Marco
temporal: os indígenas contra o fim do mundo decretado pelos bandeirantes de
terno
Os povos originários buscaram em seus ancestrais as forças
para resistir ao espetáculo brutal que foi a sessão da votação do chamado marco
temporal na Câmara dos Deputados. Nas 24 horas que antecederam a votação do
projeto de lei, o PL 490, indígenas de todo o Brasil fizeram vigílias ao longo
da madrugada, se pintaram para a guerra, invocaram espíritos nas casas de reza.
Cantaram. Ao lutar por suas terras ancestrais, lutam também pelos não
indígenas. Resistir é verbo que conjugam há séculos. Rexistir é
o único caminho que lhes resta para evitar o colapso climático, um futuro
hostil para as novas gerações de pessoas humanas e a morte completa de grande
parte das pessoas não humanas. SUMAÚMA registrou essas cenas, porque é preciso
documentar o colapso.
O clamor pela vida não sensibiliza, porém, a maioria
do Congresso Nacional. Na Câmara, os deputados aprovaram na noite desta
terça-feira, por 283 votos a 155, o texto principal do projeto, que ainda
precisará ser apreciado pelo Senado. Se o projeto virar lei, o Congresso
passará a dar a palavra final sobre as demarcações. Um poder absoluto que será
concedido ao legislativo, hoje dominado por negacionistas, dispostos a garantir
lucros imediatos para o agronegócio predatório, mesmo que à custa da qualidade
de vida de suas próprias crianças.
E não é só. O texto do PL 490 aprovado pelos
deputados introduziu o conceito do marco temporal. Significa que os povos
indígenas só teriam direito a áreas que ocupavam ou já disputavam em 5 de
outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Todos aqueles povos que
foram expulsos de seus territórios ou tiveram que deixá-los por ameaça de
extermínio perdem seu direito de reivindicar sua terra ancestral. Essa tese
jurídica ignora que a ditadura empresarial-militar que oprimiu o Brasil de 1964
a 1985 matou mais de 8 mil indígenas, a maioria deles na Amazônia, para avançar
com seus projetos de “desenvolvimento”, e provocou o êxodo de vários povos.
Antes dela, outros projetos de colonização marcaram a migração forçada de
aldeias inteiras.
O Supremo Tribunal Federal marcou a votação da tese
do marco temporal para quarta-feira, 7 de junho. Ao se antecipar e aprová-la na
Câmara, os parlamentares buscam tanto evitar essa análise na esfera do
judiciário quanto forjar um confronto com o STF. Como a tese é explicitamente
inconstitucional, há chance de ser derrotada no Supremo, que deve manter a
data. Neste caso, os deputados dirão – como já dizem – que o Supremo está
afrontando a democracia e repetirão o discurso da “ditadura de toga”. O truque
é manjado, mas ainda funciona para a parcela da população reduzida à manada.
·
Movendo-se pela vida
Em São Paulo, o principal protesto indígena foi
organizado pelo povo Guarani, da aldeia Tekoa Pyau, na Rodovia dos
Bandeirantes, uma das principais vias de acesso à capital da maior cidade do
Brasil. Os Guarani se reuniram às 18h de segunda-feira para iniciar seus
rituais de rexistência. Por volta de 5h30 de terça-feira, numa madrugada
gélida, com os corpos pintados, bloquearam a rodovia com pneus e atearam fogo.
Por volta de 7h começou uma negociação com a Polícia
Militar de São Paulo, estado hoje governado pelo bolsonarista Tarcísio de
Freitas (Republicanos-SP). Os indígenas concordaram em liberar uma pista para
passagem de ambulâncias e casos emergenciais. Mas, às 8h30, com a chegada da
Tropa de Choque da PM, o diálogo foi interrompido, sob forte tensão. Quatro
indígenas restaram feridos, um por balas de borracha e três deles por bombas de
gás de “efeito moral”.
