Estado
refém do financismo: Como superar o “bonde do mal”?
Muitos
observadores, ao analisar os traços estruturais da nossa economia, já chamaram
a atenção para aquilo que qualificaram como o arranjo fazendão, um modelo
econômico que acompanha nossa história desde que o pau-brasil, produto que
primeiro alimentou a empresa colonial, passou por cima das tradicionais
homenagens religiosas e batizou as nossas terras.
Pindorama
foi massacrada e herdamos o nome derivado da primeira exploração extrativista:
Brasil. Nome de um empreendimento exitoso, pois atingiu os seus objetivos ao
implantar e exercer a exploração que verificamos ao longo da nossa história.
Como define o historiador Luiz Antonio Simas, “um projeto colonial, fundado na
ideia de exploração da terra, na exploração dos corpos, no genocídio do
indígena, na escravização do negro”.
Submetida
ao colonialismo, nossa história foi marcada pelo assassinato em massa dos povos
originários e pelos quase quatro séculos de vergonhosa e cruel utilização do
trabalho escravo. Desde o início da captura do território pela empresa colonial
portuguesa nossa trajetória esteve submetida a um arranjo econômico predatório,
extrativista, parasitário, exportador e concentrador de renda. Uma maquinação
perversa, que sempre se impôs pela extrema violência e pela promoção da
intolerância, da ignorância, da mentira e do preconceito. Traços que herdamos e
que nos constitui como um dos países mais desiguais do mundo. Uma mancha que
conforma parte expressiva da nossa cultura e da nossa formação social.
É
fato que a configuração das estruturas fundiárias e urbanas, as relações
sociais, o arcabouço institucional e as interações com o ambiente são marcas de
uma sociedade extremamente desigual. Uma sociedade sob o domínio de uma elite
econômica sem projeto para além da exaustão dos recursos disponíveis, incluindo
aí as pessoas reduzidas à categoria de peças de uma grande engrenagem que moe
vidas, paisagens, sonhos e afetos.
A
brutalidade está profundamente enraizada na nossa formação social. Somos forte
e constantemente atravessados por injustiças históricas de longa permanência.
Vivemos em um país onde envelhecer é um privilégio fortemente ancorado na
posição de classe. Somos testemunhas e vítimas de uma guerra não declarada
contra negros, pobres e indígenas. O machismo, o feminicídio, a intolerância, a
hipocrisia e a violência são linhas de força presentes nas relações cotidianas.
A exclusão da maioria de nossa população dos marcos da cidadania e do acesso a
condições que permitam a fruição de uma vida saudável é incontestável. Nesse
país, como dizia Darcy Ribeiro, a ignorância não é resultado do acaso, mas de
um projeto. Uma condição que facilita a disseminação de mentiras para melhor
exercer o domínio sobre a população.
A
catástrofe que atingiu o Rio Grande do Sul, os rompimentos criminosos de
barragens em Mariana e Brumadinho, as queimadas no pantanal e na Amazônia e o
fato de, segundo levantamento do governo federal, pelo menos 1.942 municípios
do Brasil estarem localizados em áreas de risco recorrente, revelam a
existência hegemônica de uma conjugação política e econômica bastante
destrutiva e distante dos interesses nacionais e do bem-estar do povo
brasileiro.
Um
esquema de exploração que se sofisticou e passou a atuar em outra forma de
extrativismo predatório: o rentismo praticado pelo setor financeiro. Um dreno
dos recursos públicos que poderiam ser aplicados em áreas de grande relevância
social como saúde e educação ou em atividades produtivas como industrialização
ou investimentos em infraestrutura.
Em
torno da retórica utilizada para justificar a redução do déficit público, foi
montada toda uma estratégia para solapar as possibilidades de construção de um
Estado que sirva para algo além de balcão de negócios para segmentos econômicos
privilegiados. Uma estrutura capaz de estimular a dinâmica econômica e, ao
mesmo tempo, frear a voracidade suicida e totalitária do mercado. Além dos
argumentos de caráter ético e humanitário, é preciso considerar que nas
economias mais ricas do mundo é comum o uso do endividamento do Estado para
aquecer o mercado interno e financiar o desenvolvimento. Um investimento que
volta aos cofres públicos pela via do crescimento da receita decorrente dos
aportes na estrutura produtiva realizados com os recursos do endividamento.
