‘Laranjas’ encobrem crimes ambientais no
arco do desmatamento na Amazônia
Nome conhecido na
Amazônia e nos corredores da capital federal, José Carlos Bronca, 71 anos, está
dando trabalho a autoridades da República que tentam responsabilizá-lo por
desmatamento ilegal em Lábrea, no sul Amazonas. Entre 2016 e 2019, o Ibama
emitiu multas no valor de R$ 28,7 milhões por desmates que, somados, totalizam
5,3 mil hectares em uma fazenda chamada Nova Liberdade.
A Nova Liberdade está
situada na Gleba João Bento, um terreno público que fica a meio caminho entre
Porto Velho, em Rondônia, e Rio Branco, no Acre, na fronteira entre os três
estados do norte que é um dos epicentros do chamado arco do desmatamento.
Os agentes ambientais
levantaram evidências – assumidas também pelo Ministério Público Federal – de
que Bronca seria o verdadeiro dono das terras. Mas, no papel, a fazenda teve
sua área dividida em várias parcelas menores, que foram registradas no Cadastro
Ambiental Rural em nome parentes ou empregados do proprietário, o que sugere o
uso de “laranjas”.
O método supostamente
usado por Bronca no sul do Amazonas é muito semelhante ao atribuído a Bruno
Heller, no Pará – ele tem sido apontado por autoridades como o “maior
desmatador da Amazônia” e foi alvo de uma operação da Polícia Federal em agosto
de 2023. Assim como Bronca, ele supostamente falsificou registros de terras no
âmbito do Cadastro Ambiental Rural, segundo o inquérito policial.
Essa estratégia, comum
na Amazônia segundo as autoridades, tem sido um obstáculo para os
investigadores. Escondendo-se atrás de laranjas – geralmente pessoas humildes
que não estão totalmente cientes das consequências – os grileiros podem burlar
as leis de regularização fundiária e se proteger contra processos judiciais,
prisão e multas ambientais.
Essas infrações nunca
são pagas, pois os laranjas geralmente não têm dinheiro. “Você vai procurar os
bens que estão no nome do cidadão multado e não encontra nada”, explica César
Guimarães, superintendente do IBAMA no estado de Rondônia.
Mas com Bronca, a
história parece estar mudando de figura. Recentemente, ele teve seus bens
bloqueados e novas multas e embargos foram emitidos pelo Ibama em seu nome,
conforme a investigação feita em parceria entre Repórter Brasil e Mongabay.
Procurado, Bronca
enviou uma nota informando que nunca utilizou laranjas “para qualquer
finalidade, muito menos para fraudar processo de regularização fundiária” – a
íntegra pode ser lida ao final deste texto. Bruno Heller já se manifestou
anteriormente sobre seu caso. Em nota enviada em março à Repórter Brasil, seu
advogado informou que a família “desde os anos 70 exerce a posse mansa, livre e
pacífica da propriedade rural familiar situada no Estado do Pará”.
• Contratos teriam sido forjados para
enganar as autoridades
A primeira ocasião em
que Bronca teria se esquivado do Ibama ocorreu em agosto de 2016. Uma equipe do
órgão ambiental flagrou vários homens desmatando a floresta com motosserras
dentro da Nova Liberdade. Eles confirmaram que a área pertencia ao “Sr. Bronca”,
conforme consta no relatório de fiscalização ao qual a reportagem teve acesso.
Cinco dias depois, no
entanto, um funcionário de Bronca, Cheyenne Figueiredo de Souza, compareceu ao
escritório do Ibama para mostrar um contrato em que afirmava ter comprado a
Nova Liberdade de Bronca em 2014 – ele seria, portanto, o responsável pelo desmatamento.
Mas, em uma ação trabalhista, de acesso público, que moveu em 2023 contra seu
ex-chefe, Souza afirmou que o contrato foi assinado em um cartório no dia
anterior à sua visita ao escritório do Ibama e “escancaradamente forjado com
data retroativa”. Em junho de 2018, dois anos após o primeiro flagrante, o
trabalhador assumiria novamente uma multa pelo desmatamento de 691 hectares na
mesma fazenda.
