Esporte de elite
pode prejudicar fertilidade de atletas?
A medalhista de ouro
olímpica Laura
Kenny é a atleta feminina mais bem-sucedida da história do Reino Unido.
Ela é mãe de dois
meninos, mas também teve um aborto espontâneo e
uma gravidez ectópica,
e sempre se perguntou se o custo físico do esporte de elite havia prejudicado
sua fertilidade.
Laura tem 32 anos e
dedicou seu corpo ao ciclismo por mais de uma década.
"Em todas as
sessões de treinamento eu dei 100%, em todas as
corridas eu dei 100%."
"Eu levava
isso ao limite: se eu não ficava doente depois de uma corrida, pensava: 'será
que eu me esforcei o suficiente? '"
Esse compromisso absoluto
foi recompensado no velódromo. Duas medalhas de ouro nas Olimpíadas de Londres
2012 foram seguidas por mais duas na Rio 2016.
Ela se casou com
Jason Kenny, outro fenômeno do ciclismo, no final daquele ano e o casal teve seu primeiro bebê, Albie, em 2017.
Ela então garantiu outra medalha de ouro e prata nas Olimpíadas de Tóquio
(realizadas em 2021).
Mas ela abortou em
novembro de 2021 e cinco meses depois teve uma gravidez ectópica, na qual o
embrião se implanta fora do útero, necessitando de
cirurgia de emergência.
"Tudo foi um
choque — deixei de estar muito em controle do meu corpo para estar muito fora
de controle", disse ela à BBC.
Laura nunca havia
se preocupado com sua própria fertilidade antes. Conceber Albie foi simples e a
gravidez correu bem.
Mas desde que ela
falou publicamente sobre a perda de seu bebê, outras atletas disseram a ela que
haviam passado pela mesma coisa.
A pergunta que fica
é: o esporte de elite pode ter um impacto prejudicial na fertilidade de atletas
mulheres?
"Será que meu
corpo estava esgotado e reagiu dizendo: 'não tem mais como fazer isso'?",
ela pergunta.
O aborto espontâneo
é comum. Cerca de uma em cada quatro gestações termina antes de 24 semanas e
muitas ocorrem em um estágio muito precoce. A maioria dos casais nunca descobre
o porquê.
·
Mas
atletas de elite correm maior risco de ter algum tipo de problema de
fertilidade?
Emma O'Donnell,
fisiologista da Universidade de Loughborough, diz que o estilo de vida de uma
atleta profissional exerce uma pressão diferente sobre o seu corpo.
O treinamento de
elite queima uma quantidade extraordinária de calorias e, como resultado, os
corpos das atletas costumam ser magros e musculosos, contendo muito pouca
gordura corporal.
Se elas não se
alimentarem o suficiente para acompanhar a queima de calorias, problemas com os
ciclos menstruais, como interrupção por meses ou até anos, são "muito
comuns", diz O'Donnell.
Quase dois terços
das atletas mulheres têm menstruações interrompidas, principalmente em esportes
de resistência. Percentuais altos também são registrados entre praticantes de
elite de ginástica, balé e patinação artística. Já entre a população geral de mulheres,
o percentual de menstruações interrompidas é de 2% a 5%.
A ausência de
menstruação pode ser um sinal de que a ovulação (ou liberação do óvulo) não
está acontecendo.
·
Como
isso acontece no corpo?
"Não temos
100% de certeza", diz O'Donnell, mas a ideia principal é que conceber um
bebê é uma tarefa que consome tanta energia do corpo que o cérebro interrompe
todo o processo de reprodução se achar que o corpo não possui energia
suficiente.
Isso começa no
hipotálamo, uma pequena estrutura no centro do cérebro que detecta o estado
nutricional do corpo.
Logo abaixo do
hipotálamo está a fábrica de hormônios do corpo — a
glândula pituitária.
Normalmente, a
glândula libera hormônios que viajam até o útero e os ovários para controlar o
ciclo menstrual mensal e a liberação de óvulo, o que torna a gravidez possível.
Mas se o hipotálamo
não estiver feliz, esse processo é interrompido e a ovulação não acontece.
"Se você não
está ovulando, não pode ter um bebê. Você não pode
conceber porque não há nenhum óvulo sendo liberado", diz O'Donnell.
O principal fator
para isso parece ser o grande número de calorias queimadas durante os treinos
físicos, o que pode fazer com que os atletas tenham dificuldade em comer comida
suficiente para compensar.
Esse fenômeno é
conhecido como deficiência relativa de energia no esporte (RED-S) e foi
reconhecido pela primeira vez pelo Comitê Olímpico Internacional em 2014.
Mas é provável que
outros fatores também estejam envolvidos, diz a professora Geeta Nargund,
consultora do hospital St George's e diretora médica da entidade Create
Fertility.
A gordura no corpo
ajuda a produzir o hormônio sexual estrogênio.
"Se o esporte
está afetando o nível de gordura corporal, é claro que há um efeito nos níveis
de estrogênio", diz ela.
O estresse
psicológico — potencialmente causado pelas pressões do treino e da competição —
também pode atrapalhar o ciclo menstrual.
"Nós vemos
isso em mulheres com altos níveis de ansiedade", disse O'Donnell.