Caímos
em uma armadilha que congrega a imposição arbitrária e desnecessária de um teto
de gasto com uma das maiores taxas de juros do mundo. A isso se soma uma
estrutura tributária regressiva que onera a produção e o consumo, deixando de
fora grandes fortunas, dividendos e segmentos como o agronegócio. Complementa o
quadro a ação deletéria do Congresso Nacional, com suas pautas bombas e
excrecências nada republicanas como orçamento secreto e um volume
estratosférico de recursos para emendas impositivas a serviço de interesses de
uma oligarquia que parasita os cofres públicos.
Entretanto,
nossas mazelas não param por aí. Avanços tímidos são seguidos de retrocessos
pesados. Isto porque, além de venais, nossas elites econômicas e parte da nossa
classe média são notoriamente golpistas. Defensores de um conservadorismo
cruel, corrupto e hipócrita que molda a nossa história e o caráter daqueles que
tramam contra a democracia. Gente que idolatra o bandeirante Borba Gato e
detesta as Marielles que insistem em brotar combativas e alegres do chão da
miséria. Uma canalhice apoiada no pretenso combate à corrupção, na utilização
da religião, na defesa da família e em um patriotismo vazio e patético. Um
conluio que reúne a Faria Lima, corporações internacionais, a grande mídia,
oportunistas, charlatães, inocentes úteis e pessoas com distúrbios afetivos.
Não
obstante a vitória das forças democráticas sobre a barbárie bolsonarista e a
fracassada tentativa de golpe do 8 de janeiro, os ovos da serpente vêm sendo
chocados e as portas do inferno, entreabertas pelo neoliberalismo e pela
extrema direita, ainda não se fecharam. Pelo contrário, podem ser
repentinamente escancaradas como quase ocorreu recentemente com a Bolívia,
legitima e legalmente presidida por Luís Arce.
Diante
desse quadro, analistas como Bruno Paes Manso apontam para uma associação
espúria e altamente perigosa que ameaça seriamente a nossa pouco enraizada e
frágil democracia. Paes Manso se refere ao conluio envolvendo armas, dinheiro,
religião e política para controlar territórios e coagir tentativas de
organização de movimentos sociais e a circulação do ideário de esquerda,
considerado o inimigo a ser combatido.
De
fato, a intensificação da exploração e a necessidade de combater a insatisfação
e a revolta daí derivada, acabaram por gerar arranjos criminosos. Uma
contaminação corrupta envolvendo militares, milicianos, traficantes e
exploradores da fé. Uma associação que alcançou representação política de vulto
e domínio de parcelas relevantes dos poderes constituídos. Uma autoridade que
se exerce sobre os territórios de parte significativa das cidades brasileiras e
de áreas de exploração ilegal do garimpo e de extração clandestina de madeiras
para citarmos as mais evidentes aos olhos da opinião pública. Um negócio
bilionário que veta o exercício legítimo da cidadania e da democracia nas
periferias e favelas das cidades brasileiras.
Concomitantemente,
as ideias de meritocracia e empreendedorismo são instrumentalizadas para
desviar o olhar das formas de exploração. Uma manobra que busca, em última
análise, individualizar e responsabilizar os oprimidos pela situação de
opressão que conforma as suas vidas. Concepções utilizadas para esconder as
barreiras estruturais que mantêm as classes populares distantes dos benefícios
gerados pela riqueza socialmente produzida.
Temerosa,
parte da sociedade aderiu ao ideário rasteiro da repressão que se pratica há
séculos e hoje se vê ameaçada e impotente. Desorientada passou, mais uma vez, a
agir contra si e contra a democracia, reivindicando a volta da ditadura militar
ou apoiando as ações das milícias. Um verdadeiro tiro no pé.
Ao
contrário de enxugar gelo é preciso pensar e agir seriamente para melhorar as
condições objetivas de vida da população. É sabido que a adoção de medidas como
acesso a moradia, renda mínima, saúde e educação podem fazer a diferença e
produzir impactos positivos com maior rapidez e efetividade do que discursos
coléricos e eleitoreiros que batem na mesma tecla para satisfazer impulsos nada
civilizados: pena de morte, redução da idade penal ou criminalização do consumo
de drogas. Bandeiras que deixam entrever a crueldade estupida de uma sociedade
doente vítima da ignorância. Medidas muitas vezes apresentadas como soluções
inovadoras e eficazes que, no entanto, já são aplicadas sem o consentimento da
lei, se mostrando inócuas para alcançar o objetivo alardeado. O resultado é a
banalização da morte e da violência. O terror que dispara 80 tiros contra um
carro que levava uma família para passear ou que, nos bairros populares, mata
crianças em suas casas ou a caminho da escola.
