Brasil perdeu espaço na África e Lula não
conseguiu retomar política para o continente, diz analista
Ao invés de formular a
política estratégica para o continente, Itamaraty segue regulando o número de
diplomatas colocados em embaixadas na África. Analistas relatam à Sputnik
Brasil como o impacto da Operação Lava Jato e desconhecimento deixaram o Brasil
atrás de Rússia, China e Turquia no continente africano.
Política brasileira
para a África deixa a desejar com ausência de vertentes claras e reduções de
pessoal do Itamaraty locado nas embaixadas, avaliaram especialistas ouvidos
pela Sputnik Brasil. A falta de engajamento brasileiro contrasta não só com as
promessas do governo Lula 3, mas também com a atividade intensa de outras
potências no continente africano.
Alegando a necessidade
de colocar mais diplomatas em Brasília para atender às demandas da presidência
brasileira do G20, o Itamaraty esvaziou embaixadas já mal equipadas na África,
no primeiro semestre de 2024. A redução deve ser mantida em 2025, quando o
Brasil sediará a COP30 e a assumirá a liderança do BRICS, relatou a Folha de
São Paulo.
As relações
brasileiras com o continente tampouco se favorecem do recente escândalo gerado
pela abordagem policial violenta de filhos de diplomatas africanos no Rio de
Janeiro, no início de julho. O Ministério das Relações Exteriores teve que
pedir satisfações às autoridades fluminenses e pedir desculpas formais aos
embaixadores de Burkina Faso e Gabão, recebidos no Palácio do Itamaraty pelo
chefe do Cerimonial do Itamaraty, embaixador Mauro Furlan.
O ministro das
Relações Exteriores de Lula, Mauro Vieira, pareceu tentar aplacar as críticas
ao realizar visita oficial ao Togo, em meados de julho passado. Na ocasião, as
autoridades togolesas comemoraram a primeira visita de um chanceler brasileiro
em 50 anos. Vieira seguiu viagem para a Cúpula de Ministros da Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa (CPLP) em São Tomé e Príncipe, reiterando o apoio
do país à organização que seu chefe Lula ajudou a refundar.
O engajamento de Mauro
Vieira pode ser insuficiente diante da deterioração da presença brasileira na
África na última década. Para o pesquisador sênior em Governança e Diplomacia
Africana no Instituto Sul Africano de Assuntos Internacionais (SAIIA) Gustavo
de Carvalho, "a África é, coletivamente, secundária ou mesmo terciária
para o Brasil".
"Não acredito que
o Brasil tenha uma política africana no momento. Desde o início do novo governo
Lula, vemos que a volta da retórica sobre a África não se consolidou
materialmente", disse Carvalho à Sputnik Brasil. "A retórica
brasileira é sempre muito sofisticada, mas o discurso por si só não avança uma
política."
O analista aponta para
o número reduzido de diplomatas locados em embaixadas ao redor do continente,
inclusive em países com comunidade brasileira significativa, como Angola. Dados
publicados nesta segunda-feira (29) pelo MRE apontam para 39.600 brasileiros na
África, sendo 25 mil destes residentes em Angola, seguida por África do Sul,
com 3.600 expatriados e Moçambique, com 3.250.
"A embaixada de
Angola está com capacidade extremamente reduzida, principalmente se
considerarmos a sua importância histórica para o Brasil", disse Carvalho.
"Mas o número absoluto de diplomatas trabalhando em uma embaixada me
preocupa menos do que a ausência de um papel estratégico para elas."
De acordo com a
revista IstoÉ, a Embaixada do Brasil na capital angolana Luanda conta
atualmente com quatro diplomatas, enquanto a embaixada da China conta com 25, a
russa com 14 e a dos EUA com nove funcionários.
"Mesmo que o
governo tivesse empenhado, o espaço que o Brasil tem hoje para atuar na África
é menor do que aquele que tínhamos nos primeiros mandatos de Lula",
considerou Carvalho. "Naquela época, o Brasil estava em posição similar à
da China em vários aspectos, inclusive na inserção comercial. Atualmente, a
China é muito mais atuante, e o Brasil não se encontra nem entre os principais
dez parceiros comerciais da África."
De acordo com o
Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio, a corrente comercial
Brasil-África recuou de 7% em 2007 para somente 3,5% em 2023. O comércio
brasileiro com o continente africano atualmente é de cerca de R$ 13,2 bilhões,
o que, apesar de não ser uma cifra irrelevante, fica bastante aquém do
potencial, acredita Carvalho.
"Infelizmente, as
empresas brasileiras já não mostram o interesse em expandir suas atividades
para a África da mesma maneira que víamos durante os primeiros governos de
Lula, com destaque para as construtoras", lamentou Carvalho.
"Realmente, a retirada das construtoras quebrou um grande pilar da
política externa brasileira para a África."
