quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Anomalias Congênitas não são sobre bebês, é sobre conexões e autenticidade

Acompanhar casos de recém-nascidos com anomalias congênitas é algo que vejo com frequência no hospital onde trabalho com meus alunos. Para quem está ali no dia a dia, isso acaba se tornando parte da rotina. Mas, para os pais, que sonhavam com um bebê saudável, é algo que muda a vida para sempre.

As anomalias congênitas são alterações estruturais ou funcionais que ocorrem durante a vida intrauterina e podem afetar diversos órgãos e sistemas do corpo humano. Estima-se que aproximadamente 3% dos recém-nascidos apresentem anomalias congênitas, sendo que a prematuridade é um fator de risco significativo, com uma incidência duas vezes maior em bebês nascidos antes das 37 semanas de gestação.

No início, o choque, o medo e o desespero são sentimentos visíveis no rosto dos pais. Com o tempo, esses sentimentos se transformam, dando lugar à resiliência, à força, à fé e, acima de tudo, à esperança. É uma jornada difícil, mas cheia de aprendizado. Nesse percurso, uma mãe encontra apoio na outra, ambas caminhando pelos corredores do hospital, enfrentando o desafio de ter um filho na UTI. Essa união se torna poderosa, pois fortalece e cria laços que podem durar uma vida inteira.

O tempo que passam em contato constante com a equipe daquela unidade faz com que a criança se desenvolva desde o recém-nascido até o lactente. Quando finalmente estão prontos para ir para casa, a criança já conquistou muitos "titios" e "tias" – profissionais que cuidaram, brincaram, afagaram e até choraram com ela. E, por mais que seja uma vitória, essa despedida deixa um vazio, pois todos sentem essa partida de maneira especial.

O estudante de enfermagem que ali se encontra, muitas vezes ainda adolescente e imaturo nas experiências da vida, também sente. Ele sente o olhar ansioso dos pais durante a visita, o receio de tocar no próprio filho, a esperança de que tudo dará certo e, por vezes, a culpa que surge com ecos de histórias do passado. Muitas vezes, essa é sua primeira experiência com uma criança com malformações, e nem sempre é fácil lidar com isso. Ele também precisa de acolhimento (emocional, intelectual, informativo) para o amadurecimento profissional e de vida no qual está navegando.

Ao observar essa cena, me distancio e me vejo nesse cenário: uma professora, muito além de uma enfermeira, e pesquisadora dedicada ao estudo dessas "condições estranhas" que, para muitos, são apenas conceitos distantes. Quando me encontro cercada por profissionais, famílias e estudantes, preciso buscar o tom adequado para me conectar com cada um deles. Saio da perspectiva acadêmica e entro na perspectiva do relacionamento, na construção desse sistema no qual um recém-nascido com anomalia congênita me ensina um novo jeito de me conectar com as pessoas.

Lembro com clareza do ano passado, daquele bebê com a síndrome de Prune Belly (SPB), com prevalência estimada entre 1 em 35.000 a 1 em 50.000 nascimentos vivos. A cada novo grupo de estudantes que chegava à UTI pediátrica, todos se encantavam com aquela criança que, mês após mês, crescia e se transformava. Ali, naquele ambiente, ela encontrou seu verdadeiro lar. Sua mãe, presente em todas as visitas, jamais faltava. Aos 8 meses, a tão esperada alta chegou. A família preparou a casa, organizando um quarto adaptado para as necessidades da criança. Foi um mês de aproximação, de acolhimento, e, finalmente, ela teve a chance de conhecer um mundo além do hospital — o mundo do "meu lar", "minha casa", "meu quarto", "o aconchego com os meus".

A síndrome de Prune Belly é uma condição rara que afeta o desenvolvimento dos músculos abdominais, causando flacidez na barriga. Pode levar a problemas nos rins e no trato urinário, além de outras complicações, como dificuldades respiratórias. O tratamento varia conforme os sintomas e pode incluir cirurgias e acompanhamento médico.

Mas, apenas um mês após a alta dessa criança com a SPB, recebi uma mensagem de uma estudante que a acompanhou, muito entristecida. Ela me trouxe a notícia de que a criança faleceu. Esse é um tema com o qual frequentemente me deparo em minha prática com doenças raras e anomalias congênitas: a morte e o luto.

