domingo, 26 de maio de 2024

Jurandir Malerba: Minha entrevista não foi publicada porque me recusei a confirmar a pauta negativista do repórter

Sou Professor Titular de História da UFRGS e reporto a seguir um episódio revelador do modus operandi de certos veículos de imprensa brasileiros. Em meio à tragédia que vivemos no Rio Grande do Sul, semana passada um jornalista de veículos reacionários da grande imprensa entrou em contato pedindo uma entrevista sobre a recente tragédia climática no Rio Grande do Sul, quando choveu, em uma semana, dez vezes a média histórica para todo o mês de maio, causando mortes e destruição. As perguntas enviesadas já evidenciavam para onde o jornalista queria levar a matéria: uma crítica da atuação do Estado, louvando ações individuais da “sociedade civil”, reproduzindo a fake de que o “povo” salvou o povo. Em minha devolução, posicionei-me contra o viés inscrito no questionário, não obstante tenha me disposto a respondê-lo, até como um contraponto àqueles que atenderiam às expectativas do editorial.

<><> Segue a reprodução integral das perguntas e respostas:

•        1. Por que o brasileiro tem sido tão solidário com os gaúchos?

Uma tragédia dessa dimensão, uma das maiores da história do Brasil, ao lado do rompimento da barragem em Brumadinho (2019) e da hecatombe da pandemia de Covid no Brasil (2020-2021) não há como passar incólume à população brasileira, que sempre foi majoritariamente solidária, exceto uma fração, nada desprezível numericamente, de classe média. Por outro lado, não se pode desconsiderar o efeito “poderia ser comigo”, já que a incompetência e a má gestão pública, principalmente nos níveis municipal e estadual, é de conhecimento de todos. Pesquisa da Confederação Nacional de Municípios desta semana revelou que 8 em cada 10 prefeitos do país assumem despreparo para lidar com eventos climáticos extremos. E todos sabem, até os negacionistas, que os eventos vão se intensificar em número e potência.

•        2. Houve momentos parecidos na nossa história? Quando?

Certamente, como a enchente histórica aqui mesmo em Porto Alegre em 1941. Desconsiderando o modelo de urbanização criminoso europeu de avançar a cidade sobre o rio, aquela enchente foi um fenômeno natural. Mas esta, de 2024, não! Entre 1950 e começo da década de 1970, Porto Alegre investiu na construção de um sofisticado sistema contra enchentes. O que acaba de acontecer é o resultado criminoso de sucessivas gestões que, além de não inovar o sistema, o sucatearam, sem investimento e manutenção. Os números estão disponíveis e há documentos que comprovam a negligência das últimas administrações estaduais e federais. Para ficar em outros três desastres recentes, com o mesmo caráter criminoso, basta lembrar os rompimentos de barragem em Mariana (2015) e Brumadinho (MG), o primeiro o maior em impacto ambiental e o segundo em número de vítimas; e os 700 mil brasileiros e brasileiras vítimas não só do vírus SARS-Cov-2, mas da gestão criminosa da crise de saúde pelo então governo negacionista. Com 2,7% da população mundial, o Brasil concentrou 13% das mortes por Covid no planeta. O relatório final CPI da Covid abunda em dados e a sociedade aguarda o indiciamento, pela Justiça, dos culpados.

•        3. Até então, falava-se muito da polarização política e do individualismo, coisas que estariam minando o nosso senso de comunidade e a união entre as pessoas. Por que essas coisas não atrapalharam tanto?

A polarização política, como pessoas de boa-fé sabem, não existe, pois não há “polos”. Há uma extrema-direita fascista, globalmente articulada e muito ativa na disseminação de fake news inclusive nesta crise do Rio Grande do Sul, espalhando concertadamente que o Estado (em âmbito federal) está inativo, ou mesmo atrapalhando e que é o “povo” que está socorrendo o povo. Eu vivo em Viamão, na área metropolitana de Porto Alegre e estive na linha de frente da crise, voluntariando, e garanto que, sem suporte do Estado, a sociedade civil, sozinha, não teria conseguido salvar um décimo das vítimas, pessoas e animais. No entanto, vemos a proliferação de fakes, como bloqueio de estradas por polícias e Exército e assim por diante. As razões do ataque às FFAA pela extrema direita são de público conhecimento: retaliação pela não adesão ao golpe falido em 8 de janeiro de 2023.