Evidentemente
é preciso garantir a segurança de todos, mas não é isso que está sendo feito.
Na verdade, estamos alimentando um monstro que cotidianamente nos constrange e
nos devora aos poucos. Uma besta que deixada em liberdade irá instalar
definitivamente o império do crime organizado.
A
conquista do país desejado não pode ficar refém do medo. A continuar nessa
trajetória seremos todos prisioneiros e vítimas da arbitrariedade. Palmares
ficou de pé por um século ou mais diante de um império que dava as cartas no
mundo. Vale lembrar que após 21 anos de ditadura, o Brasil conquistou o direito
constitucional à saúde, criando uma das maiores políticas de inclusão que se
tem notícia: o maior sistema público de saúde do mundo. Diante de um governo
genocida a pandemia de covid-19 mostrou a força da solidariedade de um povo que
não se abandona. A eleição de Lula provou que, apesar de toda a grana e
recursos colocados a serviço do embuste, a mobilização popular é capaz de
derrotar inimigos poderosos e deter o avanço da barbárie.
Sabemos
que a luta muda a vida. É preciso sustentar o céu como fazem os Yanomamis. É
possível deter o bonde do mal. É possível conquistar uma cidadania e uma
democracia de fato. É possível redistribuir renda e fortalecer o mercado
interno. É possível e desejável implementar uma economia sustentável, solidária
e soberana. Uma economia subordinada ao bem-estar da população e compromissada
com o futuro. Uma economia que escape da armadilha da austeridade e da
concentração e assim, quem sabe, nos permita resgatar Pindorama e refundá-la em
outras bases, como sugerem alguns.
¨ Mudanças no aparato institucional. Por Flávio Tavares de Lyra
A
perda de dinamismo da economia brasileira e o processo de desindustrialização a
ela associado, datam do início dos anos 90 do século XX, no governo de Fernando
Collor. Foi nessa época, após a “década perdida” (1980-90), que se instalou
definitivamente o pensamento neoliberal, com sua concepção de que caberia
entregar às forças do mercado as decisões determinantes da futura expansão
econômica do país. Desde então, coube limitar de forma crescente o papel do
Estado como condutor do processo de desenvolvimento e regulador das forças do
mercado.
Não
obstante, o fato de a Constituição de 1988, ter sido elaborada numa concepção
que atribuía ao Estado e as suas instituições o papel condutor do processo de
desenvolvimento econômico, sucessivamente foram introduzidas mudanças nas
instituições econômicas para adequá-las à visão de mundo neoliberal, na qual o
Estado tinha um papel meramente coadjuvante das forças do mercado. Ou seja, os
rumos do processo de desenvolvimento passaram a ser dados pelas decisões do
setor privado.
Dentro
da concepção neoliberal é que o país realizou a privatização dos complexos
petroquímico, siderúrgico, não-ferrosos e, mais recentemente, da Eletrobrás. A
abertura do comércio exterior e do mercado de capitais foram os causadores
diretos da crise cambial de 1999, que jogou o país nos braços do Fundo
Monetário Internacional, do Banco Mundial, da Organização Mundial da
Propriedade Intelectual e da OMC, agentes internacionais do “Consenso de
Washington”.
O
relativo bom desempenho econômico que o país alcançou nos governos de Lula
(2003-6 e 2007-10) e no primeiro governo de Dilma Rousseff (2011-2014), sob as
instituições neoliberais, produziram a grande ilusão de que era possível
retomar o dinamismo econômico da era desenvolvimentista dentro da concepção de
política econômica neoliberal.
Na
realidade, foi o “boom” das exportações internacionais, graças à demanda gerada
pela expansão da China, fenômeno especial e transitório que determinou em boa
medida a conjuntura favorável que tomou forma. Uma vez atenuado dito impacto
positivo, ficou evidentemente que era inviável gerar dinamismo econômico e
realizar avanços no social, sob a institucionalidade neoliberal e o predomínio
das forças do mercado.
