melhor a partir de 2008, quando o governo assinou a lei 11.645 que garantia a temática indígena na sala de aula. A partir daí, vieram vários editais para aquisição de livros com essa temática e o consequente surgimento de autores indígenas. 

·         O que a literatura indígena pode nos ensinar? 

Ela pode ensinar muitas coisas que sempre foram negadas a todos os brasileiros. Por exemplo: pode nos ajudar a pensar o Brasil sob outras perspectivas para além do modelo econômico hegemônico; a aceitar a diversidade cultural e linguística como um patrimônio na formação de nossa identidade; a nos lembrar de que todo brasileiro tem uma memória ancestral; que nossa história nacional foi contada de forma excludente e que é preciso recontá-la para as novas gerações apresentando seus atores ancestrais. 

·         Você repudia o termo “índio”, reducionista do que verdadeiramente significa o indivíduo e sua cultura, assim como a apropriação indevida do conhecimento indígena, como a biopirataria. O que é preciso para sanar essas distorções e apropriações? 

É preciso recontar a história do Brasil e fazer com que os brasileiros se reconciliem com seu passado ancestral. Isso levaria nossa gente brasileira a reconhecer sua identidade e a valorizá-la. Creio que isso aumentaria sua autoestima e seu pertencimento a este território que, sendo seu, deveria desenvolver-se para fazer nosso povo feliz. Creio que fazendo essa caminhada, aos poucos iríamos perceber que nossas diferenças são, na verdade, nosso melhor tesouro. 

·         Você é a favor de educação diferenciada com a fundação de uma universidade indígena. O que é necessário para sua criação? 

Sou a favor que os saberes da tradição sejam reconhecidos como saberes canônicos. Com esse reconhecimento fatalmente se criaria um instituto onde a transmissão deles fosse possível. Um instituto onde os protagonistas fossem os indígenas, mas onde todos os brasileiros que quisessem pudessem frequentar e aprender. 

É necessário, para que isso ocorra, criar condições para que os indígenas que já são doutores pudessem adentrar nas universidades e começassem a formar uma geração de pensadores capazes de entender que tais saberes são urgentes e necessários para a manutenção do planeta como um todo. Precisaria também, claro, que houvesse políticos menos retrógrados e alienados que os atuais que comandam o país.  

·         Suas aulas, palestras e livros, mesmo os infanto-juvenis, possuem teor político. A questão ecológica é um tema recorrente, como no último livro Sawé, O Grito Ancestral. Você poderia explicar, resumidamente, o que ocorre com o povo Munduruku por causa da contaminação dos rios com o mercúrio? 

O povo Munduruku está sendo vítima do modelo econômico exploratório que hoje comanda o mundo. Tal sistema entende que a expropriação das riquezas naturais é a porta de entrada para o desenvolvimento. Por conta disso, o uso cada vez mais frequente de produtos químicos para “lavar” as pedras que são extraídas da terra, está sujando o ambiente que é utilizado por todas as formas de vida. Os rios são os catalisadores do mercúrio jogado em seu leito; por sua vez, os peixes que se alimentam das plantas aquáticas são contaminados e acabam contaminando as pessoas que deles se alimentam. Conclusão: crianças, mulheres grávidas e demais pessoas passam a ser corroídas em seus órgãos por conta do mercúrio ingerido. Há estudos que já mostram as sequelas desse consumo: doenças cardíacas, doenças mentais, corpos mutilados, entre outras enfermidades. E isso está se espalhando por toda a Amazônia. 

·         Por que as coletividades indígenas escolhem locais sobre jazidas de minérios? 

Não se escolhem esses locais pelas jazidas de minérios, mas pela energia que emana desses locais. Os povos indígenas não se interessam pelo valor do minério, mas pelo poder de cura, de equilíbrio, de fartura que esses elementos, unidos com a própria força da natureza, são capazes de gerar. Nesses lugares há maior incidência da carga espiritual necessária para o bem viver. 

·         Qual sua opinião sobre o marco temporal 

O marco temporal é um nó que os inimigos dos povos originários querem dar na Constituição brasileira, uma verdadeira jabuticaba na legislação. Como diria Ciro Gomes, um tatu não sobe no toco. Se há algum lá em cima é porque alguém o colocou. O marco temporal é um tatu no toco. Uma aberração que afronta nossa inteligência. Temo que a história há de considerar nossos políticos atuais um bando de canalhas incapazes de perceber sua própria canalhice. Digo, com toda certeza, que os filhos deles irão sofrer as consequências das suas burrices.  

·         Você crê na implantação de políticas do Ministério dos Povos Indígenas? 

Sempre me posicionei com reserva pela criação do tal ministério. Minha péssima previsão é de que ele não sobreviverá a uma reforma ministerial daqui a dois anos. Acho, inclusive, que há alguns equívocos na condução das ações do ministério. Um deles é não levar a sério o poder educativo e transformador da cultura indígena. Há muitos advogados conduzindo um ministério que precisaria contar com a presença de artistas.  

·         Você atuou no filme Tainá 2 e agora interpreta o pajé Jurecê na novela Terra e Paixão, além de assessorar a equipe de roteiro. A atuação nas telas é uma maneira de popularizar a cultura indígena e desfazer a imagem caricata criada pelos brancos? 