•        4. Muita da ajuda foi prestada pela própria sociedade civil, e não pelo governo/Estado. Isso terá consequências para o futuro? Teremos uma população mais unida e mais cética com o Estado no futuro?

Como eu disse, essa afirmação é falaciosa. Sem dúvida, o voluntariado foi importante no socorro imediato, durante as chuvas torrenciais e inundações. Mas o Estado (tanto no âmbito municipal, como Estadual e, principalmente, Federal) também foi decisivo no socorro às vítimas desde o primeiro momento. E o será na reconstrução do estado do RS. A “sociedade civil” não aportará centenas de bilhões necessários à reconstrução da infraestrutura logística, de socorro às empresas e às famílias. Neste ponto entra o problema central da comunicação. Se não houver um controle responsável das mídias digitais, estaremos todos sob o risco do enfraquecimento do Estado.

•        5. Por que as narrativas políticas para tentar dividir a população durante esse momento parecem não ter prosperado?

Essa proposição não é inteiramente verdadeira. A extrema–direita tem logrado algum êxito na propagação de mentiras. Por outro lado, é preciso uma percepção sociológica mais aguçada para pensar a “população”. Ela não é coesa. Bastará observar, conforme as estatísticas ficarem disponíveis, quem são proporcionalmente os segmentos mais afetados pelo desastre. São os pobres, os periféricos, das cidades-satélites de Eldorado do Sul e Guaíba, das periferias de São Leopoldo e Canoas; dos bairros pobres de Porto Alegre como São Geraldo, dos baixadões do Humaitá e da Zonal Sul, onde se concentram muitas “vilas” (como aqui se chamam as favelas). E não será de egressos desses extratos que a produção de fake news acontecerá, mas das classes médias não atingidas.

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Imediatamente, sem emitir juízo algum sobre minhas respostas, o jornalista pediu para aprofundar a comparação à tragédia climática do RS com a Covid no Brasil, em relação a seu caráter histórico, questionando se as enchentes deste ano, aqui, poderiam mudar o modo de ver os eventos climáticos no Brasil. E assim me dei ao trabalho de responder:

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Vai depender de uma série de fatores. Os negacionismos são uma realidade deletéria nos últimos anos, potencializados e usados politicamente pelas/nas redes sociais. Foi assim na pandemia, e assim é em relação à ciência, à história, à política, às religiões. Então, em uma época em que pessoas acreditam que a terra é plana e tentam convencer outras pessoas disso, e em que setores criminosos manipulam essa ignorância, a coibição veemente das fake news negacionistas por parte das autoridades judiciais será um elemento decisivo para que as pessoas entendam que estamos no ponto de não retorno em relação ao meio ambiente e ao clima.

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Depois de ter atendido ao jornalista, respondendo até pergunta extra, sua resposta foi a de que não incluiria minha contribuição no texto que produzia, que já estava quase finalizado, porque “Nós realmente estamos indo por caminhos muito distintos, uma pena” e que esperava que eu conseguisse “publicar suas reflexões em outro lugar”.

Agradeço ao jornalista dos veículos reacionários a oportunidade de organizar minhas reflexões e publicá-las em outro lugar, ao mesmo tempo desnudando essa forma perniciosa de fazer imprensa, infelizmente, ainda corrente no Brasil. Ao confirmar que seguíamos por “caminhos muito distintos”, os veículos revelam que simplesmente procuravam por alguém, com alguma chancela institucional, que endossasse sua perspectiva liberal, anti–Estado, mercadófila, individualista e negacionista. Não se tratava de matéria jornalística, mas uma busca de material para a pregação ideológica. Se não responder o que o veículo quer, não se publica. Esse tipo de “cobertura” é tragédia em cima de tragédia!

 

•        Tragédia no RS: recuperação precisa incluir adaptação climática e ser alerta para prevenção em todo o país

 

O drama da catástrofe climática no Rio Grande do Sul não acabou, ainda mais com a previsão de mais temporais, como reportou O Globo. No entanto, a recuperação precisa começar, e apostar única e exclusivamente na engenharia civil é perder tempo e dinheiro. Assim, a recuperação gaúcha passa obrigatoriamente por mitigação e adaptação climáticas, com foco na prevenção, e pode servir de modelo para outras regiões.

