terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Natalia Fingemann: Flávio Dino e a moeda de troca política na democracia brasileira

O regime político brasileiro tinha como característica principal o “presidencialismo de coalização”. Esse termo definido por Sergio Abranches (1988), em seu artigo seminal, apontava que no sistema democrático brasileiro o presidente eleito não detinha maioria suficiente no Congresso para aprovar sua agenda de governo. Dessa forma, o recém eleito presidente tendia a distribuir os ministérios e as secretarias para os partidos de oposição, de uma maneira que lhe garantisse a aprovação das suas medidas no Legislativo.

Esse modelo político que garantiu uma certa previsibilidade e estabilidade entre o Executivo e o Legislativo foi, contudo, rompido a partir da crise política de 2015. Nesse ano, o presidente do Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, aprovou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que obrigava o governo a pagar as emendas parlamentares individuais, chamadas de “emendas impositivas”.

Nesse sentido, aconteceu uma mudança dentro do regime político brasileiro que pela primeira vez desde a Constituição de 1988 fortalece o poder do Legislativo em detrimento do Executivo. Isso pode ser notado de imediato quando se compara os recursos empenhados em emendas parlamentares em 2015, R$ 3,3 bilhões, em relação ao ano de 2016, R$25,6 bilhões (Portal da Transparência, 2024).

Esse valor empenhado se manteve estável durante a gestão de Michel Temer, porém logo em seguida com a vitória de Jair Bolsonaro destaca-se um crescimento exponencial nos recursos voltados às “emendas impositivas”. Sem interesse político em adotar as premissas do “presidencialismo de coalização” e com frágil apoio político, o governo de Bolsonaro garantiu a aprovação da sua agenda no Legislativo por meio da ampliação do chamado Orçamento Secreto. Essa “nova categoria orçamentária” nada mais era do que o aumento descontrolado das emendas parlamentares que atingiram o pico de R$37,4 bilhões em 2020, representando quase 30% das despesas discricionárias (Portal da Transparência, 2024). Sem qualquer mecanismo de fiscalização dos gastos públicos realizados a partir das emendas, a capacidade de execução do governo federal nas políticas públicas se tornou pífia.

A gestão de Lula III, que completará 2 anos em 6 de janeiro de 2025, herdou esse novo regime político em que a moeda de troca com mais valor ao Congresso Nacional é a liberação indiscriminada das emendas parlamentares.  Com um gabinete ministerial composto por 11 partidos políticos, sendo alguns deles da oposição – MDB, União Brasil, Republicanos e PP – o governo de Lula tem apresentado muitas dificuldades para aprovar sua agenda política e executar suas políticas públicas setoriais, uma vez que ter na base governista a oposição não garante apoio automático, pois parte do Orçamento dos Ministérios é capturado pelas emendas parlamentares.

Nesse sentido, o ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal (STF) já vinha buscando reequilibrar o jogo político entre o Executivo e Legislativo. Isso é visto pela declaração do STF de inconstitucionalidade do orçamento secreto em dezembro de 2022. No entanto, o aumento da transparência nas emendas parlamentares não alterou a cenário conflituoso entre o governo de Lula III e a Câmara de Deputados, presidida por Arthur Lira.  Em 2024, por exemplo, o valor empenhado em emendas atingiu o patamar de R$ 41,4 bilhões, gerando diversas dificuldades para se realizar as promessas de campanha de Lula.

É notório, contudo, que a entrada do Ministro Flávio Dino no STF tem mudado definitivamente a regra do jogo na democracia brasileira. Em agosto de 2024, o ministro suspendeu a execução de emendas e, com a aprovação da Lei Complementar 210/24, ele definiu regras de transparência e limites as despesas das emendas parlamentares de acordo com o arcabouço fiscal aprovado. O braço de ferro entre a Arthur Lira e Flávio Dino reapareceu mais uma vez nessa última semana do ano de 2024, com a suspensão no pagamento de R$ 4,2 bilhões em emendas de comissão devido à falta de clareza sobre os critérios apresentados pela Câmara dos Deputados.

