Jurandir Malerba: Minha entrevista não foi
publicada porque me recusei a confirmar a pauta negativista do repórter
Sou Professor Titular
de História da UFRGS e reporto a seguir um episódio revelador do modus operandi
de certos veículos de imprensa brasileiros. Em meio à tragédia que vivemos no
Rio Grande do Sul, semana passada um jornalista de veículos reacionários da
grande imprensa entrou em contato pedindo uma entrevista sobre a recente
tragédia climática no Rio Grande do Sul, quando choveu, em uma semana, dez
vezes a média histórica para todo o mês de maio, causando mortes e destruição.
As perguntas enviesadas já evidenciavam para onde o jornalista queria levar a
matéria: uma crítica da atuação do Estado, louvando ações individuais da
“sociedade civil”, reproduzindo a fake de que o “povo” salvou o povo. Em minha
devolução, posicionei-me contra o viés inscrito no questionário, não obstante
tenha me disposto a respondê-lo, até como um contraponto àqueles que atenderiam
às expectativas do editorial.
<><> Segue
a reprodução integral das perguntas e respostas:
• 1. Por que o brasileiro tem sido tão
solidário com os gaúchos?
Uma tragédia dessa
dimensão, uma das maiores da história do Brasil, ao lado do rompimento da
barragem em Brumadinho (2019) e da hecatombe da pandemia de Covid no Brasil
(2020-2021) não há como passar incólume à população brasileira, que sempre foi
majoritariamente solidária, exceto uma fração, nada desprezível numericamente,
de classe média. Por outro lado, não se pode desconsiderar o efeito “poderia
ser comigo”, já que a incompetência e a má gestão pública, principalmente nos
níveis municipal e estadual, é de conhecimento de todos. Pesquisa da
Confederação Nacional de Municípios desta semana revelou que 8 em cada 10
prefeitos do país assumem despreparo para lidar com eventos climáticos
extremos. E todos sabem, até os negacionistas, que os eventos vão se intensificar
em número e potência.
• 2. Houve momentos parecidos na nossa
história? Quando?
Certamente, como a
enchente histórica aqui mesmo em Porto Alegre em 1941. Desconsiderando o modelo
de urbanização criminoso europeu de avançar a cidade sobre o rio, aquela
enchente foi um fenômeno natural. Mas esta, de 2024, não! Entre 1950 e começo
da década de 1970, Porto Alegre investiu na construção de um sofisticado
sistema contra enchentes. O que acaba de acontecer é o resultado criminoso de
sucessivas gestões que, além de não inovar o sistema, o sucatearam, sem
investimento e manutenção. Os números estão disponíveis e há documentos que
comprovam a negligência das últimas administrações estaduais e federais. Para
ficar em outros três desastres recentes, com o mesmo caráter criminoso, basta
lembrar os rompimentos de barragem em Mariana (2015) e Brumadinho (MG), o
primeiro o maior em impacto ambiental e o segundo em número de vítimas; e os
700 mil brasileiros e brasileiras vítimas não só do vírus SARS-Cov-2, mas da
gestão criminosa da crise de saúde pelo então governo negacionista. Com 2,7% da
população mundial, o Brasil concentrou 13% das mortes por Covid no planeta. O
relatório final CPI da Covid abunda em dados e a sociedade aguarda o
indiciamento, pela Justiça, dos culpados.
• 3. Até então, falava-se muito da
polarização política e do individualismo, coisas que estariam minando o nosso
senso de comunidade e a união entre as pessoas. Por que essas coisas não
atrapalharam tanto?
A polarização
política, como pessoas de boa-fé sabem, não existe, pois não há “polos”. Há uma
extrema-direita fascista, globalmente articulada e muito ativa na disseminação
de fake news inclusive nesta crise do Rio Grande do Sul, espalhando
concertadamente que o Estado (em âmbito federal) está inativo, ou mesmo
atrapalhando e que é o “povo” que está socorrendo o povo. Eu vivo em Viamão, na
área metropolitana de Porto Alegre e estive na linha de frente da crise,
voluntariando, e garanto que, sem suporte do Estado, a sociedade civil,
sozinha, não teria conseguido salvar um décimo das vítimas, pessoas e animais.
No entanto, vemos a proliferação de fakes, como bloqueio de estradas por
polícias e Exército e assim por diante. As razões do ataque às FFAA pela extrema
direita são de público conhecimento: retaliação pela não adesão ao golpe falido
em 8 de janeiro de 2023.