O
bem-sucedido combate à hiperinflação sob a ação do Plano Real (1994) deixou
como herança as mudanças institucionais que tornaram a busca da austeridade
fiscal e a política monetária restritiva do Banco Central dominantes no cenário
econômico, fragilizando, a partir daí, a ação do Estado como instrumento
condutor da política de investimento do país.
O
fracasso do segundo governo de Dilma Rousseff para retomar o processo de
desenvolvimento com o aparato institucional neoliberal, abriu espaço para mais
um avanço das instituições neoliberais na condução da vida econômica do país,
com as políticas concebidas sob o guarda-chuva de “A ponte para o futuro” do
governo de Michel Temer (2016-17) e o desastrado governo de Jair Bolsonaro
(2018-21), que mergulharam o país na estagnação econômica e numa crise social
sem precedentes.
A
volta de Lula à presidência em 2022, fez ressurgirem as esperanças de uma
retomada do processo de desenvolvimento dentro de uma concepção orientada para
transformações estruturais na economia que conduzam à aceleração do crescimento
com a reindustrialização, à transição para uma economia que avance na melhoria
da distribuição da renda e que proteja o meio ambiente, aproveitando amplo e
diversificado potencial existente para melhorar a competitividade internacional
da produção.
Em
seus dois anos iniciais de governança, a nova administração tem buscado romper
os grilhões institucionais que a impedem de governar com vistas às mudanças de
longo-prazo que a reindustrialização requer.
Nesse
sentido o governo lançou a “Nova Indústria do Brasil”, uma proposta de política
industrial ambiciosa voltada para reindustrialização do país numa concepção que
a enfatiza a promoção da inovação tecnológica, o adensamento das cadeias
produtivas, o aproveitamento do potencial energético para geração de energias
“limpas” e a sustentabilidade ambiental. Tudo isto, visando dinamizar a
atividade econômica e a capacidade competitiva do país no cenário
internacional.
As
instituições vigentes, porém, não foram concebidas para promover mudanças
estruturais na economia e se movem dentro de uma visão neoliberal que descarta
o papel fundamental do Estado na condução do processo de desenvolvimento.
A
questão central do financiamento do processo econômico não poderá ser resolvida
sem uma reforma do sistema fiscal de modo a dotar o Estado de recursos para
financiar os gastos sociais e de investimento.
O
arcabouço fiscal recém-aprovado não resolve o problema pois se trata apenas de
mais um instrumento de contenção do gasto fiscal de corte neoliberal, do que de
uma ferramenta de um estado promotor do desenvolvimento.
O
instrumento da dívida pública, na arquitetura atual, não pode ser utilizado
para fortalecer a capacidade de financiamento do Estado. Muito embora o índice
de endividamento público, seja muito inferior ao observado nas economias
desenvolvidas.
O
Banco Central, transformou-se quase que exclusivamente num instrumento de
combate à inflação e de favorecimento da acumulação de capital fictício em
detrimento da acumulação produtiva. Há fortes indícios de que as agências
reguladoras atuantes na infraestrutura e o Banco Central estão capturados pelo
setor privado e não respondem adequadamente aos propósitos do novo governo.
O
Estado não dispõe de mecanismos de planejamento adequados para orientar as
decisões de investimento de longo-prazo. O Ministério do Planejamento
transformou-se numa agência de elaboração e controle do orçamento anual e uma
ferramenta exclusiva das políticas de austeridade.
O
Estado acha-se praticamente proibido de investir em atividades básicas para o
desenvolvimento do país. As parcerias público-privadas, consideradas uma saída
para expandir o investimento produtivo, não passam de um disfarce para que
recursos públicos sejam direcionados para fortalecer a expansão e a
lucratividade de capitais privados.
Ficaram
evidentes recentemente as dificuldades enfrentadas pelo governo para orientar a
principal empresa estatal do país, a Petrobras, para aplicar maior percentual
de seus lucros em investimento produtivo. O mercado de capitais dá preferência
à distribuição de dividendos aos acionistas, numa visão de curto-prazo e
desligada do papel da empresa no desenvolvimento energético do país.
Em
resumo, o aparato institucional atual foi concebido e é funcional à valorização
do capital financeiro. Sem alterações profundas em sua constituição,
dificilmente o país terá condições de avançar na direção de um sistema
produtivo mais dinâmico, mais respeitador do meio ambiente e mais comprometido
com o desenvolvimento social.
Fonte:
Por Carlos Fidelis Ponte, em Outras Palavras/A Terra é Redonda
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