Síria: um
território de conflitos políticos
A Síria vive um dos
imbróglios dos conflitos políticos que assombram o país há décadas. Há um mês,
forças rebeldes entraram na capital do país, em Damasco, assumiram o poder e
deram início a uma nova etapa de conflitos depois de 13 anos de guerra civil.
Na Síria, o Partido
Ba’th se manteve no poder desde o golpe de 1963, estabelecendo uma coalizão com
os militares que dominaram a política do país. O partido é formado pela
dinastia Assad, que teve início com o ex-presidente da Síria Hafez al-Assad,
pai de Bashar al-Assad, que o sucedeu e comandou o país por 24 anos, até ser
deposto em dezembro de 2024.
A recente tomada de
poder ocorreu pelo grupo radical islâmico Hayat Tahrir al-Sham
(HTS) e outras facções aliadas. Mas esta é somente uma das ramificações
dos grupos políticos em conflito na região, que desde a Primavera Árabe em 2011
transformou-se em uma guerra civil de grandes proporções, devastando o país,
matando mais de 300 mil pessoas e deixando quase 6 milhões de refugiados.
·
A
dinastia Assad
Tudo começou com as
rebeliões contra a dinastia Assad, incluindo o pai Hafez al-Assad, que se
manteve no comando do país de 1971 até 2000, seguido pelo último presidente
autoritário Bashar al-Assad.
Os
pesquisadores Nikolaos van Dam
(1995) e Amos Perlmutter
(1969) apontam
que a dinastia do Partido Ba’th se mantinha no poder por meio de uma combinação
de lealdade sectária e força militar, suprimindo efetivamente a oposição.
·
Os
movimentos islâmicos
Ao longo da
história do país, as principais figuras de oposição ao regime de Ba’th na Síria
foram os movimentos islâmicos, que levaram a revoltas significativas, como a
revolta de Hama em 1981. Conforme mostra o pesquisador Eduard
Gombár (2001),
três facções islâmicas radicais lutaram para obter apoio de potências externas
(localizadas nas regiões de Hama, Aleppo e Damasco).
Segundo Gombár, o
movimento islâmico sírio se diferencia dos demais na região, como do Irã, não
recebendo o apoio dos mesmos em seus primórdios. Na Síria, a Irmandade
Muçulmana recebeu apoio do exterior, formando, ainda, duas organizações
independentes: uma com sede na Arábia Saudita e outra no Iraque sob o nome
de Frente de Libertação Nacional.
Nos anos 80, as
lutas da Irmandade Muçulmana se radicalizaram para a Jihad, que
é movimento islã conhecido como “guerra santa”, e na Síria teve a sua principal
manifestação no Massacre de Hama, em abril de 1982, quando as Forças Armadas do
país bombardearam a cidade de Hama contra um dos grupos muçulmanos.
A partir de então,
o Estado Islâmico e outros grupos muçulmanos integraram a
complexidade dos atores não estatais de extrema influência no país. De acordo
com o pesquisador Cemil Boyraz, no artigo “Alternative
Political Projects of Territoriality and Governance during the Syrian War: The
Caliphate Vs Democratic Confederalism”, para a revista Geopolitics, em 2021, o
califado do Estado Islâmico está enraizado em uma interpretação radical do
Islã, com o objetivo de estabelecer um estado teocrático governado pela lei da
Sharia.
·
O
confederalismo democrático na Síria
Além da influência
do Estado Islâmico (IS), o contexto da Síria integra, ainda, a complexidade
outros atores não estatais de extrema influência no país, como é o caso
do Partido da União Democrática (PYD), formada por curdos sírios, que
contrasta com os grupos muçulmanos, mas também representa oposição à dinastia
Assad.
Neste último, segundo Boyra, estabeleceu-se o
chamado Confederalismo Democrático da Administração Autônoma do Norte e
Leste da Síria (AANES), inspirado nas teorias de Abdullah Öcalan.
Originalmente, o modelo enfatiza a democracia direta, a igualdade de gênero e a
sustentabilidade ecológica, posicionando-se como uma alternativa
anticapitalista.
Pesquisadores (Molteni, 2023 e Sargi, 2021) apontam que a
expansão do califado islâmico na Síria levou a uma significativa instabilidade
regional e intervenções militares internacionais, enquanto o Confederalismo
Democrático obteve apoio de vários atores globais interessados em seu modelo de
governança progressista.
·
Como
a dinastia se manteve por décadas
Embora o Partido
Ba’th e seus aliados militares tenham mantido um controle rígido sobre o poder,
o surgimento de vários grupos armados, incluindo facções islâmicas, como o
Estado Islâmico, o Exército Nacional Sírio (SNA), a Frente de Libertação
Nacional e o Hayat Tahrir al-Sham (HTS) – este último que assumiu o poder em
dezembro, refletia a luta contínua pela influência política na Síria.
Para fazer frente
ao avanço de outras figuras de poder paralelas, o governo Assad contou com o
apoio de outros grupos a seu favor, as milícias pró-governo. As milícias
pró-governo (PGMs) se tornaram parte integrante do regime sírio,
fornecendo apoio essencial em operações de contra-insurgência.
