A vida da mulher e
o sigilo médico
Uma
questão tormentosa no âmbito do Judiciário tem sido a instauração de processos
contra mulheres que praticaram aborto, mas que foram denunciadas pelos próprios
médicos que as atenderam em hospitais públicos ou privados.
Em
sua prestigiosa coluna na Folha de S. Paulo, a jornalista Monica Bergamo trouxe
a notícia da concessão de Habeas Corpus pelo ministro Reynaldo Soares da
Fonseca para trancar a ação penal instaurada contra uma mulher "denunciada
pelo médico que a atendeu" em razão de aborto praticado e que apresentou
complicações que a levaram a procurar o devido socorro (HC nº 820.577-SP, DJe
29/6/2023).
Segundo
se extrai da importante decisão do relator proferida no HC impetrado pela
eficiente Defensoria Pública de São Paulo, "a paciente consentiu com a
lavratura do boletim de ocorrência, em virtude de ter sido essa a condição
imposta pelo médico para lhe atender". No dizer do ministro Reynaldo, essa
situação "apenas reforça a ilicitude da prova".
O
fato não é isolado. Embora com contornos ligeiramente diferentes, em março
deste ano a 6ª Turma do STJ concedeu Habeas Corpus para trancar uma ação penal
em favor de uma mulher que, após ter realizado manobras abortivas em sua casa,
teve que se internada em hospital na cidade de Lafaiete (MG).
O
médico que a atendeu, relata o ministro Sebastião Reis Jr., "além de
noticiar o fato à autoridade policial, figurou como testemunha na ação penal
que resultou na pronúncia da imputada" (HC nº 783.927, DJe 17/3/2023). Na
oportunidade, o relator salientou que o STJ já havia decidido por sua 4ª Turma
que o sigilo profissional é exigência fundamental da vida social e deve ser
respeitado como princípio de ordem pública..." (RMS 9.612, relator
ministro Cesar Asfor Rocha, DJ 9/11/98).
Inspirada
em caso concreto, a advogada Luiza Oliver, conselheira da OAB/SP, escreveu um
primoroso artigo na Folha de S.Paulo intitulado "O aborto e o sigilo
médico", no qual salientou que não é só a questão do dever de sigilo, como
bem jurídico que está a merecer a atenção do Judiciário, mas a própria vida da
mulher que, intimidada e com medo das consequências penais, venha sangrar até a
morte (edição de 22/6/2023, Tendências e Debates, p. A3).
O
médico, advertiu o ministro Sebastião Reis Jr., é um "confidente
necessário" (HC nº 783.927) e nessa condição está proibido de revelar
segredo de que tem conhecimento em razão da profissão, bem como impedido de
prestar depoimento nos termos do artigo 207 do CPP. Como sublinhou o ministro
Cesar Asfor Rocha referido pelo ministro Reynaldo Soares, "o interesse
público do sigilo profissional decorre do fato de se constituir em um elemento
essencial à existência e à dignidade de certas categorias, e à necessidade de
se tutelar a confiança nelas depositada, sem o que seria inviável o desempenho
de suas funções, bem como por se revelar em uma exigência da vida e da paz
social" (RMS nº 9.612/SP).
Não
é por outra razão, para traçar um paralelo, que o advogado está impedido de
fazer delação contra o cliente que assiste profissionalmente. Mesmo antes da
Lei nº 14.365/2022, que adicionou o § 6º ao artigo 7º ao Estatuto da OAB, o
STJ, em acórdão firmado pelo ministro João Noronha, reafirmou a ideia de que o
respeito ao sigilo profissional não tem a ver com "privilégios pessoais,
mas sim os direitos dos cidadãos e o sistema democrático" (STJ, 5ª T., RHC
nº 164.616, DJe 30/9/2022).
Explica
o ministro que o "sigilo profissional do advogado é premissa fundamental
para o exercício efetivo do direito de defesa e para a relação de confiança
entre defensor técnico e cliente". Parafraseando-o, o efetivo exercício da
medicina pressupõe que o paciente revele ao médico a origem dos sintomas. Minar
essa relação de confiança compromete o sistema de saúde e coloca em risco a
vida do paciente.
Aliás,
em antigo julgamento, o STF deixou claro que no choque entre dois interesses
sociais, "o que se liga ao resguardo do sigilo e o correspondente à
repressão do crime, a lei dá prevalência ao primeiro" (STF, RE nº 60.176.
Rel. Min. Luiz Galotti. DJ 17/6/1966).
Na
questão do aborto, trata-se de entendimento pacificado no Conselho Federal de
Medicina (CFM) e nos respectivos Conselhos Regionais. Desde 1990, há orientação
de que em hipótese alguma o profissional
poderá expor seu cliente a procedimento criminal, conforme dispõe o citado
artigo 66, II da Lei das Contravenções Penais.
O
exemplo clássico é o aborto, pois a lei penal descreve como crime o aborto
provocado pela gestante ou com autorização da mesma. Assim, diante de paciente
que tenha interrompido sua gravidez o médico deverá silenciar. (Cremesp,
Consulta nº 1.116/90. 28/5/1990)
No
mais, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca foi preciso ao recordar que o CFM
na Consulta nº 151.842, de 2016, enfrentou a questão do segredo médico diante
de uma situação de aborto e ementou o entendimento segundo o qual "diante
de um abortamento, seja ele natural ou provocado, não pode o médico comunicar o
fato à autoridade policial ou mesmo judicial, em razão de estar diante de uma
situação típica de segredo médico" (HC nº 820.577).
A
mesma decisão nos lembra que o Código de Ética Médica "aprovado por meio
da Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 2.217, de 27 de setembro de
2018, estabelece, em seu artigo 73, que é vedado ao médico revelar fato de que
tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo
justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. E que na
investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo
que possa expor o paciente a processo penal".
A
decisão monocrática do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, aliada à anterior
da 6ª Turma, da relatoria do ministro Sebastião Reis Jr., mais que um
precedente judicial da maior importância, joga um papel muito positivo no
respeito à vida da mulher. Como advertiu em recente decisão o desembargador
Amable Lopez Soto, do TJ-SP, "permitir que profissionais da saúde violem o
dever de sigilo profissional em casos de supostos crimes de aborto geraria o
indesejado efeito de inibir a procura por socorro por mulheres em risco de
morte". "Em outras palavras, estas mulheres, amedrontadas com uma
possível persecução penal, deixariam de procurar tratamento médico, o que
aumentaria muito a possibilidade de agravamento dos seus quadros de saúde. (RSE
nº 1000288-78.2008.8.26.0606; 12ª Câmara de Direito Criminal; DJe 28.09.2022)."
Fonte:
Por Alberto Zacharias Toron, na Conjur
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