“Se alguém apresenta
um contrato de compra e venda firmado em cartório, eu tenho que basear meus
atos neste documento”, observa César Guimarães, superintendente do Ibama em
Rondônia, quando apresentado ao caso.
De acordo com o
processo trabalhista, os esforços de Bronca para burlar as multas ambientais
foram tão intensos que nenhum ativo, incluindo suas empresas, poderia ser
mantido em seu nome e nenhum dinheiro poderia ser movimentado por ele. Para
isso, ele usava cartões de crédito de seus parentes. “Nem mesmo um almoço era
pago a partir da conta bancária do próprio Sr. José Carlos Bronca”, escreve o
advogado de Souza em uma das peças processuais.
Em sua defesa, Bronca
argumenta que o funcionário “jamais foi obrigado” a assinar o contrato de
compra e venda do terreno. Curiosamente, ele também diz em outro trecho que é o
verdadeiro proprietário da fazenda, confirmando, portanto, que o contrato teria
sido simulado.
Na justiça, Souza pede
uma indenização por ter sido usado como laranja, além de encargos trabalhistas,
totalizando R$ 22 milhões. Uma primeira decisão de dezembro de 2023 concedeu a
Souza os direitos trabalhistas não pagos, mas não mencionou reparações relacionadas
à acusação de ter sido usado como laranja. Ele recorreu.
Procurado, Souza disse
que não faria comentários. Bronca não comentou o processo trabalhista.
• Do faroeste amazônico aos corredores de
Brasília
A gleba João Bento é
um dos alvos mais fáceis dos grileiros, porque ela é uma terra “não destinada”,
no jargão oficial. Isso quer dizer que ela ainda não tem um uso definido pelo
governo, não é nem área indígena, nem unidade de conservação – e, por isso,
está mais vulnerável a invasões. Mas é a última barreira antes de um vasto
bloco de áreas protegidas já designadas, onde há inclusive indícios de
existência de indígenas isolados. E já perdeu quase metade de sua cobertura
florestal original, segundo o Greenpeace.
“É um verdadeiro
faroeste”, observa Humberto de Aguiar Júnior, promotor do Ministério Público do
Acre, referindo-se às frequentes disputas de terra na região, muitas das quais
culminam em tiroteios. “Às vezes, seis pessoas alegam ser proprietárias da mesma
área”, completa.
O método atribuído a
José Carlos Bronca, contudo, é distinto. Documentos obtidos por meio da Lei de
Acesso à Informação mostram que entre 2021 e 2022 ele teve quatro reuniões com
o Incra – duas delas foram com o presidente do órgão – para discutir o “georreferenciamento”
e a “regularização fundiária da gleba João Bento”.
As reuniões foram
organizadas por Márcio Bittar, um senador do Acre descrito por Bronca como um
“amigo” e apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro. O senador foi procurado,
mas informou que não iria comentar.
• A dificuldade de perseguir laranjas
Descobrir quem é o
verdadeiro desmatador por trás de laranjas não é tarefa fácil.
Em 2021, por exemplo,
a Polícia Federal solicitou à Polícia Militar de Lábrea que visitasse a fazenda
de Bronca para verificar se ele era o real proprietário da terra. Mas não havia
veículos, combustível ou dinheiro para pagar as diárias da equipe em uma viagem
de 1.400 km – equivalente à distância entre a cidade do Rio de Janeiro e Porto
Alegre – passando por “trechos com possíveis atoleiros, enlameados e lisos, em
razão da precariedade das estradas de terra”.
Em outro episódio, um
oficial de justiça relatou que, para cumprir um mandado judicial, precisou ir
até um ponto na estrada onde um parente de Bronca ajudava a desatolar um
caminhão para notificá-lo sobre um processo.
A violência em muitas
partes da Amazônia torna o trabalho ainda mais desafiador, explica o
superintendente do Ibama no Acre, César Guimarães: “São lugares extremamente
hostis. Preciso de dois policiais para cada agente. Porque se o agente chegar
lá sozinho, ele será perseguido e linchado”.
