Venda de sangue: os danos no Reino Unido e
no Brasil
As recentemente
divulgadas conclusões de um inquérito do poder público do Reino Unido revelam
detalhes de um caso grave: durante as décadas de 1970 e 1980, 33 mil cidadãos
britânicos foram infectados com HIV ou Hepatite C em transfusões de sangue.
Cerca de 5 mil morreram. Os hemoderivados que continham os vírus, descobriu a
investigação que gerou o documento, eram importados dos Estados Unidos – e
comprados de bancos de sangue comerciais, que não testavam a “mercadoria” para
possíveis contaminações.
O relatório gerou um
escândalo político. O impopular governo conservador do primeiro-ministro Rishi
Sunak rapidamente ofereceu indenizações para milhares dessas pessoas afetadas
pela “negligência” do Estado. Mas as famílias das vítimas não estão satisfeitas
– e prometem processar o Estado para exigir mais reparações, que podem chegar a
“bilhões de libras”, apura a BBC.
Quando os
hemoderivados podiam ser comercializados no país, o Brasil registrou casos
similares. É célebre a história dos irmãos Betinho, Henfil e Chico Mário, que
contraíram o HIV dessa forma – Betinho, o único dos três não falecer ainda nos
anos 1980, fundou a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) em
parte para exigir uma resposta a esse cenário. O atual vice-presidente da Abia,
Veriano Terto Júnior, lembra que a Lei Henfil, que torna obrigatórios os exames
laboratoriais com sangue coletado, e a Lei Betinho, que proíbe o comércio de
sangue, foram conquistadas por essa luta.
Hoje, interesses
econômicos querem retomar a compra e a venda de derivados do sangue por meio da
PEC do Plasma, que já recebeu o aval de uma Comissão do Senado Federal. Eles
argumentam que sua aprovação seria positiva para impedir o suposto
“desperdício” de sangue. Contudo, desde o tempo de Betinho e Henfil, o país
desenvolveu um importante instrumento para não depender desse comércio: a
Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), uma indústria
pública fundada em 2004.
Há apenas um mês, a
estatal inaugurou em Goiana (PE) uma planta que fabricará – como produto
biotecnológico, não hemoderivado – o Fator VIII: a proteína que, importada
desleixadamente, infectou milhares de britânicos. Outra Saúde também conversou
com Ana Paula Menezes, presidente da Hemobrás, para conhecer as capacidades
produtivas que a empresa possui e os planos — já anunciados pela atual gestão —
de ampliá-las. O fortalecimento da estatal, sugere o vice-presidente da Abia, é
um caminho muito mais adequado que o “retorno à barbárie do tempo em que o
sangue era mercadoria”.
·
Como era no Brasil
O mais recente boletim
da Abia, intitulado “A volta dos vampiros”, conta um pouco da história da
campanha “Pacto de Sangue”, que conseguiu incidir até sobre a escrita da
Constituição Federal de 1988. Como conta um artigo do diretor-presidente da
Abia Richard Parker, sob o slogan “Sangue não é mercadoria” e com ilustrações
de Ziraldo, a mobilização sensibilizou os brasileiros – e garantiu a inclusão
do parágrafo 4º no artigo 199 da Carta Magna, que veda “todo tipo de
comercialização” da “coleta, processamento e transfusão de sangue e seus
derivados”.
Para Veriano Terto,
antes disso, “a forma como eram tratadas as transfusões de sangue e o acesso a
hemoderivados era completamente negligente, sem nenhuma atenção e cuidado com a
vida humana”. Além disso, a desinformação associava a transmissão da Aids à
homossexualidade ou o contato com homossexuais – e não ao manejo inadequado do
sangue e das transfusões.
Nesse cenário, a
unidade entre o movimento da reforma sanitária – que já havia discutido a
questão do sangue na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986 – o movimento
social da Aids foi decisiva para articular uma questão de soberania nacional (a
proteção do sangue dos brasileiros) com a situação real da epidemia de uma
doença que naquele momento já afetava milhares de pessoas, muitas delas
marginalizadas da sociedade. Como diz o artigo de Parker, as entidades
“articularam a noção de solidariedade como uma espécie de ‘vacina’ contra a
violência simbólica do estigma e discriminação relacionada à Aids”.
No mesmo ano da
promulgação da Constituição, também foi aprovada a Lei Henfil, que obrigava a
análise do sangue coletado – precisamente o que também não era feito no Reino
Unido, naquele mesmo período, e levou à infecção de 33 mil pessoas. No
enfrentamento à Aids, os resultados da lei foram bastante perceptíveis.
“A vigência da Lei
Henfil permitiu que o Brasil derrubasse os números de transmissão do HIV por
transfusão de sangue a níveis desprezíveis, de menos de 1%”, relata Veriano.
Alguns anos depois, a aprovação da Lei Betinho, que regulamentou a previsão
constitucional, viria para enterrar de vez a comercialização do sangue.
Apesar do progresso
representado pela testagem do material, na década de 1990, o Brasil ainda não
era autossuficiente no abastecimento de sangue e hemoderivados e seguia
dependendo de trocas comerciais com outros países para garantir seus estoques.
“O Brasil era
totalmente dependente das compras realizadas no exterior. Além de não termos
acesso aos processos produtivos, também ficávamos à mercê dos valores impostos
pelo mercado, sem nenhum referencial de preço para regular os preços praticados
nas compras do SUS”, conta Ana Paula Menezes, que é presidente da Hemobrás
desde março.