• 4. Muita da ajuda foi prestada pela
própria sociedade civil, e não pelo governo/Estado. Isso terá consequências
para o futuro? Teremos uma população mais unida e mais cética com o Estado no
futuro?
Como eu disse, essa
afirmação é falaciosa. Sem dúvida, o voluntariado foi importante no socorro
imediato, durante as chuvas torrenciais e inundações. Mas o Estado (tanto no
âmbito municipal, como Estadual e, principalmente, Federal) também foi decisivo
no socorro às vítimas desde o primeiro momento. E o será na reconstrução do
estado do RS. A “sociedade civil” não aportará centenas de bilhões necessários
à reconstrução da infraestrutura logística, de socorro às empresas e às
famílias. Neste ponto entra o problema central da comunicação. Se não houver um
controle responsável das mídias digitais, estaremos todos sob o risco do
enfraquecimento do Estado.
• 5. Por que as narrativas políticas para
tentar dividir a população durante esse momento parecem não ter prosperado?
Essa proposição não é
inteiramente verdadeira. A extrema–direita tem logrado algum êxito na
propagação de mentiras. Por outro lado, é preciso uma percepção sociológica
mais aguçada para pensar a “população”. Ela não é coesa. Bastará observar,
conforme as estatísticas ficarem disponíveis, quem são proporcionalmente os
segmentos mais afetados pelo desastre. São os pobres, os periféricos, das
cidades-satélites de Eldorado do Sul e Guaíba, das periferias de São Leopoldo e
Canoas; dos bairros pobres de Porto Alegre como São Geraldo, dos baixadões do
Humaitá e da Zonal Sul, onde se concentram muitas “vilas” (como aqui se chamam
as favelas). E não será de egressos desses extratos que a produção de fake news
acontecerá, mas das classes médias não atingidas.
*
Imediatamente, sem
emitir juízo algum sobre minhas respostas, o jornalista pediu para aprofundar a
comparação à tragédia climática do RS com a Covid no Brasil, em relação a seu
caráter histórico, questionando se as enchentes deste ano, aqui, poderiam mudar
o modo de ver os eventos climáticos no Brasil. E assim me dei ao trabalho de
responder:
*
Vai depender de uma
série de fatores. Os negacionismos são uma realidade deletéria nos últimos
anos, potencializados e usados politicamente pelas/nas redes sociais. Foi assim
na pandemia, e assim é em relação à ciência, à história, à política, às religiões.
Então, em uma época em que pessoas acreditam que a terra é plana e tentam
convencer outras pessoas disso, e em que setores criminosos manipulam essa
ignorância, a coibição veemente das fake news negacionistas por parte das
autoridades judiciais será um elemento decisivo para que as pessoas entendam
que estamos no ponto de não retorno em relação ao meio ambiente e ao clima.
*
Depois de ter atendido
ao jornalista, respondendo até pergunta extra, sua resposta foi a de que não
incluiria minha contribuição no texto que produzia, que já estava quase
finalizado, porque “Nós realmente estamos indo por caminhos muito distintos,
uma pena” e que esperava que eu conseguisse “publicar suas reflexões em outro
lugar”.
Agradeço ao jornalista
dos veículos reacionários a oportunidade de organizar minhas reflexões e
publicá-las em outro lugar, ao mesmo tempo desnudando essa forma perniciosa de
fazer imprensa, infelizmente, ainda corrente no Brasil. Ao confirmar que seguíamos
por “caminhos muito distintos”, os veículos revelam que simplesmente procuravam
por alguém, com alguma chancela institucional, que endossasse sua perspectiva
liberal, anti–Estado, mercadófila, individualista e negacionista. Não se
tratava de matéria jornalística, mas uma busca de material para a pregação
ideológica. Se não responder o que o veículo quer, não se publica. Esse tipo de
“cobertura” é tragédia em cima de tragédia!
• Tragédia no RS: recuperação precisa
incluir adaptação climática e ser alerta para prevenção em todo o país
O drama da catástrofe
climática no Rio Grande do Sul não acabou, ainda mais com a previsão de mais
temporais, como reportou O Globo. No entanto, a recuperação precisa começar, e
apostar única e exclusivamente na engenharia civil é perder tempo e dinheiro.
Assim, a recuperação gaúcha passa obrigatoriamente por mitigação e adaptação
climáticas, com foco na prevenção, e pode servir de modelo para outras regiões.