No caso de Bronca, a
coisa mudou de figura em outubro de 2019, durante uma fiscalização do Ibama,
quando um gerente da fazenda o identificou como proprietário da Nova Liberdade
e responsável por mais um desmatamento. Dessa vez, não houve saída: ele foi multado
em R$ 10 milhões e teve seus bens bloqueados por um juiz. No ano seguinte, as
autoridades começaram a rastrear possíveis laranjas, em uma investigação que
segue em andamento.
Em abril de 2023,
Bronca seria multado novamente. Desta vez, a conta foi de R$ 25,7 milhões por
crimes ambientais – novamente, sem nenhuma fachada para assumir a culpa por
ele.
O fato de que os
parentes que alegavam ser os proprietários das terras trabalhavam em atividades
completamente alheias à pecuária soou como um alarme para as autoridades.
“Desde o início dessas apurações, o MPF sinalizou a possibilidade de José
Carlos Bronca estar a utilizar-se de terceiros, laranjas, para ocultar a posse
de áreas rurais no Município de Lábrea”, escreveu Ana Carolina Haliuc Bragança,
procuradora federal do Amazonas, em agosto de 2022.
• Íntegra da nota de José Carlos Bronca –
enviada por meio de advogado
Eu, José Carlos Bronca
declaro que estou atualmente com 71 anos de idade, com diversas sequelas da
covid, inclusive debilitado e realizando tratamento médico. Declaro igualmente
que nunca me utilizei de laranjas para qualquer finalidade, muito menos para
fraudar processo de regularização fundiária. Quanto ao suposto descumprimento
de embargo do IBAMA, informa que o departamento jurídico está tomando as
providências perante o órgão ambiental competente.
JBS: pecuarista multado por desmate com
‘agente laranja’ abasteceu frigorífico
O PECUARISTA CLAUDECY
OLIVEIRA LEMES foi alvo de uma operação da Polícia Civil do Mato Grosso pelo
desmatamento ilegal de 81,2 mil hectares em onze propriedades no município de
Barão de Melgaço (MT) na última semana. A devastação foi realizada com a pulverização
aérea de 25 tipos de agrotóxicos e é descrita pelas autoridades estaduais como
o maior dano ambiental já registrado no Mato Grosso.
Lemes é também
proprietário da Fazenda Monique Vale, localizada em Pedra Preta (MT), a 232 km
de onde o desmatamento químico foi registrado. Ao longo do último ano, a
propriedade enviou gado para ser abatido nas unidades da JBS em Barra do Garças
e Pedra Preta (MT), segundo dados de Guias de Trânsito Animal (GTAs) acessados
pela Repórter Brasil. Parte dos envios foram registrados em nome do próprio
Claudecy Lemes, e parte em nome de André de Moraes Zucato, parceiro rural de
Lemes na criação de animais dentro da fazenda.
A Fazenda Monique Vale
recebe gado de outras propriedades de Lemes para a sua engorda final anterior
ao abate. Entre as fornecedoras dos animais estão as fazendas Soberana, Santa
Lúcia, Indiana e Reunidas São Jerônimo, 4 das 11 propriedades investigadas pelo
desmatamento químico em Barão de Melgaço.
Pelo crime ambiental,
Claudecy Lemes foi multado em mais de R$ 2,8 bilhões, a maior multa já
registrada pela Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema-MT). Segundo
levantamento da Delegacia Especializada do Meio Ambiente (Dema) da Polícia
Civil do estado, o produtor gastou mais de R$ 9,5 milhões em agrotóxicos para
realizar a devastação.
A investigação aponta
que entre os 25 agrotóxicos utilizados para desmatar a área está o herbicida
2,4-D, um dos compostos usados na fabricação do “agente laranja”, conhecido
pelo potencial destruidor, usado pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. O caso
foi noticiado em reportagem do programa Fantástico, no último domingo (14).
A reportagem entrou em
contato com a defesa de Claudecy Lemes, que não respondeu os questionamentos
enviados até o fechamento desta matéria. A Repórter Brasil também tentou
contato com o produtor André Zucato por meio de suas empresas, mas não obteve
retorno. O espaço permanece aberto para manifestações futuras.
