Negacionismo na medicina virou o novo
normal
Imagine que você
esteja enfrentando uma doença grave e precise de acompanhamento médico. Ao
consultar a lista de médicos especializados no plano de saúde, encontra 10
profissionais aptos para ajudar. Como é uma situação delicada, você decide
passar por todos eles para escolher o que mais lhe inspire confiança.
Nove desses médicos
explicam o tratamento com base em evidências científicas recentes, enquanto
apenas um promete uma cura certeira, baseada em um protocolo próprio, que não é
mencionado pelos outros. Um protocolo que supostamente tem funcionado nos pacientes
que ele tratou.
Em um momento de tanta
vulnerabilidade, será que a segurança oferecida por esse único médico, mesmo
sem respaldo científico, poderia parecer tentadora? Ou será que prevaleceria a
escolha de um tratamento embasado na ciência?
Talvez em um momento
de vulnerabilidade, com um diagnóstico de uma doença grave, poucos iriam querer
contar com a incerteza da ciência; talvez, seria mais confortável abraçar um
discurso de certeza, que a prática não-científica oferece. Foi assim na pandemia
de Covid-19.
Embora muitos tenham
se esquecido desse período de crise sanitária e humanitária, mesmo que a
Covid-19 ainda permaneça em nosso meio, cabe lembrarmos deste horror que
vivemos e que vem sendo, aos poucos, normalizado em nossa sociedade de memória
curta.
Se a pandemia tivesse
sido apenas um caso de má gestão, restaria lamentar e não reeleger os
“políticos atrapalhados”. No entanto, o que presenciamos no Brasil foi uma
escolha consciente de uma política de Estado que desacreditava a ciência.
Uma política
negacionista que foi respaldada por alguns médicos, associações médicas e até
conselhos de classe profissional, que promoveram tratamentos ineficazes e uma
agenda antivacina com base em evidências anedóticas.
O auge da falta de
ética profissional deu-se com as denúncias envolvendo a Prevent Senior, que
teria testado a hidroxicloroquina em pacientes sem o devido consentimento. A
autonomia médica, bandeira do conselho de medicina, foi ocasião para todo tipo
de prática antiética.
Tivemos até médicos
nebulizando comprimidos de hidroxicloroquina (que são para uso oral) em
pacientes gravemente acometidos por Covid-19. Mesmo com essas condutas marcando
nosso passado recente, parece que nada mudou para aqueles que instituíram, aqui
no Brasil, um sistema de morte em plena pandemia.
A necropolítica da
pandemia parece ser normalizada com veículos de imprensa dando voz aos
negacionistas que, por ideologia política, seguem defendendo o uso de
hidroxicloroquina na Covid-19 e são contra a vacinação. Logo a vacinação,
ferramenta que comprovadamente salva vidas há décadas.
Recentemente, uma
coluna no Nexo Jornal defendeu a “redenção da cloroquina”, baseada em uma
análise dos resultados de um único artigo científico. O estudo citado traz
dados que mostram algum benefício do uso de hidroxicloroquina/cloroquina na
prevenção da Covid-19.
Porém, não há
benefício em tratar ou prevenir o agravamento da doença. Embora o estudo
contenha diversas limitações importantes, a análise do colunista parece colocar
esse artigo como definitivo para mudar um paradigma sobre a Covid-19.
Dentre as limitações,
vale destacar que houve uma perda significativa de participantes no seguimento
do estudo e, conforme os próprios autores escrevem no texto, “o tamanho final
da amostra foi substancialmente menor do que o pretendido, o que limita a confiança
nas estimativas do efeito preventivo”.
Outra limitação
importante que os autores destacam é a de que “o estudo foi realizado em muitos
locais com recursos limitados, onde a colheita de amostras de esfregaços
respiratórios e o diagnóstico por PCR eram difíceis, e por isso apenas uma
pequena proporção de casos pôde ser confirmada por PCR”. E o principal
resultado positivo do estudo é baseado na confirmação de infecção por PCR.
Há diversos outros
estudos que não encontraram benefício na utilização de
hidroxicloroquina/cloroquina na Covid-19, mas esse artigo publicado
recentemente tem sido usado por algumas pessoas para justificar as condutas
antiéticas na adoção de tratamentos incertos em pacientes gravemente acometidos
pela Covid-19. Tratamentos que continuam incertos, porque esse artigo não muda
absolutamente nada no consenso científico.
Os próprios autores
afirmam em suas conclusões as seguintes palavras, “apesar do tamanho deste
estudo e das evidências combinadas, ainda há uma incerteza substancial quanto
ao verdadeiro benefício profilático dessas 4-aminoquinolinas – cloroquina e
hidroxicloroquina – na Covid-19”.
O estudo não muda o
paradigma, mas a imprensa, ao se colocar como meio para a promoção de
interpretações enviesadas de estudos científicos, pode causar impacto na
opinião pública. O problema é que, quando a imprensa esquece o seu relevante
papel social e resolve dar voz a grupos negacionistas, ela ajuda a deslocar o
senso comum sobre o tema e a incutir o pensamento de que o negacionismo é um
debate legítimo e que é razoável alguns médicos adotarem condutas contrárias ao
consenso científico.
Nessa linha de
pensamento, seria incoerente manifestar indignação com aquela médica que
inventou a mentira de que câncer de mama não existe e, ao mesmo tempo, endossar
análises de grupos conhecidos por serem negacionistas e antivacina.
Afinal, o negacionismo
que promove a cloroquina e rejeita a vacina contra a Covid-19 é o mesmo que
sustenta outras falsas promessas. É exatamente o mesmo da médica que, desejando
vender um protocolo de tratamento hormonal, mente que câncer de mama não existe.
Por que estamos
tolerando mais o negacionismo da Covid-19 do que outros negacionismos? E
voltando à situação hipotética do início desta coluna: se até a mídia está
abraçando discursos que vão contra o consenso científico, por que uma pessoa
doente, que está em uma situação de vulnerabilidade, não optaria pelo médico
com uma solução simples para um problema complexo?
Fonte: Por Leticia
Sarturi, em The Intercept
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