Ao mesmo tempo, um helicóptero da PM perseguia num
voo rasante os manifestantes que corriam de volta às aldeias, assustando
crianças indígenas que estavam na escola pela manhã. Galhos caíam das árvores e
colocavam em risco os manifestantes e jornalistas que acompanhavam o protesto.
A PM alegou, em nota, que “após três horas de negociação, a Tropa de Choque
precisou agir com técnicas de dispersão de multidões”. Na conta da polícia,
“ninguém foi preso e não houve relato de feridos”.
“Não é legítimo nos subjugar, mais uma vez”,
defendeu o indígena Karai Djekupe. A ideia original dos manifestantes era
caminhar até a Marginal Tietê, uma das principais vias expressas de São Paulo.
Os sonhos, segundo Djekupe, aconselharam seu povo a rezar para o espírito
adoecido do rio Tietê, que era mãe verdadeira e se tornou um símbolo da
poluição.
Em Brasília, indígenas Kaingang, Terena, Guajajara,
Pankararu, Tikuna, Kayapo, Xikrin, Potiguara, Tuxá, Tukano, Pankará,
Kariri-xokó, Satere-mawe e Pataxó-hã-hã-hãe caminharam da Biblioteca
Nacional/Museu da República até o gramado da Alameda dos Estados, em frente ao
Congresso. Eram poucos, mas estavam lá.
Enquanto os indígenas tentavam ser escutados pelo
país, os parlamentares defensores do marco temporal insistiam em se apresentar
como os verdadeiros protetores dos povos originários, com rajadas de estupidez:
os indígenas “não vivem de comer minhoca”, “têm mais terra que o tamanho de
Portugal”, “são escravizados pela esquerda”. Segurança jurídica e “respeito à
propriedade” eram as duas expressões mais ouvidas nos discursos dos
parlamentares que querem ter o poder de demarcar – ou não demarcar nunca mais –
as terras indígenas.
A deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG) pintou as mãos
com a pasta vermelha de urucum, para simbolizar que o voto pelo marco temporal
era o voto não dos que tinham sangue indígena nas veias, como muitos deputados
alegavam, mas daqueles que tinham sangue indígena nas mãos. Também afirmou que
na Câmara se “negociava a mãe”, referindo-se à mãe Terra.
Ao passar por cima dos povos indígenas, os deputados
passaram mais uma vez a boiada sobre a Amazônia e todos os enclaves de natureza
que ainda resistem. Os homens de terno não tratoravam apenas o futuro, mas
também a inteligência. A precariedade dos discursos, o negacionismo disfarçado
de informação, a ignorância esgoelada com orgulho era também apocalíptica.
Onipotentes, a maioria dos deputados parece sequer perceber que cava o abismo
com seus sapatos de gabinete.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), no auge
de seu poder, definiu com o cinismo habitual: “A maioria sempre vence a
minoria”. A deputada Érica Kokay (PT-DF) resumiu a votação: “O absurdo,
definitivamente, está perdendo a modéstia no Brasil”.
Ø ‘PL do Genocídio’ é institucionalizado com aprovação na pacote que inclui
marco temporal
Desde a aprovação na Câmara do Projeto de Lei
(PL) 490/2007, nesta terça-feira (30), o país não apenas legalizou a tese
política do marco temporal como institucionalizou um “PL do Genocídio”. A
avaliação é do jornalista Leonardo Sakamoto, que participou da edição desta
quarta (31) do ICL Notícias. Para ele, esse pacote de medidas
anti-indígenas é “muito pior do que o marco temporal em si”.
A tese política do marco temporal dificulta a
demarcação de terras indígenas. Isso porque, segundo esse entendimento de
interesse dos ruralistas, só podem ser demarcadas as terras de comunidades
indígenas que ocupavam a terra reivindicada na data de promulgação da
Constituição, em 5 de outubro de 1988. Nessa visão, é como se o Brasil tivesse
começado naquele dia e não tivesse havido conflitos agrários nos quais
comunidades foram expulsas a bala.