Para enfrentar esse
quadro, “foi fundada em 2004, no primeiro governo Lula, a Hemobrás, com o
intuito de garantir que o Brasil pudesse, através de uma empresa pública,
produzir medicamentos hemoderivados e biotecnológicos para usuários do SUS com
a garantia da qualidade e testagens efetivas, para não mais depender somente do
que é fabricado no exterior”, aponta a pernambucana.
Hoje, a estatal é “um
importante fornecedor de hemoderivados para o SUS, garantindo a entrega de
albumina, imunoglobulina e dos Fatores Coagulantes VIII e IX plasmáticos, além
do Fator VIII recombinante, que é produzido através da biotecnologia e, portanto,
não depende do plasma humano”, relata a médica.
A deficiência do Fator
VIII causa a hemofilia clássica – doença que portavam Betinho, Henfil e
milhares dos britânicos que, em transfusões com sangue não-testado, acabaram
sendo infectados pelo HIV ou pela Hepatite C. Em abril, o Brasil passou a
contar com uma fábrica desse produto em Pernambuco, reforçando sua soberania
sanitária. “Na inauguração dessa planta, o presidente Lula ressaltou a
importância da Hemobrás no atendimento aos pacientes hemofílicos, lembrando de
Henfil e Betinho e dizendo que, se fosse hoje, possivelmente eles não teriam
passado pelas dificuldades que os pacientes hemofílicos viviam nas décadas de
1970 e 80”, diz a presidente da empresa pública.
As entregas da estatal
já são robustas, mas devem se tornar ainda mais sólidas com a inauguração de
uma fábrica de hemoderivados prevista para o próximo ano com a capacidade de
armazenar 500 mil litros de plasma. “Atualmente, a Hemorrede fornece cerca de
200 mil litros por ano, quantidade que deve crescer nos próximos anos a partir
do investimento que o Governo Federal fará através do PAC Saúde. Serão R$100
milhões que vão garantir equipamentos para que os hemocentros forneçam mais
plasma com qualidade industrial para a Hemobrás”, revela Ana Paula.
Até o final de 2026, a
empresa pretende alcançar o processo de produção 100% nacional de hemoderivados
e recombinantes, “um passo importante para que o Brasil atinja a
autossuficiência desses medicamentos”. Para isso, a Hemobrás recebeu o selo de
Empresa Estratégica de Defesa (EED), “justamente pelo valor estratégico para a
independência do país em relação ao mercado externo”. Ana Paula lembra que não
só as pessoas com hemofilia, mas também “pacientes de UTIs, queimados graves,
portadores de doenças renais e doenças autoimunes” também serão beneficiados.
·
Novos desafios
A despeito de todo o
avanço das últimas décadas na capacidade pública, o fato de que “ainda há
insuficiências” em seu trabalho – afinal, apesar de estar nos planos, a
autossuficiência ainda não foi alcançada –, opina Veriano, abriu margem para
que o empresariado da saúde rearticulasse pa proposta de vender o sangue dos
brasileiros.
Sua ofensiva se
materializou na Proposta de Emenda à Constituição 10/2022, a “PEC do Plasma”.
Em outubro passado, ela foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça do
Senado Federal, um primeiro passo para que seja votada pelo Congresso Nacional.
A PEC busca desvirtuar
o artigo 199 da Constituição Federal, aquele conquistado pela mobilização de
Betinho e seus aliados. Seu texto prevê que “bancos de sangue privados ganhem o
direito de vender o plasma” para “empresas farmacêuticas, que o processariam e
venderiam os medicamentos ao mercado privado”, como explica a Agência Senado.
As entidades que
acompanharam nas últimas décadas todos os ganhos de saúde pública, dignidade
humana e soberania nacional do modelo de gestão do sangue conduzido pelo Estado
são críticas à mudança e veem perigos em suas possíveis consequências.
“Vemos mais uma vez a
pressão de empresas farmacêuticas privadas, tanto nacionais, quanto
internacionais, para que haja essa flexibilização da lei, ou seja, para voltar
a comercializar o sangue. Nós temos uma preocupação do ponto de vista ético,
porque o sangue não é uma mercadoria, é um órgão humano. Além disso, o que diz
que não haverá uma pressão para que outros órgãos que podem ser transplantados,
como os rins, também sejam comercializados?”, questiona Veriano.
No âmbito da Aids,
como se vê pelo caso do Reino Unido, a volta ao modelo anterior, onde é preciso
confiar em empresas para testar o sangue coletado e vendido, pode custar vidas.
“Um dos únicos instrumentos efetivos que tivemos para realmente deter a transmissão
do HIV via transfusão foi a Lei Henfil, com as medidas que ela trouxe. Num país
onde os casos de Aids voltaram a crescer nos últimos anos, especialmente entre
a população mais vulnerável, a gente vê nisso tudo uma ameaça de retrocesso”,
ele continua.
“O Brasil só conseguiu
ter o controle do sangue a partir do momento em que isso passou para o domínio
do SUS e a responsabilidade do Estado, com o fim da comercialização. Nós somos
contra qualquer perspectiva de comercialização do sangue ou de hemoderivados
até que nos provem o contrário”, conclui o vice-presidente da Abia.
Fonte: Por Guilherme
Arruda, em Outra Cidadania
Nenhum comentário:
Postar um comentário