Vinicius de Andrade: ‘Como o Enem
revolucionou o ensino superior no Brasil’
Estamos no período do
Enem, o maior vestibular do Brasil, e isso me fez pensar um pouco sobre todos
os aspectos envolvendo o exame.
Já havia escrito uma
coluna, há alguns meses, sobre ele e sinalizei que via com ressalvas seu
processo de expansão alinhado a um contexto em que todos os outros vestibulares
deixassem de existir. Isso já aconteceu em algumas instituições e sigo não
vendo com bons olhos. Afinal, não acho que o processo de ingresso no ensino
público brasileiro deva ser um monopólio de um só exame.
No entanto, para além
dessa ressalva, sou um grande admirador do Enem e acredito, humildemente, que a
prova, enquanto instrumento de democratização do acesso ao ensino superior,
deve ser um motivo de orgulho de todos nós. Seus impactos são notáveis e seus
resultados falam por si.
• A maior mobilidade já vista
Antes do Enem, se eu,
paulista, quisesse ingressar em uma universidade do Rio de Janeiro, do Norte ou
de qualquer outra região, teria que me submeter a uma relativa complexidade de
logística e também arcar com um custo que eu simplesmente não teria como assumir.
É fato que há
universidades públicas em todos os estados e isso pode ser um ponto de partida
para alguém defender a tese de que não há razão para incentivar a mobilidade,
ou seja, não tem por que um paulista cursar uma universidade na Bahia.
No entanto, não há os
exatos mesmos cursos em todas, e cada uma delas tem suas particularidades que
podem ser muito relevantes no processo de escolha. Aqui, de modo simplista,
podemos citar as diferenças nos enfoques do mesmo curso em diferentes instituições,
diferenças de bolsas e oportunidades entre as instituições, questões
geográficas, etc.
O melhor cenário é
aquele em que o agente tem acesso a todas as informações antes de tomar uma
decisão, mas também, sobretudo, a oportunidade de escolher e concretizar. Isso
foi proporcionado pelo Enem.
Ele revolucionou o
sistema de ingresso e temos na palma de nossas mãos o Brasil todo de opção.
Isso tudo da nossa própria casa e cidade. Foi estudante paulista cursando na
UFBA, aluno baiano cursando na UFRJ, gaúcho estudando na UFPA e amazonense
cursando na UFG.
• Diminui o elitismo nas universidades
públicas
Sou da época que para
ingressar na USP o único método era a Fuvest, um vestibular sabidamente
elitista. Não só na USP, e não fui o único a passar por isso. Praticamente
todos os vestibulares próprios das instituições assumiam uma personalidade mais
elitista e havia, em cada cidade, uma verdadeira indústria privada de cursinhos
que, basicamente, vendiam aprovações.
Na época, cursinhos
populares e sociais ainda não eram comuns. Claro que havia um ou outro, mas nem
perto da quantidade que existe hoje. Nesse contexto, para um jovem da rede
pública ser aprovado em uma grande universidade pública era praticamente obrigatório
investir em um cursinho privado. Mas nem todos tinham essa condição. Não
coincidentemente, dava para contar no dedo, em salas de aula de universidades
públicas de todo o país, quem era oriundo da rede básica pública de ensino. Em
cursos mais concorridos então, como Direito ou Medicina, chegava a ter apenas
um ou dois por turma.
Com o Enem, surgiu não
apenas mais uma opção de ingresso, o que já é bom o bastante, como também um
exame mais democrático e coeso com o que jovens da rede pública aprendiam em
suas escolas.
Com ele, pouco a
pouco, universidades públicas de todo o país tiveram suas composições de
discentes mudando bastante. Foi quase que uma ruptura de conjuntura. Assim,
pela primeira vez, os jovens da rede pública já não eram grandes exceções e
conseguiam olhar para o lado de ver seus semelhantes. Isso não é trivial.
• Exame democratizou o acesso ao ensino
superior brasileiro
O Brasil está longe de
ser o país que, verdadeiramente, mais se preocupa com a educação. Ainda temos
muito a caminhar e a pauta segue, mais vezes do que eu gostaria, sendo
instrumento de agenda nas mãos de políticas, de esquerda ou de direita.
Quem lê minhas colunas
sabe que, quase sempre, costumo focar em problemas e abordar o que está dando
errado, ou, por outro lado, o que precisa de atenção. Mas aqui é diferente. Não
que o Enem seja perfeito, mas ele precisa ser valorizado e reconhecido. É
inovador. É democrático e acessível.
Sou do time que quer
mudanças no Brasil e que sonha com uma nação menos desigual. Sei que há um
limite do quanto isso pode ocorrer sem haver representatividade nas
instituições, empresas e organizações.
Essa
representatividade não é possível sem que haja uma pluralidade no ensino
superior e o Enem proporcionou isso.
Com ele, um futuro
jornalista do Fantástico terá um olhar mais sensível para pautas que possam
ajudar pessoas de comunidades, porque esse jornalista foi de uma comunidade.
Com ele, um futuro médico do SUS saberá como atender alguém de uma periferia
que nem sabe se expressar, porque ele pode ter tido um tio, familiar ou amigo
que também não sabia se expressar. Com ele, um juiz terá um olhar mais sensível
e humano ao julgar um caso, pois sabe exatamente o quanto o contexto influencia
as ações de um indivíduo. Com ele, um governante irá propor políticas públicas
coesas com demandas reais, pois sabe o que é, por exemplo, ter a conta de água
ou a de luz cortadas.