• Saída a jato de empresas brasileiras
O advogado
sul-africano e consultor de direito internacional da Organização dos Advogados
do Brasil (OAB) Emile Myburgh, que participou diretamente da
internacionalização de empresas no continente africano durante os primeiros
governos Lula, relatou a ascensão e queda do capital brasileiro na África.
"Na época, nosso
escritório de advocacia recebeu na África do Sul empresas como a Marcopolo
[setor automotivo], Odebrecht, Camargo Corrêa [setor de engenharia], JBS [setor
frigorífico] e inúmeras outras de menor porte", disse Myburgh à Sputnik Brasil.
"Esse movimento se deu em grande parte por iniciativa do presidente Lula,
que incentivava o capital brasileiro a se internacionalizar e investir na
África."
O advogado relata os
efeitos adversos da Operação Lava Jato sobre a presença brasileira na África do
Sul, que atualmente "se reduz a algumas poucas empresas de pequeno
porte", disse o advogado.
"A Camargo Corrêa
fechou as portas, a Odebrecht teve que suspender as atividades por um bom tempo
e o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] fechou sua
filial em Joanesburgo", lamentou o sul-africano. "A realidade é que
eu fechei a maioria das empresas brasileiras que abri aqui."
O advogado rejeita a
narrativa difundida no Brasil de que a política de Lula para a África
consistia, basicamente, "no envio de dinheiro brasileiro para ditadores
africanos". "Posso dizer em primeira mão que eu vi os contratos, e
nenhum centavo saía do Brasil. Quem assumia os riscos eram os bancos locais, e
os recursos investidos pelo Brasil eram revertidos para os produtores
brasileiros", relatou.
"A Operação Lava
Jato teve um impacto desnecessariamente negativo [para a política brasileira na
África]. Ela levou a uma redução lamentável no volume de negócios",
declarou Myburgh. "Na minha opinião, vai levar décadas para o Brasil recuperar
o prestígio econômico que tinha, não apenas na África, mas no mundo."
Além da fragilidade
doméstica do atual governo, que não garante a Lula o mesmo poder de convencer o
capital nacional a voltar para a África, a falta de conhecimento mútuo continua
sendo um obstáculo para relações mais próximas.
"Eu vejo que as
percepções equivocadas dos brasileiros sobre a África e vice-versa continuam as
mesmas. Atuo nesse ramo há 25 anos, e ouço hoje a mesma ignorância que ouvia há
25 anos atrás", disse Myburgh.
Segundo ele, enquanto
"na África as pessoas acham que um homem de negócios brasileiro só estará
interessado em tráfico de entorpecentes", no Brasil acham que africanos só
se engajam no contrabando de pedras preciosas.
África no centro da
competição global
Essa falta de
conhecimento mútuo não ajuda o Brasil a competir pela influência no continente
africano, que atualmente é considerado área de expansão prioritária por grandes
e médias potências, como Rússia, China e Turquia.
"A África sabe
que está no centro de uma competição geopolítica global e, por isso, tem
demandas muito mais complexas", explicou o pesquisador do SAIIA Carvalho.
"Não é só chegar aqui como uma agência de cooperação, ou com algum
dinheiro. Os africanos têm a expectativa de construir parcerias muito mais
profundas."
O analista nota uma
certa "decepção" das partes africanas em relação ao Brasil, que teria
prometido muito no passado, mas entregado pouco. Apesar disso, há "um
sentimento claro de simpatia" por partes das lideranças africanas, o que garante
"condições para crescer", caso Brasília tenha real interesse.
"O Brasil não é
parte do pensamento geoestratégico africano no momento. Por isso, cabe ao
Brasil se perguntar se, de fato, tem interesse em realizar parcerias no
continente. Com a presença de muitos atores internacionais, o Brasil deve
calcular se dispõe dos recursos necessários para competir na África",
concluiu o especialista.
• África: investimento em turismo
contribui para dissipar estereótipos colonialistas, dizem analistas
Em entrevista ao
podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas destacam que mais de dois
séculos de colonialismo criaram uma percepção negativa em torno do continente
africano que pode ser desconstruída por meio do turismo. Porém, ainda há
desafios, como o investimento em infraestrutura para o setor.
Países africanos estão
reposicionando a imagem do continente perante o mundo. Além do movimento que
expulsou resquícios colonialistas europeus de vários países, como a expulsão de
tropas francesas do Níger, de Mali e de Burkina Faso, bem como o fim do uso do
idioma francês nas escolas, muitos deles miram o turismo como forma de mudar a
percepção do mundo em torno do continente — geralmente ofuscada pelo
estereótipo dos safáris.
Em entrevista ao
podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas analisam a expansão da
indústria do turismo na África e quais os principais atrativos de países
africanos para quem deseja conhecer o continente.
Doutora em literaturas
africanas e professora do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Aza Njeri afirma que nos últimos dois
séculos o Ocidente construiu uma imagem negativa da África como um continente pauperizado
e vilanizado. Porém, ela afirma que o fomento ao turismo, calcado na
interculturalidade, veio alimentado pela tomada de discussões de cunho
étnico-racial, lideradas por afrodescendentes principalmente no continente
americano, em países como Brasil, Estados Unidos e também Caribe.