A interrupção da
menstruação e a liberação de óvulos são o impacto mais claramente reconhecido
na fertilidade de uma atleta feminina, mas isso deve se resolver quando ela se
aposenta do esporte, observa ela.
·
Gravidez
ectópica e aborto espontâneo
Para as atletas que
conseguem engravidar, ainda há riscos. Depois que um óvulo é fertilizado, ele
deve se implantar no revestimento do útero. No entanto, em uma gravidez
ectópica, o óvulo se implanta em outro lugar, geralmente nas trompas de falópio
que conectam os ovários ao útero.
Cerca de 11 mil
gestações por ano no Reino Unido são ectópicas. Não está totalmente claro por
que elas acontecem, embora a inflamação e o tecido cicatricial nas trompas de
Falópio possam aumentar o risco.
"Mas, neste
caso, não vejo uma ligação direta entre esportes e um aumento na incidência de
gravidez ectópica", diz Nargund, que tratou atletas com dificuldades de
fertilidade.
No entanto, ela
disse que pode haver uma ligação entre exercícios muito intensos nos primeiros
três meses de gravidez e aborto espontâneo — embora sejam necessárias muito
mais pesquisas para se ter certeza.
Ela cita um grande
estudo dinamarquês que acompanhou mais de 90 mil mulheres e que sugere que
quanto mais exercícios intensos as mulheres faziam, maior o risco. Isso
acontece especialmente com exercícios de peso e alto impacto.
"Se você
estiver no nível de Laura Kenny, de atletas de elite, você está no topo",
diz Nargund.
Mas ela explicou
que as descobertas do estudo precisam ser interpretadas "com
cautela", porque a forma como o estudo foi elaborado indica que podem
haver outras explicações que não foram consideradas.
Enquanto isso, um estudo
muito pequeno com 34 atletas norueguesas não encontrou risco maior de problemas
de fertilidade, incluindo aborto.
"Precisamos
fazer muito mais pesquisas quando se trata de esportes, exercícios, equilíbrio
hormonal e reprodução", diz Nargund.
·
Atletas
congelando óvulos
Lauren Nicholls
jogou netball de elite por 10 anos e depois teve dois filhos, antes de se
tornar treinadora do Loughborough Lightning, uma equipe britânica. Ela diz que
as conversas que as jogadoras atuais têm sobre fertilidade são
diferentes das que ela tinha com suas colegas de antigamente.
"Conheço
algumas jogadoras um pouco mais velhas e elas congelaram óvulos e adiaram essas
decisões sobre ter uma família", diz ela. "Porque agora elas estão
preocupadas com sua carreira."
Conciliar o sonho
de ser uma atleta de elite com o de começar uma família sempre foi um desafio complicado.
Para as mulheres, os anos de pico de fertilidade coincidem com seu pico físico.
Atletas do sexo
masculino também não estão imunes a problemas de fertilidade.
Queimar mais
energia do que você consome pode afetar os níveis de testosterona, causar anormalidades
no esperma e até mesmo disfunção erétil.
Mas para Emma
Pullen, pesquisadora de exercícios esportivos em Loughborough, a falta de
respostas definitivas sobre o impacto do esporte de elite é emblemática de quão
mal as atletas têm sido pesquisadas — desde a fertilidade até o risco de
lesões.
Ela disse que a
pesquisa com mulheres está correndo atrás da atenção dada pela ciência no
esporte masculino.
"Estamos vendo
as repercussões disso com a crescente profissionalização dos esportes femininos
e com mais atletas do sexo feminino do que nunca", diz Pullen.
No geral, Nargund
argumenta que as atletas provavelmente enfrentam mais desafios de fertilidade
do que outras mulheres.
"Parece haver
um problema de fertilidade devido ao efeito potencial [do esporte de elite] na
ovulação, incluindo um risco potencialmente maior de aborto", diz ela.
Mas uma resposta
definitiva sobre exatamente quanto exercício de elite é demais não está clara.
E isso é o suficiente para Dame Laura, por enquanto.
"Acho que a
conversa em si é muito importante porque quero que as pessoas comecem a
falar", diz Laura. "Honestamente, eu adoraria se fosse muito mais
aberto."
No entanto, a
relação entre exercícios e fertilidade afeta a todos nós, mesmo que estejamos
muito longe da glória olímpica.
·
Como
o exercício afeta a fertilidade em geral?
A maioria dos
homens e mulheres se beneficia de se exercitar e perder excesso de peso antes
de tentar engravidar — sabe-se que isso aumentar a fertilidade.
A atividade física
regular reduz o estresse, melhora o sono e torna a menstruação mais regular em
pessoas com a condição hormonal da síndrome dos ovários policísticos (SOP).
Mas atletas
amadoras que treinam intensamente também podem acabar esgotando sua energia,
interrompendo a menstruação ou a tornando irregular.
"Não
exatamente na mesma medida, mas isso acontece", diz O'Donnell.
Garantir que haja
um equilíbrio entre a ingestão e a produção de energia é "muito importante
para os ciclos ovulatórios" e a chave para manter a função reprodutiva,
acrescenta ela.
"[Atletas
amadores] não estão cientes do fato de quantas calorias eles realmente precisam
ingerir para atender a essa demanda de energia."
Fonte: James Gallagher e Philippa Roxby,
repórteres de Ciências e Saúde da BBC News
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