 

¨      Crianças com doenças raras: por que o papel do Enfermeiro é transformador na Saúde da Família?

A gestação de Angélik parecia tranquila até os cinco meses, quando uma ultrassonografia de emergência mudou tudo. Os resultados trouxeram preocupação: o crescimento estava abaixo do esperado para a idade gestacional, com baixo peso, pouco fluido cerebral e acúmulo ao redor do coração. A partir daquele momento, cada ultrassom tornou-se um misto de esperança e angústia, realizados ao menos duas vezes por semana para acompanhar a evolução.

Com o passar do tempo, alguns parâmetros começaram a se estabilizar, mas o desafio permanecia. Angélik continuava pequena, e nos últimos dias de gestação, sua movimentação intraútero cessou completamente. O parto normal foi tentado, mas ela não tinha força suficiente, levando à necessidade de uma cesariana.

Ao nascer, Angélik foi imediatamente acompanhada por uma equipe multidisciplinar, que inicialmente levantou a suspeita de toxoplasmose. Os meses seguintes trouxeram novos desafios: medicações intensas, vômitos frequentes e dificuldade em ganhar peso. Contudo, aos nove meses, outro diagnóstico mudou o rumo dos cuidados: a Síndrome de Silver-Russell (SSR).

A SSR trouxe consigo uma série de particularidades, como dificuldade persistente em ganhar peso, refluxo gastroesofágico, alergias alimentares e episódios de hipoglicemia. Cada desafio demandou estratégias específicas e muita resiliência da família e dos profissionais envolvidos.

A história de Angélik é um exemplo de como a saúde pediátrica exige um olhar atento e integrado, capaz de identificar e manejar condições raras desde os primeiros sinais. Mais do que um diagnóstico, é o cuidado especializado e o suporte às famílias que fazem a diferença no enfrentamento de condições complexas como a SSR.

Como profissionais de saúde, somos chamados a transformar desafios em oportunidades de cuidado e acolhimento. Essa história é um convite para refletirmos sobre nosso papel e sobre como podemos fazer a diferença na vida de tantas famílias que enfrentam a realidade das doenças raras.

O que é a SSR?

Síndrome de Silver-Russell (SSR) é uma condição genética rara que afeta o crescimento e o desenvolvimento. Crianças com SSR geralmente nascem menores e mais leves do que o esperado para sua idade gestacional. Algumas características comuns incluem:

·        Baixo peso e altura: mesmo após o nascimento, o crescimento pode ser mais lento que o normal.

·        Assimetria corporal: um lado do corpo pode ser menor que o outro.

·        Dificuldade em ganhar peso: pode haver refluxo gastroesofágico e problemas alimentares.

·        Características faciais específicas: como a testa mais proeminente.

·        Hipoglicemia (baixo nível de açúcar no sangue): pode ocorrer, especialmente nos primeiros anos de vida.

Essa síndrome pode ser causada por alterações em genes relacionados ao crescimento, mas o diagnóstico nem sempre é fácil e pode envolver testes genéticos, além da avaliação clínica.

Embora não tenha cura, o tratamento se concentra em manejar os sintomas e ajudar a criança a crescer e se desenvolver da melhor forma possível. Isso pode incluir acompanhamento nutricional, uso de hormônio do crescimento, suporte psicológico e o apoio de uma equipe multidisciplinar, incluindo enfermeiros, médicos e terapeutas.

<><> Dados relevantes sobre Doenças Raras

No Brasil, estima-se que mais de 13 milhões de pessoas vivam com doenças raras, sendo que cerca de 75% dos casos são diagnosticados ainda na infância. Apesar disso, o caminho para o diagnóstico é longo e desafiador, com um tempo médio de espera que varia de 4 a 7 anos. Esse atraso não é apenas angustiante para as famílias, mas também impacta diretamente as chances de um tratamento precoce, que pode melhorar significativamente a qualidade de vida.

Mesmo com números alarmantes, o papel do enfermeiro no cuidado às pessoas com doenças raras ainda é pouco conhecido e subestimado. Essa lacuna de compreensão prejudica o acesso a um atendimento integral, que inclui desde o diagnóstico precoce até o suporte contínuo às famílias.