·
As
milícias pró-governo
De acordo com Yaniv
Voller, em artigo para a revista International Affairs, em 2022, “Rethinking armed
groups and order: Syria and the rise of militiatocracies”, as milícias
pró-governo da Síria formaram uma relação simbiótica com o governo central,
criando uma nova ordem política chamada miliciatocracia, na qual estes grupos
apoiam o governo na contra-insurgência enquanto ganham influência política, ou
seja, ambos se beneficiam do apoio.
No caso dessas
milícias na Síria, ao contrário de outros grupos armados que visam derrubar ou
minar o governo, as PGMs trabalhavam junto ao Estado. Elas ajudavam a manter a
autoridade governamental durante conflitos civis, o que permitia ao governo
sobreviver às insurgências e, ao mesmo tempo, aumentar a influência política
dos líderes da milícia.
Ao mesmo tempo,
aponta Voller, estes grupos detinham capacidade de “moldar a governança e os
sistemas políticos”, desequilibrando o poder do estado. Na guerra civil síria,
estes grupos se tornaram parte integrante da estratégia do governo, em zonas de
conflito.
¨ Futuro da Síria 'depende da decisão de Trump' sobre a
região, afirma especialista
O colapso do
governo de Assad na Síria foi sem dúvida o evento mais consequente de 2024 para
o Oriente Médio. A Sputnik pediu ao veterano especialista em política regional
e assuntos de segurança Ali Rizk uma análise detalhada do que aconteceu, os
atores envolvidos e o destino que a Síria vai enfrentar nos meses e anos que
virão.
Os EUA
e seus aliados "planejaram"
a ofensiva rebelde síria, que começou em 27 de novembro e rapidamente se
transformou em uma rota, tirando "vantagem do fato de que a Síria era um
Estado fraco", disse Rizk à Sputnik.
A Síria se tornou
um "Estado fraco e frágil" no curso de uma longa guerra civil apoiada
por potências estrangeiras e foi "ainda mais enfraquecida" em
meio às recentes "guerras israelenses na região, particularmente contra o Hezbollah",
que forçaram a milícia libanesa a retirar seus combatentes de elite de cena,
explicou Rizk.
<><> Cacofonia
de interesses divergentes
Todos os atores
estrangeiros envolvidos na crise síria "concordaram quando se tratou
de se livrar do ex-presidente Bashar al-Assad", mas, além disso,
"quando se trata do que vem a seguir, acho que eles
não concordam",
disse o observador, alertando que isso poderia provocar conflitos nos próximos
meses e anos.
Os objetivos de
Israel são "cortar a linha de suprimento logístico que liga o Irã ao
Hezbollah e diminuir a influência
do Irã"
na Síria em geral.
A Turquia vê a
situação "como uma forma de reter ou retornar aos dias de glória do
Império Otomano" e avançar seu objetivo de bloquear maior autonomia
para os curdos, disse Rizk.
Os EUA, além de
seus esforços de longa data para transformar a Síria em um Estado
fracassado ocupando áreas-chave de energia e produção de alimentos,
buscam, pelo menos oficialmente, impedir o ressurgimento
do Daesh (organização
terrorista proibida na Rússia e em vários outros países), enquanto caminham em
sintonia com Israel no Irã.
<><> O
que está reservado para 2025?
Há três
cenários principais para a Síria em 2025, diz Rizk.
1. A Síria se
despedaça por motivos étnicos e religiosos, com o Daesh tirando vantagem do
caos, Israel tomando
territórios adicionais
para si e a Turquia ajudando aliados em um conflito com os curdos.
2. "Um regime
semelhante ao Talibã [organização sob sanções da ONU por atividade terrorista]
na Síria, ou seja, uma tomada de poder jihadista salafista" —
possível se elementos linha-dura no grupo armado Hayat Tahrir al-Sham (HTS)
conseguirem o que querem.
3. Uma Síria
unificada alinhada
à Turquia, em
paz com Israel e anti-Irã — que Rizk diz ser o cenário preferido para
Washington, Tel Aviv e Ancara.
"Muito será
determinado pelo que o presidente eleito [dos EUA, Donald] Trump
escolher seguir", enfatizou Rizk, apontando para as potenciais
divergências entre Washington e seus aliados sobre qual política seguir.
Em última análise,
o observador teme que "a Síria não permanecerá em seu estado
atual" nos próximos meses e anos, dados os riscos
de novas conquistas israelenses
e de nova violência entre o novo governo alinhado à Turquia e os curdos.
¨ Gaza: ‘Cada dia sem cessar-fogo trará mais tragédia’,
alerta ONU
O comissário-geral
Philippe Lazzarini enfatizou que nenhum lugar e ninguém em Gaza está seguro
desde o início da guerra em outubro de 2023.
“No início do ano,
recebemos relatos de mais um ataque a Al Mawasi com dezenas de pessoas mortas e
feridas”, disse ele ,
chamando isso de “ outro lembrete de que não existe zona humanitária,
muito menos uma ‘zona segura’ ”.