Sakamoto se referia ao fato de o PL 490 também abrir
os territórios tradicionais para a exploração de recursos hídricos,
energéticos, minerais e de instalação de infraestrutura. E também de acabar com
a proteção dos povos indígenas isolados em relação a contatos externos.
A medida permite, por exemplo, que “em situações
utilidade pública”, “intermediários em ação estatal” possam quebrar essa
proteção. O conceito de utilidade pública, porém, não define critérios ou
situações para esse tipo de atuação.
Para entidades indigenistas, a inclusão dessa
proposta permitirá missões religiosas para catequizar indígenas não contatados,
colocando a própria saúde desses povos em risco. Os intermediários ainda
poderão ser também entidades particulares nacionais e estrangeiras. O
levantamento do jornalista também mostra que as terras indígenas, hoje já
demarcadas, não poderão ser ampliadas com o PL 490. O que impedirá a correção
de erros passados. O projeto prevê ainda a retomada de territórios indígenas
que “alteraram” ao longo do tempo traços culturais.
·
Expectativa no Senado e STF
“Ou seja, um governante pode ser sommelier de
indígena e dizer que alguém deixou de ser (indígena), por usar celular, ou
qualquer outra razão, para começar um processo de impedimento de terras”,
contesta Sakamoto. Em outro ponto, a proposta também dispensa a consulta prévia
aos donos da terra para a instalação de bases militares, implementação de
rodovias ou mesmo hidrelétricas. As mudanças incluem a facilitação para
contestar processos demarcatórios, a celebração de contratos de produção dentro
das TIs por não indígenas, entre outros retrocessos.
De última hora, por ação da deputada federal Duda
Salabert (PDT-MG), os governistas conseguiram impedir que a liberação do
garimpo em terras indígenas também fosse aprovada no pacote. Mas a mudança
dessa “trajetória da tragédia”, como classificou o colunista do ICL
Notícias, dependerá agora do Senado. Ele avalia que a Casa não terá “a
mesma pressa” para julgar, como a Câmara, e será mais “sensível” ao tema. O
julgamento do marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF), no próximo dia
7 de junho, também ganhará um peso maior.
O jurista e professor de Direito Carlos Marés não
acredita que o PL 490 será aprovado no Senado. Em entrevista ao programa, Marés
também afirmou aguardar com a expectativa a declaração de inconstitucionalidade
da tese pelo STF. O jurista avalia que os ruralistas, a direita e a extrema
direita, que deram aval para o projeto, estão buscando intencionalmente o fim
de uma comunidade e cometem “genocídio”.
·
Manifesto Indígena
“É exatamente essa ideia de genocídio que passa por
essa aprovação do marco temporal. Os povos indígenas têm direito à terra para
poder existir. Então se há um reconhecimento de que os indígenas têm direito de
existir como povo, grupo e comunidade, não é possível imaginar que eles possam
existir fora da terra, porque as características essenciais dos indígenas estão
ligadas à terra. A discussão não é qual é o dia que eles passam a ter direito a
isso, é se eles têm direito. E o marco temporal, que estabelece um dia para ter
esse direito, viola o direito de existir desses povos. Porque um povo sem
território, sem terra, sem lugar para viver, não consegue continuar por muito
tempo, acaba. E o nome disso é genocídio”, destacou Marés.
Em manifesto, nesta quarta, a Teia dos Povos Indígenas do
Maranhão, Bahia, Pernambuco, Sergipe, Ceará, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio
Grande do Sul, Rondônia, Goiás/Distrito Federal, Minas Gerais e Alagoas
prometeram, em manifesto, marchas, bloqueios e autodemarcação caso o PL 490
avance.
“Não vamos admitir o retrocesso e o alastramento do
racismo ambiental, com política de extermínio. Assim como nossos ancestrais
lutaram, continuamos caminhando passos de resistência e lançando nossas flechas
em defesa de todos nós, reverberando vitória diante daqueles que deslegitimam
nosso direito de existir”, destacaram no documento.
Fonte: Sumaúma/RBA
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