Não sou ingênuo em pensar que uma novela seja a solução para um problema que se arrasta há mais de 500 anos. Está arraigada na cultura brasileira uma visão distorcida dos povos indígenas. Isso não se arranca da noite pro dia. Há uma pequena chance de usar a novela como um instrumento educativo, mas não caio na ilusão de que estar ali é, por si só, o sinal de mudança. Quero imaginar que a novela seja um pontapé inicial para que a sociedade brasileira perceba, de uma vez por todas, que nós indígenas somos seus contemporâneos e podemos ocupar espaços que vão ajudá-la a ser mais Brasil.

 

Ø  Lições da Selva. Por Jacques Gruman

 

O caso das quatro crianças indígenas que sobreviveram a um acidente de avião na Colômbia, que caiu em mata densa e de difícil acesso, me mobilizou bastante. Elas vagaram por 40 dias em terreno perigoso, lamacento, escuro (lá estão as maiores árvores da região), com clima frio, insetos e muita umidade. Por lá circulam onças e cobras venenosas. Uma delas, a verrugosa, é das mais peçonhentas da América. A vegetação é, com frequência, ameaçadora. Plantas venenosas podem matar quem as consome. Existem muitos aspectos nesta pequena, e quase inacreditável, saga.

Lesly, menina de 13 anos, liderou os irmãos Soleiny (9 anos), Tien (4 anos) e Cristin (completou 1 ano na mata). Providenciou abrigos provisórios com grandes folhas e gravetos, comida (principalmente frutas), água (coletada em folhas úmidas) e, certamente, o estímulo necessário para não desistirem. Nós, urbanoides, custamos a crer que isso foi possível. Alex Rufino, indígena Ticuna especialista em cuidados da selva, nos ensina: “As crianças intuitivamente aprendem muito com seus pais. Quando vão caçar, para colher frutas. Sua observação é essencial. Eles estão aprendendo o que pode ser útil para eles e o que não é (…) Cada árvore, cada planta, cada animal indica onde estamos, o que está disponível e quais são as ameaças. E as crianças sabem interpretar isso”.

O meio ambiente para os indígenas é um organismo vivo, complexo, cujo conhecimento, acumulado por gerações e desdobrado em dimensão não apenas física, é vital para a sobrevivência. Foi isso, tenho certeza, já assimilado pelas crianças (na proporção de suas idades), que permitiu mantê-las vivas. Não encontro outra explicação num caso em que as equipes de busca, treinadas em terrenos hostis e com equipamento especializado, ficaram surpresas com o comportamento maduro de crianças tão pequenas.

Alguns afoitos disseram que o resgate foi um “milagre”. Volto ao Alex Rufino: “Os territórios indígenas sempre foram vistos com uma narrativa herdada da conquista, da religião católica, porém não falamos de milagres, mas da ligação espiritual com a natureza. Milagre é a palavra que vende, mas eu falaria mais do abraço da mãe que é a selva, da mãe que cuida de você”. Aí está, a Terra-Mãe, a Pachamama dos irmãos andinos, a mesma que estamos nós, os “civilizados”, tratando de destruir metodicamente.

Tento me imaginar em situação semelhante quando tinha 13 anos. O Menino, largado em Barros Filho, Marechal Hermes ou Sampaio, subúrbios cariocas, ficaria perdido para sempre. Num limbo assustador. Não tinha iniciativa, era totalmente dependente dos adultos e desconhecia o funcionamento dos mecanismos mais básicos do cotidiano. Entendia de futebol de botões, decorava lições para o colégio, era um lateral-esquerdo razoável. Índios? Dizia-se que gostavam de apito, na televisão o curumim era o logotipo da Tupi, Tonto não passava de serviçal do Lone Ranger. Natureza? No máximo o capim-navalha, abundante no matagal que cercava a vila de casas, e a pedreira no final da vila, com suas cavernas misteriosas. Cresci ignorante do meu planeta, achando natural ver bicho apenas no zoológico ou na gaiola de casa, orientado por asfalto e concreto.

O avô das crianças indígenas agradeceu à Mãe-Terra que as libertou. Podemos achar um tanto folclórica essa crença, mas, cá entre nós, que autoridade temos para isso? Nossa vã sabedoria produziu uma sociedade que polui águas, envenena o ar, esteriliza a terra. Uma sociedade supremacista, que exterminou 5 milhões de indígenas desde 1500, tratando-os como animais, e agora quer terminar o serviço sujo impondo o Marco Temporal. Uma sociedade arrogante, que sufoca culturas ancestrais e as condena ao ostracismo e à galhofa.

Para quem tem olhos de ver, Lesly e seus irmãos salvaram muito mais do que a si mesmos. A tradição dessas crianças, invocada apenas no lusco-fusco midiático, nos dá oportunidade de enxergar a vida no planeta de maneira diferente. Como uma unidade, sem hierarquias. A vida de uma formiga, uma borboleta ou um tubarão branco tem o mesmo valor do que a nossa, símios pelados que somos, carregando um imperador e cinco empáfias nas barrigas estufadas. Convém ouvir o que disse Ailton Krenak sobre a Terra-Mãe: “Seria como uma mãe, um dia pela manhã, reunir os filhos e ela sentir que os filhos estão dizendo: a gente não quer ficar aqui com você. A Terra está ouvindo isso da gente. Ela está sentindo isso da gente. E a maior parte desses filhos não estão nem aí. Eles estão mesmo a fim de ir para Marte”. Quem avisa, amigo é.

 

Fonte: Por Sérgio Barbo, Le Monde Diplomatique Brasil/ Rede Estação Democracia

 

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