“Temos que nos adaptar às mudanças do clima e temos que nos preparar, porque isso que está acontecendo agora, infelizmente, vai continuar acontecendo. Ano passado vimos duas vezes enchentes no Vale do Taquari e seca no Rio Grande do Sul, seca na Amazônia e cheia na Amazônia”, afirmou a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, em fala durante a 25ª Marcha a Brasília em Defesa dos Municípios, em Brasília. Ela também destacou a necessidade de medidas para prevenir e mitigar eventos extremos, como a redução do uso de combustíveis fósseis, do desmatamento e também a adoção de medidas para evitar a perda da biodiversidade, detalha a Agência Brasil.

O ministério do Meio Ambiente (MMA), junto a outros ministérios, prepara um Plano de Prevenção a Desastres Climáticos, que busca viabilizar recursos para que quase 2.000 municípios possam investir em ações para evitar catástrofes ambientais. Mas não há previsão de quando a proposta estará pronta, disse Marina à BBC, em entrevista reproduzida pela Folha.

Um desafio são os recursos financeiros. O MMA defende a criação de mecanismos econômicos para que os municípios invistam em prevenção e adaptação ante os efeitos das mudanças climáticas. Para a secretária nacional de Mudança do Clima do ministério, Ana Toni, o governo já está estruturado para disponibilizar verbas quando os municípios decretam calamidade pública, como no RS. Mas ela avalia ser necessário criar políticas que incentivem também os projetos de prevenção pelas cidades, destaca o Valor.

O BNDES tem estudos e iniciativas com o MMA para medidas de mitigação, adaptação e também para perdas e danos, disse o secretário de Planejamento do banco, Nelson Barbosa, em entrevista à Míriam Leitão na Globonews, repercutida n’O Globo. Quanto à recuperação do RS, Barbosa disse que os primeiros estudos mostram que o custo pode ser de R$ 70 bilhões a R$ 100 bilhões ao longo de 10 a 15 anos. Mas o número final ainda é uma incógnita.

Os custos econômicos de tragédias como a gaúcha também estão no radar das instituições financeiras. Que ainda não sabem o quanto terão de desembolsar diante do “novo anormal” – mas continuam financiando projetos de combustíveis fósseis que pioram a crise climática. “É só a ponta do iceberg, o começo do que vem pela frente”, disse o CEO do Itaú, Milton Maluhy, em referência à dimensão ainda desconhecida dos impactos do problema climático extremo e também sobre a possibilidade de eventos do gênero se tornarem mais frequentes, explica o Valor.

Outra lacuna é a falta de projetos de adaptação pelos municípios, informa o Valor. “Quem precisa apresentar esses projetos são as cidades. Uma das áreas que temos que trabalhar é na estruturação de projetos junto com os prefeitos porque não adianta ter o dinheiro se não tem projetos chegando”, afirmou Ana.

“Reconstrução atrai muito dinheiro, enquanto obras de prevenção são iniciadas em uma administração, mas quem leva o crédito é a seguinte”, disse José Marengo, pesquisador do CEMADEN, em evento da USP reportado pela  Agência FAPESP. “Não temos como parar as chuvas, mas temos como salvar a população”, explicou o especialista, destacando que isso pode obrigar a realocação de cidades inteiras. Marengo afirmou que o Brasil gasta quase o triplo para remediar do que aplica em prevenir desastres. Entre 2013 e 2023, 1.997 pessoas morreram em decorrência de eventos extremos, com R$ 485 bilhões em prejuízos econômicos, enquanto os recursos para prevenção vêm diminuindo desde 2014.

“As cidades precisam se antecipar à crise do clima”, disse n’O Globo o coordenador do Subprograma de Mudanças Climáticas do PNUMA, Niklas Hagelberg. Que reforça que a catástrofe climática no RS mostra como eventos extremos podem impactar as comunidades.

“Os eventos contrastantes de seca na Amazônia e excesso de chuvas no Sul são lembretes gritantes da gravidade dos impactos climáticos. Eles ilustram a necessidade de estratégias de adaptação dinâmicas e flexíveis que possam enfrentar os diversos desafios enfrentados por diferentes regiões”, ressaltou.

 

Fonte: Observatório da Imprensa, no IHU/ClimaInfo

 

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