Ele alertou que
“cada dia sem cessar-fogo trará mais tragédia”.
·
Mídia
sob ataque
Separadamente, a UNRWA lembrou que as autoridades
israelenses continuam impedindo a mídia internacional de operar e reportar
dentro de Gaza.
“O acesso a
jornalistas internacionais para reportar livremente a partir de Gaza deve ser
garantido”, disse a
agência .
Da mesma forma, o
escritório de direitos humanos da ONU, ACNUDH , disse estar
profundamente preocupado com a suspensão das operações da rede de notícias Al
Jazeera na Cisjordânia ocupada pela Autoridade Palestina (AP).
O canal sediado no
Catar foi acusado de transmitir “materiais incitantes” que eram “enganosos e
provocavam conflitos”, de acordo com relatos da mídia internacional que citaram
a agência oficial de notícias palestina Wafa.
O desenvolvimento
ocorre em meio à “tendência preocupante” de suprimir a liberdade de opinião e
expressão no Território Palestino Ocupado, disse o ACNUDH, instando a AP “a
reverter o curso e respeitar suas obrigações de direito internacional”.
Especialistas em
direitos humanos lamentam “flagrante desrespeito” pela saúde
Enquanto isso, dois
especialistas independentes nomeados pelo Conselho de
Direitos Humanos da
ONU apelaram pelo fim do que chamaram de “flagrante desrespeito ao direito à
saúde em Gaza” após o ataque da semana passada ao Hospital Kamal Adwan, no
norte, e a prisão e detenção arbitrárias de seu diretor.
O Dr. Tlaleng
Mofokeng, Relator Especial sobre o direito à saúde física e mental, e Francesca
Albanese, Relatora Especial sobre a situação dos direitos humanos no Território
Palestino Ocupado, expressaram suas preocupações em uma declaração emitida na
quinta-feira.
“Por mais de um ano
de genocídio, o ataque flagrante de Israel ao direito à saúde em Gaza e no
resto do território palestino ocupado está atingindo novos patamares de
impunidade ”, disseram eles.
·
Assistência
médica sob fogo
Os especialistas
ficaram “horrorizados e preocupados” com os relatos do Norte de Gaza,
“especialmente o ataque aos profissionais de saúde, incluindo o último dos 22
hospitais agora destruídos: o Hospital Kamal Adwan”.
Eles expressaram
grande preocupação com o destino do diretor do hospital, Dr. Hussam Abu Safiya,
descrevendo-o como “ mais um médico a ser assediado, sequestrado e detido
arbitrariamente pelas forças de ocupação, em seu caso por desafiar ordens de
evacuação para deixar seus pacientes e colegas para trás ”.
Eles disseram que
tal ação “faz parte de um padrão de Israel para bombardear, destruir e
aniquilar completamente a realização do direito à saúde em Gaza”.
·
Preocupação
com diretor de hospital
Os especialistas
observaram que antes do Dr. Abu Safiya ser sequestrado, seu filho foi morto na
frente dele.
Além disso, o
médico “foi ferido recentemente em serviço como resultado dos atos genocidas de
Israel”, mas “continuou a prestar cuidados enquanto o hospital estava sob
bombardeio e ameaça contínuos”.
“ Relatos mais
perturbadores indicam que as forças israelenses supostamente conduziram
execuções extrajudiciais de algumas pessoas nas proximidades do hospital ,
incluindo um homem palestino que supostamente estava segurando uma bandeira
branca”, acrescentaram.
·
Não
é um alvo
Mais de 1.057
profissionais de saúde e médicos palestinos foram mortos até agora e muitos
foram presos arbitrariamente, de acordo com especialistas independentes.
“As ações heroicas
dos colegas médicos palestinos em Gaza nos ensinam o que significa ter feito o
juramento médico. Elas também são um sinal claro de uma humanidade depravada
que permitiu que um genocídio continuasse por bem mais de um ano”, disseram.
Salientando que o
pessoal médico goza de proteções especiais ao abrigo do direito internacional
humanitário, os especialistas em direitos humanos disseram que “ eles não
são alvos legítimos de ataque, nem podem ser legitimamente detidos por
exercerem a sua profissão ”.
·
Acabar
com as agressões e as prisões arbitrárias
Os especialistas
pediram que Israel, como potência ocupante, respeite e proteja o direito à vida
e à saúde em Gaza e em todo o Território Palestino Ocupado.
“Eles também devem
garantir a libertação imediata do Dr. Hussam Abu Safiya e de todos os outros
profissionais de saúde detidos arbitrariamente. Que eles sejam os últimos
palestinos presos arbitrariamente e que o novo ano comece sob diferentes
auspícios.”
·
Sobre
os relatores da ONU
Relatores Especiais
são nomeados pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, que fica em Genebra.
Eles são mandatados para monitorar e relatar situações específicas de países ou
questões temáticas.
Esses especialistas
não são funcionários da ONU, não recebem salário e atuam em caráter individual,
independentemente do Secretariado da ONU.
Fonte: Jornal GGN/Sputnik
Brasil
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