“Temos que nos adaptar
às mudanças do clima e temos que nos preparar, porque isso que está acontecendo
agora, infelizmente, vai continuar acontecendo. Ano passado vimos duas vezes
enchentes no Vale do Taquari e seca no Rio Grande do Sul, seca na Amazônia e
cheia na Amazônia”, afirmou a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, em fala
durante a 25ª Marcha a Brasília em Defesa dos Municípios, em Brasília. Ela
também destacou a necessidade de medidas para prevenir e mitigar eventos
extremos, como a redução do uso de combustíveis fósseis, do desmatamento e
também a adoção de medidas para evitar a perda da biodiversidade, detalha a
Agência Brasil.
O ministério do Meio
Ambiente (MMA), junto a outros ministérios, prepara um Plano de Prevenção a
Desastres Climáticos, que busca viabilizar recursos para que quase 2.000
municípios possam investir em ações para evitar catástrofes ambientais. Mas não
há previsão de quando a proposta estará pronta, disse Marina à BBC, em
entrevista reproduzida pela Folha.
Um desafio são os
recursos financeiros. O MMA defende a criação de mecanismos econômicos para que
os municípios invistam em prevenção e adaptação ante os efeitos das mudanças
climáticas. Para a secretária nacional de Mudança do Clima do ministério, Ana Toni,
o governo já está estruturado para disponibilizar verbas quando os municípios
decretam calamidade pública, como no RS. Mas ela avalia ser necessário criar
políticas que incentivem também os projetos de prevenção pelas cidades, destaca
o Valor.
O BNDES tem estudos e
iniciativas com o MMA para medidas de mitigação, adaptação e também para perdas
e danos, disse o secretário de Planejamento do banco, Nelson Barbosa, em
entrevista à Míriam Leitão na Globonews, repercutida n’O Globo. Quanto à recuperação
do RS, Barbosa disse que os primeiros estudos mostram que o custo pode ser de
R$ 70 bilhões a R$ 100 bilhões ao longo de 10 a 15 anos. Mas o número final
ainda é uma incógnita.
Os custos econômicos
de tragédias como a gaúcha também estão no radar das instituições financeiras.
Que ainda não sabem o quanto terão de desembolsar diante do “novo anormal” –
mas continuam financiando projetos de combustíveis fósseis que pioram a crise
climática. “É só a ponta do iceberg, o começo do que vem pela frente”, disse o
CEO do Itaú, Milton Maluhy, em referência à dimensão ainda desconhecida dos
impactos do problema climático extremo e também sobre a possibilidade de
eventos do gênero se tornarem mais frequentes, explica o Valor.
Outra lacuna é a falta
de projetos de adaptação pelos municípios, informa o Valor. “Quem precisa
apresentar esses projetos são as cidades. Uma das áreas que temos que trabalhar
é na estruturação de projetos junto com os prefeitos porque não adianta ter o
dinheiro se não tem projetos chegando”, afirmou Ana.
“Reconstrução atrai
muito dinheiro, enquanto obras de prevenção são iniciadas em uma administração,
mas quem leva o crédito é a seguinte”, disse José Marengo, pesquisador do
CEMADEN, em evento da USP reportado pela
Agência FAPESP. “Não temos como parar as chuvas, mas temos como salvar a
população”, explicou o especialista, destacando que isso pode obrigar a
realocação de cidades inteiras. Marengo afirmou que o Brasil gasta quase o
triplo para remediar do que aplica em prevenir desastres. Entre 2013 e 2023,
1.997 pessoas morreram em decorrência de eventos extremos, com R$ 485 bilhões
em prejuízos econômicos, enquanto os recursos para prevenção vêm diminuindo
desde 2014.
“As cidades precisam
se antecipar à crise do clima”, disse n’O Globo o coordenador do Subprograma de
Mudanças Climáticas do PNUMA, Niklas Hagelberg. Que reforça que a catástrofe
climática no RS mostra como eventos extremos podem impactar as comunidades.
“Os eventos
contrastantes de seca na Amazônia e excesso de chuvas no Sul são lembretes
gritantes da gravidade dos impactos climáticos. Eles ilustram a necessidade de
estratégias de adaptação dinâmicas e flexíveis que possam enfrentar os diversos
desafios enfrentados por diferentes regiões”, ressaltou.
Fonte: Observatório da
Imprensa, no IHU/ClimaInfo
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