"Há um fomento de
interesse de interculturalidade, laços, trocas de saberes com o continente que
é mais recente. Ele já vem nessa toada do anticolonial, mas mais contemporâneo.
Eu acho que já tem uma roupagem do século XXI", explica Njeri.
Há décadas, a África
do Sul é um dos destinos mais caros e valorizados do continente africano.
Segundo Njeri, isso ocorre por dois fatores: primeiro porque há voos diretos
para a África do Sul, o que não ocorre com a maioria dos demais países
africanos; segundo por conta da infraestrutura voltada para o turismo.
"No caso da
África do Sul em específico, é um país em relação aos demais mais atraente
porque já tem um mercado cambial estabelecido, tem uma rede de hotéis
interessante, tem cursos de inglês, por exemplo, […] para fazer intercâmbio,
coisa que a gente encontra com dificuldade em outros países de língua inglesa
no continente africano. Essas modalidades e essas possibilidades de cursos,
lazer e também financeiras fazem com que a África do Sul fique mais prática
para uma visita."
Para além disso, a
especialista acrescenta que a África do Sul oferece tudo o que um turista médio
gostaria de fazer no continente africano.
"Desde as savanas
até as noites muito interessantes, as baladas, a vida noturna, os restaurantes,
os hotéis e, é claro, a paisagem, que é extremamente paradisíaca."
Ela adverte que alguns
países ainda enfrentam gargalos para impulsionar o turismo por conta da falta
de segurança gerada por conflitos internos, como é o caso do Sudão do Sul e do
Congo. Outros carecem ainda de investimentos no setor turístico. Porém, há
países como Cabo Verde, que tem nove ilhas, e é tomado por resorts.
"Elas [as ilhas]
são bem dessa paisagem paradisíaca. Lembra muito o Caribe em relação às águas
cristalinas, e é muito interessante como Cabo Verde hoje é um país tomado por
resorts."
Porém, Njeri afirma
que essa infraestrutura reflete o que ela chama de "desenvolvimento
criticável", uma vez que são empreendimentos imobiliários que atendem a
públicos europeus e estadunidenses, brancos e ricos.
"Há também essa
crítica porque é um turismo por base predatória. Não tem ali uma preocupação
com o meio ambiente necessária. Extrai os recursos, mas não há políticas
nacionais de equilíbrio, reparação e restauração do meio ambiente."
Carolina Morais,
historiadora e cofundadora da The African Pride, por sua vez, afirma que há
países do continente africano que conseguem "se projetar para o mundo da
maneira e das possibilidades que o continente africano apresenta", e um
dos países que fazem isso muito bem é a África do Sul.
"A África do Sul,
de fato, consegue se apresentar para o mundo, se vender, se posicionar e, se
você abrir os dados, é o país que tem recebido a maior parte dos visitantes do
mundo inteiro hoje no continente africano. Mas isso não é uma prática do continente
como um todo. O Egito também recebe muitos turistas, muito relacionados ali
pela história, pelas pirâmides, enfim, por tudo isso, mas o continente como um
todo precisa aprender a se vender. Existe uma imagem de África que a gente
precisa reconstruir", afirma.
Questionada sobre o
relatório da plataforma With Africa, que apontou que dentre os 54 países do
continente, somente Cabo Verde, África do Sul, Marrocos, Tunísia, Tanzânia e
Ilhas Maurício apresentam informação sobre dados do setor de turismo
disponíveis e atualizados, Morais afirma que existe "um movimento até
mesmo de investimento na infraestrutura que a maior parte dos países africanos
ainda precisa realizar".
"Por exemplo, um
país como Angola, que não está nessa listagem, que é um país que tem um
potencial turístico gigantesco também, é um país que tem conexão já de voos
diretos saindo de São Paulo em direção a Luanda, mas que ainda não apresenta
uma estrutura clara para esse turista que está chegando pela primeira
vez."
Ela acrescenta ainda
que muitos países, principalmente da África Subsaariana, sofrem do mesmo
problema apontado por Carlos Bumba, presidente da Associação de Guias de
Turismo de Angola, que apontou ser utopia falar em potencial turístico de
Angola enquanto não tiver garantia de água potável, rede elétrica, Internet e
obtenção de divisas que permitam transações cambiais.
"A gente pode
observar esses mesmos desafios de Angola em relação a Camarões, ao Congo, à
Namíbia, ao Zimbábue. Descendo ali mais um pouco, a gente encontra esse mesmo
desafio em Moçambique. São países que compartilham essa falta de infraestrutura
e que fica difícil de você falar realmente de uma ampliação da rede de turismo
se não tem a infraestrutura básica", afirma a historiadora.
Fonte: Sputnik Brasil
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