O enfermeiro está no centro do cuidado. Ele não apenas auxilia no manejo clínico, mas também educa, acolhe e orienta famílias em momentos críticos. Sua atuação pode fazer a diferença entre a frustração de um diagnóstico tardio e a esperança que surge com um cuidado especializado.

Os dados mostram a urgência de fortalecer a visibilidade e o reconhecimento do papel dos enfermeiros na assistência às doenças raras. Garantir que profissionais da saúde estejam preparados para identificar sinais precoces e apoiar famílias não é apenas uma necessidade técnica, mas um compromisso com a equidade e o cuidado humanizado.

O papel único do Enfermeiro

O enfermeiro desempenha um papel que vai muito além do cuidado técnico. Ele é um profissional que conecta o conhecimento científico à prática humanizada, tornando-se um ponto de apoio essencial para as famílias e pacientes em suas jornadas de saúde.

·        Educação: informar para Empoderar

O enfermeiro é um educador por excelência. Ele orienta as famílias sobre a condição rara, explicando de forma acessível os cuidados necessários, as possíveis complicações e os sinais de alerta. Um exemplo concreto é quando, durante visitas domiciliares, o enfermeiro ensina a família a administrar medicamentos de maneira segura ou a identificar alterações no quadro clínico que exijam intervenção imediata.

·        Acesso: navegar pelo Sistema de Saúde

Muitas famílias enfrentam barreiras no acesso a serviços de saúde, seja por falta de informações ou pela complexidade do sistema. O enfermeiro atua como um guia, ajudando na identificação de recursos disponíveis, no encaminhamento para especialistas e até mesmo no apoio durante processos administrativos, como a busca por medicações de alto custo.

·        Apoio emocional

Receber o diagnóstico de uma doença rara é desafiador, e o enfermeiro está lá para oferecer mais do que suporte técnico; ele é um pilar emocional. Em momentos de crise, como uma internação inesperada ou a adaptação a novos tratamentos, o enfermeiro acolhe e oferece suporte psicológico, fortalecendo a resiliência da família.

Exemplos que fazem a diferença

1.    Acompanhamento domiciliar: o enfermeiro visita regularmente a família para avaliar o desenvolvimento do paciente, ajustar o plano de cuidado e garantir que todos os recursos necessários estejam sendo utilizados.

2.    Planos de cuidado individualizados: cada paciente com doença rara tem necessidades únicas. O enfermeiro elabora planos personalizados, considerando as especificidades da condição, o contexto familiar e os objetivos de longo prazo.

O papel do enfermeiro é único porque ele alia conhecimento técnico, empatia e criatividade para resolver problemas complexos. Sua atuação é essencial para transformar desafios em possibilidades, promovendo não apenas saúde, mas também esperança.

história de Angélik nos ensina que o cuidado com crianças raras vai muito além do tratamento médico. Ele envolve toda a família, que precisa ser apoiada, orientada e acolhida. Para a mãe de Angélik, compartilhar experiências com outra mãe que também enfrenta os desafios de uma condição genética na família é reconfortante. Há sentimentos, frustrações e conquistas que só quem vive essa jornada pode entender. Não há tecnologia, nem profissionais de saúde que assumam esse papel único de identidade e troca.

O aspecto psicológico também se torna um pilar essencial. Angélik está crescendo, percebendo suas diferenças e lidando com desafios como ser a menor da turma de sua escola ou precisar de injeções diárias de hormônio do crescimento. Para os pais, o futuro é uma mistura de incertezas e a vontade de preparar a filha para uma vida plena e significativa.

Mas o cuidado com doenças raras não se limita ao ambiente familiar ou hospitalar. Empresas e organizações também têm um papel crucial. Ao acolher pessoas com condições raras — sejam elas crianças ou adultos —, elas não apenas promovem inclusão, mas ajudam a construir um mundo mais empático e equitativo.

O cuidado com crianças raras vai além da saúde. É sobre garantir dignidade, esperança e uma vida plena para quem mais precisa.

Se você é enfermeiro, compartilhe nos comentários como tem feito a diferença na vida de seus pacientes. E, se não é, pense em como podemos apoiar e valorizar ainda mais esse papel tão singular no sistema de saúde e no cuidado das crianças com doenças raras.

 

Fonte: Por Geisa Luz, no Linkedin

 

Nenhum comentário: