Anomalias Congênitas não são
sobre bebês, é sobre conexões e autenticidade
Acompanhar casos de recém-nascidos com
anomalias congênitas é algo que vejo com frequência no hospital onde trabalho
com meus alunos. Para quem está ali no dia a dia, isso acaba se tornando parte
da rotina. Mas, para os pais, que sonhavam com um bebê saudável, é algo que
muda a vida para sempre.
As anomalias congênitas são alterações estruturais ou
funcionais que ocorrem durante a vida intrauterina e podem afetar diversos
órgãos e sistemas do corpo humano. Estima-se que aproximadamente 3% dos
recém-nascidos apresentem anomalias congênitas, sendo que a prematuridade é um
fator de risco significativo, com uma incidência duas vezes maior em bebês
nascidos antes das 37 semanas de gestação.
No início, o choque, o medo e o desespero são
sentimentos visíveis no rosto dos pais. Com o tempo, esses sentimentos se
transformam, dando lugar à resiliência, à força, à fé e, acima de tudo, à
esperança. É uma jornada difícil, mas cheia de aprendizado. Nesse percurso, uma
mãe encontra apoio na outra, ambas caminhando pelos corredores do hospital,
enfrentando o desafio de ter um filho na UTI. Essa união se torna poderosa,
pois fortalece e cria laços que podem durar uma vida inteira.
O tempo que passam em contato constante com a
equipe daquela unidade faz com que a criança se desenvolva desde o
recém-nascido até o lactente. Quando finalmente estão prontos para ir para
casa, a criança já conquistou muitos "titios" e "tias" –
profissionais que cuidaram, brincaram, afagaram e até choraram com ela. E, por
mais que seja uma vitória, essa despedida deixa um vazio, pois todos sentem
essa partida de maneira especial.
O estudante de enfermagem que ali se encontra,
muitas vezes ainda adolescente e imaturo nas experiências da vida, também
sente. Ele sente o olhar ansioso dos pais durante a visita, o receio de tocar
no próprio filho, a esperança de que tudo dará certo e, por vezes, a culpa que
surge com ecos de histórias do passado. Muitas vezes, essa é sua primeira
experiência com uma criança com malformações, e nem sempre é fácil lidar com
isso. Ele também precisa de acolhimento (emocional, intelectual, informativo)
para o amadurecimento profissional e de vida no qual está navegando.
Ao observar essa cena, me distancio e me vejo
nesse cenário: uma professora, muito além de uma enfermeira, e pesquisadora
dedicada ao estudo dessas "condições estranhas" que, para muitos, são
apenas conceitos distantes. Quando me encontro cercada por profissionais,
famílias e estudantes, preciso buscar o tom adequado para me conectar com cada
um deles. Saio da perspectiva acadêmica e entro na perspectiva do
relacionamento, na construção desse sistema no qual um recém-nascido com
anomalia congênita me ensina um novo jeito de me conectar com as pessoas.
Lembro com clareza do ano passado, daquele
bebê com a síndrome de Prune Belly (SPB), com prevalência estimada entre 1 em 35.000 a 1 em
50.000 nascimentos vivos. A cada novo grupo de estudantes
que chegava à UTI pediátrica, todos se encantavam com aquela criança que, mês
após mês, crescia e se transformava. Ali, naquele ambiente, ela encontrou seu
verdadeiro lar. Sua mãe, presente em todas as visitas, jamais faltava. Aos 8
meses, a tão esperada alta chegou. A família preparou a casa, organizando um
quarto adaptado para as necessidades da criança. Foi um mês de aproximação, de
acolhimento, e, finalmente, ela teve a chance de conhecer um mundo além do
hospital — o mundo do "meu lar", "minha casa", "meu
quarto", "o aconchego com os meus".
A síndrome de Prune Belly é uma condição rara que afeta o
desenvolvimento dos músculos abdominais, causando flacidez na barriga. Pode
levar a problemas nos rins e no trato urinário, além de outras complicações,
como dificuldades respiratórias. O tratamento varia conforme os sintomas e pode
incluir cirurgias e acompanhamento médico.
Mas, apenas um mês após a alta dessa criança
com a SPB, recebi uma mensagem de uma estudante que a acompanhou, muito entristecida.
Ela me trouxe a notícia de que a criança faleceu. Esse é um tema com o qual
frequentemente me deparo em minha prática com doenças raras e anomalias
congênitas: a morte e o luto.