Embora o ministro Flávio Dino tenha aceitado analisar a resposta apresentada pelos deputados, é importante se atentar em como o ativismo judicial do STF pode se tornar uma moeda de troca do jogo político da democracia do Brasil, pressionando cada vez mais a oposição em atender as demandas do Executivo por meio de uma paralisação de seus recursos orçamentários.

 

¨      "A democracia está visivelmente ameaçada", diz André Singer

No último fim de ano, o jornalista Juca Kfouri conversou com o professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, André Singer, sobre os principais desafios políticos para 2025 e a relação conflituosa entre governos e mercado. Ex-homem de comunicação nos dois primeiros mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, André Singer analisou o papel do capital financeiro na política, a comunicação do governo com a população e a atual polarização brasileira. Segundo ele, há uma evidente “tensão sobre a democracia” em escala mundial, fruto das pressões econômicas e de uma espécie de “velha luta de classes” adaptada aos tempos contemporâneos.

“Nós estamos hoje passando por um período em que a democracia está visivelmente ameaçada. Na minha opinião, não é um fenômeno passageiro, mas algo duradouro”, observou o cientista político, fazendo referência ao contexto internacional, em especial ao que ocorre nos Estados Unidos.

Singer destacou a dificuldade de o governo Biden melhorar as condições de vida da maioria do povo norte-americano a ponto de consolidar um sucessor. De acordo com o professor, essa situação de impasse é semelhante à experimentada por muitos governos democráticos, incluindo o do presidente Lula, sobretudo diante de mercados que parecem “vender pessimismo” e “apostar contra” as políticas públicas de combate às desigualdades.

<><> Mercado, otimismo e comunicação

Um dos temas centrais abordados por Juca Kfouri foi a relação do governo Lula com o mercado, que, apesar de apresentar indicadores econômicos favoráveis – como redução do desemprego e queda da pobreza absoluta – permanece cético quanto às perspectivas de crescimento. Sobre isso, André Singer afirmou:

“Esse é o conflito central que não ocorre apenas no Brasil, mas no mundo inteiro. Os governos democráticos encontram dificuldade para responder às pressões exercidas pelo capital”.

Singer também foi questionado se há, de fato, um problema de comunicação por parte do governo. Para o professor, ainda que toda gestão pública possa melhorar suas estratégias de divulgação, não acredita que seja esse o “x” da questão:

“O governo tem comunicado o que faz, da maneira como pode. Sempre há espaço para aperfeiçoar, mas não vejo que esse seja o ponto fundamental. Na verdade, os problemas de fundo são aqueles mencionados antes, ligados a uma espécie de impasse global”.

<><> Entrevista do presidente Lula em emissora de TV

Juca Kfouri trouxe à tona as críticas que Lula recebeu por ter concedido entrevista ao Fantástico, após sair do hospital, em vez de privilegiar canais considerados mais progressistas. Para Singer, não há como um presidente “evitar falar para a Rede Globo”, dada a importância do grupo na formação da opinião pública:

“É importante o presidente também se relacionar com veículos alternativos, mas ele governa para todos. Não dá para ignorar os grandes veículos, nem deixar de dialogar com eles”.

<><> Polarização, pesquisas e bolsonarismo

A polarização política e as pesquisas de opinião que mostram o Brasil dividido entre opiniões “bom/ótimo”, “ruim/péssimo” e “regular” sobre o governo foram analisadas. Para André Singer, essa divisão não é surpresa, mas preocupa quando desemboca em atitudes ou discursos autoritários:

“O problema não é a democracia ser dividida, pois faz parte do processo. O problema é a inclinação antidemocrática de uma parcela significativa da população”.

Questionado se existiria um “bolsonarismo moderado”, Singer foi categórico:

“Não acho que exista, mas há um bolsonarismo que tenta passar uma aparência moderada. Trata-se de uma estratégia para angariar votos e governar, mas, no fundo, a base segue ligada a setores que defendem visões autoritárias”.

<><> Tarcísio de Freitas e a dança política

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, ex-ministro do governo Bolsonaro, foi apontado como exemplo de político que procura manter diálogo com diversos segmentos, mas sem romper com o bolsonarismo. Para Singer, trata-se de uma “dissimulação calculada” que objetiva não desagradar a base bolsonarista e, ao mesmo tempo, conquistar apoios em outros campos.