• "O Enem pode destruir o psicológico
do aluno", diz professora de psicologia da UERJ
Crise de ansiedade,
burnout e insegurança. Esses são alguns dos sintomas que podem afetar a vida de
um estudante durante a preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Um período dedicado a longas horas de leitura, centenas de simulados e uma
planificação milimétrica das horas. E o tempo dedicado à saúde emocional?
Um levantamento da
Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), do SUS, apontou em 2024, pela primeira vez
na história, que a população jovem apresentou um índice superior de problemas
psíquicos em comparação à faixa adulta.
O relatório aponta que
a taxa de ansiedade entre adolescentes de 15 a 19 anos, principal faixa etária
dos candidatos ao Enem, é de aproximadamente 157 casos a cada 100 mil jovens.
Entre os adultos com mais de 20 anos, a taxa é de 112,5 por 100 mil.
O Exame Nacional do
Ensino Médio em 2024 acontece nos próximos dois fins de semana, no dia 3 e 10
de novembro, respectivamente. Neste ano, 4,3 milhões de pessoas estão inscritas
para aprova, segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep).
"É minha segunda
vez que estou prestando o Enem. Na primeira, eu já sabia todo conteúdo que ia
cair, mas na hora de fazer a prova me deu ‘branco' total e eu fiquei muito
nervosa. Hoje em dia, eu consigo perceber que tive uma crise de ansiedade e não
soube lidar”, disse à DW Júlia de Souza Guimaraes, vestibulanda moradora do Rio
de Janeiro.
Para entender melhor
sobre o tema, conversamos com Edna Lúcia Tinoco Ponciano, professora associada
do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e
especialista em desafios emocionais na adolescência.
LEIA A ENTREVISTA:
• Qual relação entre o Enem e a saúde
mental?
Edna Lúcia Tinoco
Ponciano: O período do Enem é um momento de estresse para o jovem, independente
do curso que a pessoa quer fazer, a pressão é gigante por um resultado
satisfatório. Foram anos da sua vida te levando para esse caminho, para aqueles
dias de prova. É nessa faixa etária que você precisa tomar decisões
importantes, como qual será sua profissão e como você vai se sustentar para o
resto da vida.
Concentrar tudo isso
em apenas um momento decisório só traz um tumulto emocional que a maior parte
dessa garotada ainda não está preparada para receber. Eu entendo o estresse e
por isso tento ajudar da melhor forma. O Enem pode destruir o psicológico do aluno.
• Como dar visibilidade aos problemas
mentais?
A palavra-chave é
conscientização. Precisamos divulgar os conhecimentos e mostrar que a saúde
mental é tão importante quanto a saúde física. E para isso, a gente precisa
implementar projetos tanto em espaços públicos como privados, nas escolas e
entre as famílias também. Já passou da hora de termos um acompanhamento
psicológico mais efetivo, principalmente para os jovens. Eles precisar entender
que cada um tem seu tempo de desenvolvimento, e que com calma tudo se acerta.
• Qual o primeiro passo para ter a saúde
mental em dia?
Aceitar a emoção é o
primeiro passo para controlar sua saúde mental. Eu não queria estar sentindo
isso, mas estou sentido. Bom, a partir da aceitação, o que podemos fazer para
solucionar esse problema? As pessoas, com o passar dos anos e a chegada do mundo
contemporâneo, estão com dificuldades em entender e administrar a suas
experiências emocionais. E isso te faz vítima daquele sentimento. Se você não
aceita, você não consegue tratar.
• Como tratar os problemas mentais?
Primeiro, você precisa
buscar um profissional experiente nesta área. Ele vai te ajudar a lidar com
suas frustações, ansiedades e outros problemas do cotidiano, para além do Enem.
Sobre os tratamentos, utilizamos muito a respiração como forma de trazer consciência
emocional para o paciente. Para enfrentar momentos de estresse, precisamos
aprender a respirar, meditar e ter pensamento positivo. Esse controle emocional
pode ser treinado.
• O que mudou depois da pandemia de
Covid-19?
Durante muitos anos, o
nosso lado mental ficou totalmente escanteado. Todo mundo só pensava na
produtividade e em como poderia mostrar seu valor. A eficiência era colocada no
pedestal e todas as outras qualidades ficavam em segundo plano.
Claro que é importante
ser eficiente em âmbito profissional, desde que esteja alinhado com uma vida
saudável e equilibrada. E foi despois da pandemia, com o isolamento social, que
voltamos a discutir muito a saúde mental. Foi nesse momento que as pessoas
perceberam que estavam sobrecarregadas, doentes e que precisavam de tratamento.
• Como lidar com futuras pressões?
O grande segredo da
vida é aprender a lidar com as situações intensas e estressantes que estão fora
do seu controle. Todo mundo passar por momentos desconfortáveis durante a
existência. Achar tranquilidade em meio aos problemas é um processo para a vida
toda. Nessa área, trabalhamos muito com a ideia de regulamentação emocional,
fundamental para ajudar nas tomadas de decisão. Para isso, você tem que se
conhecer por dentro e trabalhar o autocontrole diariamente.
Fonte: DW Brasil
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