¨ Crianças
com doenças raras: por que o papel do Enfermeiro é transformador na Saúde da
Família?
A gestação de Angélik parecia tranquila até os
cinco meses, quando uma ultrassonografia de emergência mudou tudo. Os
resultados trouxeram preocupação: o crescimento estava abaixo do esperado
para a idade gestacional, com baixo peso, pouco fluido cerebral e acúmulo ao
redor do coração. A partir daquele momento, cada ultrassom
tornou-se um misto de esperança e angústia, realizados ao menos duas vezes por
semana para acompanhar a evolução.
Com o passar do tempo, alguns parâmetros começaram
a se estabilizar, mas o desafio permanecia. Angélik continuava pequena, e nos
últimos dias de gestação, sua movimentação intraútero cessou completamente. O
parto normal foi tentado, mas ela não tinha força suficiente, levando à
necessidade de uma cesariana.
Ao nascer, Angélik foi imediatamente
acompanhada por uma equipe multidisciplinar, que inicialmente levantou a
suspeita de toxoplasmose. Os meses seguintes trouxeram novos desafios:
medicações intensas, vômitos frequentes e dificuldade em ganhar peso. Contudo,
aos nove meses, outro diagnóstico mudou o rumo dos cuidados: a Síndrome de
Silver-Russell (SSR).
A SSR trouxe consigo uma série de
particularidades, como dificuldade persistente em ganhar peso, refluxo
gastroesofágico, alergias alimentares e episódios de hipoglicemia. Cada desafio
demandou estratégias específicas e muita resiliência da família e dos
profissionais envolvidos.
A história de Angélik é um exemplo de como a
saúde pediátrica exige um olhar atento e integrado, capaz de identificar e manejar
condições raras desde os primeiros sinais. Mais do que um diagnóstico, é o
cuidado especializado e o suporte às famílias que fazem a diferença no
enfrentamento de condições complexas como a SSR.
Como profissionais de saúde, somos chamados a
transformar desafios em oportunidades de cuidado e acolhimento. Essa história é
um convite para refletirmos sobre nosso papel e sobre como podemos fazer a
diferença na vida de tantas famílias que enfrentam a realidade das doenças
raras.
O que é a SSR?
A Síndrome de Silver-Russell (SSR) é uma condição genética rara que afeta o crescimento e o
desenvolvimento. Crianças com SSR geralmente nascem menores e mais leves do que
o esperado para sua idade gestacional. Algumas características comuns incluem:
·
Baixo
peso e altura: mesmo após o nascimento, o crescimento
pode ser mais lento que o normal.
·
Assimetria
corporal: um lado do corpo pode ser menor que o
outro.
·
Dificuldade
em ganhar peso: pode haver
refluxo gastroesofágico e problemas alimentares.
·
Características
faciais específicas: como a testa mais
proeminente.
·
Hipoglicemia
(baixo nível de açúcar no sangue): pode
ocorrer, especialmente nos primeiros anos de vida.
Essa síndrome pode ser causada por alterações
em genes relacionados ao crescimento, mas o diagnóstico nem sempre é fácil e
pode envolver testes genéticos, além da avaliação clínica.
Embora não tenha cura, o tratamento se
concentra em manejar os sintomas e ajudar a criança a crescer e se desenvolver
da melhor forma possível. Isso pode incluir acompanhamento nutricional, uso de
hormônio do crescimento, suporte psicológico e o apoio de uma equipe
multidisciplinar, incluindo enfermeiros, médicos e terapeutas.
<><> Dados relevantes sobre
Doenças Raras
No Brasil, estima-se que mais de 13 milhões de
pessoas vivam com doenças raras, sendo que cerca de 75% dos
casos são diagnosticados ainda na infância.
Apesar disso, o caminho para o diagnóstico é longo e desafiador, com um tempo
médio de espera que varia de 4 a 7 anos. Esse atraso não é apenas angustiante para as famílias, mas também
impacta diretamente as chances de um tratamento precoce, que pode melhorar
significativamente a qualidade de vida.
Mesmo com números alarmantes, o papel do
enfermeiro no cuidado às pessoas com doenças raras ainda é pouco conhecido e
subestimado. Essa lacuna de compreensão prejudica o acesso a um atendimento
integral, que inclui desde o diagnóstico precoce até o suporte contínuo às
famílias.