Outro ponto enfatizado por André Singer é o poder do Congresso, frequentemente controlado por partidos de centro, o chamado “Centrão”, que tende a flutuar de acordo com interesses momentâneos. O professor avaliou que esse fenômeno não é recente, mas ficou mais forte a partir de 2015, durante a presidência da Câmara por Eduardo Cunha, e se consolidou com práticas como as emendas de relator (conhecidas como “orçamento secreto”):

“Não é aceitável que haja destinação de parte do orçamento sem transparência. Isso é objeto de um tremendo conflito, pois não se pode ignorar a importância do Congresso, mas também não se pode admitir mecanismos que fujam ao controle público”.

<><> Impeachment de Dilma e a questão do golpe parlamentar

Ao ser abordado sobre o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, Singer defendeu a tese de que se tratou de um “golpe parlamentar”, baseado na expressão cunhada por Vanderlei Guilherme dos Santos:

“O impeachment não teve comprovação de crime de responsabilidade, pois as chamadas ‘pedaladas fiscais’ já eram práticas corriqueiras e aceitas em outros momentos. Tinha um claro componente político que se sobrepôs a qualquer aspecto jurídico”.

<><> STF como guardião da democracia

Por fim, Singer comentou o papel do Supremo Tribunal Federal (STF) na defesa da democracia, lembrando que houve momentos excepcionais em que o Judiciário precisou agir de forma mais ativa, sobretudo após os ataques antidemocráticos de 8 de janeiro. Ele concluiu que o STF tem, sim, sido decisivo para conter avanços autoritários:

“Devemos muito ao STF. Em vários episódios, o tribunal atuou para resguardar as instituições, ainda que algumas ações possam ter sido monocráticas ou exageradas. O fundamental é que tem havido a preservação do Estado Democrático de Direito”.

¨      Centrão pressiona Lula por reforma ministerial

Partidos do Centrão intensificaram as pressões sobre o presidente Lula (PT) para que promova uma reforma ministerial em 2025. Com foco em ampliar o controle sobre pastas estratégicas, as lideranças dessas siglas buscam fortalecer sua posição no governo, de olho na execução de políticas e no controle de orçamentos robustos, em troca de alianças para 2026, informa o g1.  

Entre os ministérios mais cobiçados estão o da Saúde, atualmente liderado por Nísia Trindade, e o das Relações Institucionais (SRI), comandado por Alexandre Padilha (PT). Também entram na mira as pastas da Defesa, ocupada por José Múcio Monteiro, e da Justiça, sob a liderança de Ricardo Lewandowski. As mudanças, entretanto, esbarram no estilo característico de Lula, que resiste a pressões externas e costuma postergar decisões estratégicas.  

<><> Saúde e Relações Institucionais como peças-chave

As movimentações mais intensas ocorrem em torno da Saúde, uma pasta com grande orçamento e impacto direto na população. Deputados do Centrão defendem que o ministério, atualmente ocupado por uma técnica de confiança do presidente, seja redistribuído para contemplar interesses políticos da base.  

No caso da SRI, que articula a relação do governo com o Congresso, o Centrão avalia que Alexandre Padilha (PT), deputado licenciado e aliado de Lula, poderia ser substituído por um nome indicado por líderes parlamentares para facilitar negociações e garantir a fidelidade da base em votações importantes.  

<><> Defesa e Justiça na balança

Nos últimos meses, especulações indicam que José Múcio Monteiro e Ricardo Lewandowski poderiam deixar os ministérios da Defesa e Justiça, respectivamente, devido a questões pessoais e familiares. Apesar disso, ambos são considerados peças importantes na estratégia de Lula: Múcio foi fundamental para distensionar a relação do governo com os militares, enquanto Lewandowski trouxe sua expertise jurídica para negociar a PEC da Segurança.  

Entre os nomes cotados para assumir o Ministério da Justiça está o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que encerra seu mandato como presidente do Senado em fevereiro e poderia fortalecer o elo do governo com o PSD.  

<><> Pressão política versus estilo Lula

Apesar das cobranças de aliados, Lula mantém sua postura de decidir no próprio tempo. O histórico do presidente é marcado por adiamentos estratégicos, como durante a transição, quando definiu os ministérios apenas dias antes de tomar posse.  

Aliados acreditam que as mudanças podem ser definidas após o recesso parlamentar, em fevereiro, mas sem previsão concreta. A resistência do presidente em ceder a pressões externas reforça sua autoridade sobre o governo, mas gera ansiedade nos partidos que aguardam um redesenho ministerial para garantir maior influência.  

Com uma base ampla, mas heterogênea, Lula busca equilibrar as demandas políticas com a execução de projetos estratégicos, enquanto articula alianças para consolidar o apoio necessário ao governo e preparar o terreno para 2026.  

¨      Ministério, governo estadual e Senado: quais são as possibilidades para o futuro de Pacheco e Lira

Fora dos comandos do Senado e da Câmara a partir de fevereiro, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e Arthur Lira (PP-AL) já traçam os caminhos de seus futuros políticos, enquanto articulam suas sucessões. De acordo com informações do jornal O Globo, ambos encerram seus mandatos mantendo a influência sobre as Casas e com planos ambiciosos para os próximos anos, que podem incluir disputas eleitorais ou cargos no governo federal.

Pacheco, que chegou a declarar sua intenção de deixar a vida pública ao final do mandato em 2027, enfrenta pressão do presidente Lula (PT) e de aliados para concorrer ao governo de Minas Gerais em 2026. Outra possibilidade é assumir um ministério, sendo a pasta da Justiça um desejo antigo do senador. Contudo, a indicação ao cargo enfrentaria desafios internos na atual composição ministerial.

Enquanto isso, Arthur Lira já admitiu publicamente o desejo de concorrer ao Senado em 2026. No entanto, a disputa promete ser acirrada, uma vez que Lira teria de enfrentar seu rival histórico, Renan Calheiros (MDB-AL). Nos bastidores, também se discute a possibilidade de Lira assumir o Ministério da Agricultura, caso Carlos Fávaro (PSD-MT) retorne ao Senado.

<><> Costuras políticas e desafios eleitorais

Com o fim de seus mandatos na presidência das Casas, tanto Pacheco quanto Lira mantêm o foco em fortalecer suas bases políticas. Pacheco busca consolidar a posição de seu partido, o PSD, no Senado, articulando a presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) para Otto Alencar (PSD-BA). Além disso, tenta evitar exposição antecipada à disputa pelo governo de Minas, para não atrair críticas dos eleitores bolsonaristas, que ainda representam uma fatia significativa do eleitorado mineiro.

Enquanto avalia as articulações em Minas, Pacheco mantém outro sonho: uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF). No entanto, o caminho é incerto, considerando que as indicações dependem diretamente do presidente da República e do alinhamento político no momento da abertura da vaga.

Além disso, aliados de Pacheco ponderam que uma candidatura ao governo de Minas poderia ser viável, com o apoio do PSD e do PT. A estratégia seria evitar desgaste antecipado e fortalecer sua imagem ao longo dos próximos dois anos.

Já Lira precisa lidar com a complexa política alagoana. Apesar de ter um acordo público com o prefeito de Maceió, João Henrique Caldas (PL), para liderarem uma chapa em 2026 — Lira ao Senado e JHC ao governo do estado —, adversários como Renan Filho (MDB), atual ministro dos Transportes, podem atrapalhar seus planos. Renan Filho é visto como um nome forte para disputar o governo de Alagoas, o que poderia reorganizar alianças locais e dificultar os planos de Lira.

Por outro lado, ele precisa decidir entre permanecer na Câmara com um papel de destaque, como a relatoria da Lei Orçamentária Anual (LOA), ou arriscar uma transição para o Senado ou para o Executivo. Internamente, há divergências sobre qual caminho seria mais vantajoso para sua trajetória em 2026.

Enquanto o Ministério da Agricultura surge como uma possibilidade, a viabilidade do plano depende de um rearranjo político que precisa contemplar aliados de Lula e do PL. Paralelamente, Lira segue articulando a transição da Câmara para seu sucessor, Hugo Motta (Republicanos-PB), garantindo que sua influência permaneça na Casa.

 

Fonte: Jornal GGN/Brasil 247

 

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