O enfermeiro está no centro do cuidado. Ele não apenas auxilia no
manejo clínico, mas também educa, acolhe e orienta famílias em momentos
críticos. Sua atuação pode fazer a diferença entre a frustração de um
diagnóstico tardio e a esperança que surge com um cuidado especializado.
Os dados mostram a urgência de fortalecer a
visibilidade e o reconhecimento do papel dos enfermeiros na assistência às
doenças raras. Garantir que profissionais da saúde estejam preparados para
identificar sinais precoces e apoiar famílias não é apenas uma necessidade
técnica, mas um compromisso com a equidade e o cuidado humanizado.
O papel único do Enfermeiro
O enfermeiro desempenha um papel que vai muito
além do cuidado técnico. Ele é um profissional que conecta o conhecimento
científico à prática humanizada, tornando-se um ponto de apoio essencial para
as famílias e pacientes em suas jornadas de saúde.
·
Educação: informar para Empoderar
O enfermeiro é um educador por excelência. Ele
orienta as famílias sobre a condição rara, explicando de forma acessível os
cuidados necessários, as possíveis complicações e os sinais de alerta. Um exemplo
concreto é quando, durante visitas domiciliares, o enfermeiro ensina a família
a administrar medicamentos de maneira segura ou a identificar alterações no
quadro clínico que exijam intervenção imediata.
·
Acesso: navegar pelo Sistema de Saúde
Muitas famílias enfrentam barreiras no acesso
a serviços de saúde, seja por falta de informações ou pela complexidade do
sistema. O enfermeiro atua como um guia, ajudando na identificação de recursos
disponíveis, no encaminhamento para especialistas e até mesmo no apoio durante
processos administrativos, como a busca por medicações de alto custo.
·
Apoio emocional
Receber o diagnóstico de uma doença rara é
desafiador, e o enfermeiro está lá para oferecer mais do que suporte técnico;
ele é um pilar emocional. Em momentos de crise, como uma internação inesperada
ou a adaptação a novos tratamentos, o enfermeiro acolhe e oferece suporte
psicológico, fortalecendo a resiliência da família.
Exemplos que fazem a diferença
1. Acompanhamento domiciliar: o enfermeiro visita regularmente a família para avaliar o
desenvolvimento do paciente, ajustar o plano de cuidado e garantir que todos os
recursos necessários estejam sendo utilizados.
2. Planos de cuidado individualizados: cada paciente com doença rara tem necessidades únicas. O
enfermeiro elabora planos personalizados, considerando as especificidades da
condição, o contexto familiar e os objetivos de longo prazo.
O papel do enfermeiro é único porque ele alia
conhecimento técnico, empatia e criatividade para resolver problemas complexos.
Sua atuação é essencial para transformar desafios em possibilidades, promovendo
não apenas saúde, mas também esperança.
A história de Angélik nos ensina que o cuidado com crianças raras vai muito além do
tratamento médico. Ele envolve toda a família, que precisa ser apoiada,
orientada e acolhida. Para a mãe de Angélik, compartilhar experiências com outra
mãe que também enfrenta os desafios de uma
condição genética na família é reconfortante. Há sentimentos, frustrações e
conquistas que só quem vive essa jornada pode entender. Não há tecnologia, nem
profissionais de saúde que assumam esse papel único de identidade e troca.
O aspecto psicológico também se torna um pilar
essencial. Angélik está crescendo, percebendo suas diferenças e lidando com
desafios como
ser a menor da turma de sua escola ou precisar de injeções diárias de hormônio
do crescimento. Para os pais, o futuro é uma mistura de
incertezas e a vontade de preparar a filha para uma vida plena e significativa.
Mas o cuidado com doenças raras não se limita
ao ambiente familiar ou hospitalar. Empresas e organizações também têm
um papel crucial. Ao acolher pessoas com condições raras —
sejam elas crianças ou adultos —, elas não apenas promovem inclusão, mas ajudam
a construir um mundo mais empático e equitativo.
O cuidado com crianças raras vai além da
saúde. É sobre garantir dignidade, esperança e uma vida plena para quem mais
precisa.
Se você é enfermeiro, compartilhe nos
comentários como tem feito a diferença na vida de seus pacientes. E, se não é,
pense em como podemos apoiar e valorizar ainda mais esse papel tão singular no
sistema de saúde e no cuidado das crianças com doenças raras.
Fonte: Por Geisa
Luz, no Linkedin
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