A JBS respondeu à
Repórter Brasil que seis fazendas cadastradas em nome de Claudecy Lemes estão
bloqueadas pela empresa, sem esclarecer, contudo, quais propriedades e a data
em que o bloqueio ocorreu. “Em todos os biomas, a Política de Compra
Responsável de Matéria-Prima da Companhia impede a aquisição de animais em
propriedades com desmatamento ilegal, terras indígenas, territórios quilombolas
ou unidades de conservação ambiental”, afirmou o frigorífico. Em relação ao
produtor André Zucato, a empresa afirmou que o pecuarista está inserido na
Plataforma Pecuária Transparente, sistema de monitoramento de compras da JBS, e
que está “fazendo o acompanhamento de seus fornecedores”. .
• Acordo descumprido
Entre 2015 e 2019, o
Ministério Público do Mato Grosso identificou 1.370 hectares desmatados
ilegalmente na Fazenda Soberana, uma das propriedades que fornecem gado para a
Fazenda Monique Vale. A área foi embargada pela Sema-MT em 2020. O pecuarista
assinou um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público se
comprometendo a não realizar novos desmatamentos na propriedade e a realizar o
pagamento de uma multa de R$ 7 milhões em indenização pelo dano ambiental. O
acordo, no entanto, foi descumprido de acordo com o órgão, e novos
desmatamentos foram registrados na investigação da Polícia Civil que detectou o
uso de agrotóxicos.
Ao todo, Lemes possui
6 fazendas com áreas embargadas pela Sema-MT. Além da Fazenda Soberana, 5.345
hectares foram desmatados ilegalmente nas fazendas Indiana e Santa Lúcia. Os
embargos nas propriedades estão vigentes desde 2022.
• Desmate químico
Amostras da vegetação,
solo, água e sedimentos coletadas durante a fiscalização na área devastada
identificaram a presença de quatro herbicidas: além do 2,4-D, foram detectados
os químicos imazamox; picloram e fluroxipir. Os agrotóxicos causam o desfolhamento
das árvores.
Um vídeo aéreo das
propriedades de Claudecy Lemes mostra milhares de árvores sem folhas, com
manchas cinzas, totalmente mortas. Depois do despejamento químico, o
proprietário pretendia cultivar capim e expandir sua criação de gado na área.
O desmatamento de
81.223 hectares ocorreu no Pantanal, reconhecido como Patrimônio da Humanidade
e Reserva da Biosfera pela Unesco.
A Repórter Brasil já
mostrou que fazendeiros utilizam a pulverização aérea de grandes quantidades de
agrotóxicos para acelerar o desmatamento.
Na última segunda
(15), o Ministério Público recorreu da decisão judicial que negou a prisão do
pecuarista. Até o momento, a Justiça proibiu o produtor de deixar o país,
determinou a apreensão de animais e o sequestro dos bens do pecuarista,
incluindo a administração das onze propriedades alvo do desmatamento químico.
• Compromissos da JBS
Maior produtora de
proteína do mundo, a JBS possui dois compromissos públicos antidesmatamento no
Brasil.
O frigorífico anuncia
que desde 2023 não compra gado de fornecedores diretos com desmatamento – legal
ou ilegal – identificado após 2008 na Amazônia. Até 2025, a empresa afirma que
aplicará a mesma regra para os fornecedores indiretos no bioma – ou seja, as
fazendas que encaminham animais para engorda nas propriedades que abastecem
diretamente a JBS.
Já para o Cerrado, o
frigorífico se compromete a zerar o desmatamento ilegal entre fornecedores até
2025, mas o desmatamento autorizado continuará sendo permitido. Ainda não há
critérios específicos para outros biomas, como o Pantanal.
* Monitoramento
Em relação ao
desmatamento na Amazônia, a JBS é signatária de dois compromissos públicos: o
Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) do Ministério Público Federal (MPF),
conhecido como TAC da Carne, e os Critérios Mínimos para Operação com Gado e
Produtos Bovinos em Escala Industrial no Bioma Amazônia, coordenado pela
organização não-governamental Greenpeace.
O TAC da Carne, criado
em 2009, estabelece que os frigoríficos devem se comprometer a não adquirir
gado de áreas desmatadas ilegalmente na Amazônia após 2008. Auditorias anuais
são realizadas pelo MPF e organizações parceiras para avaliar o cumprimento do
pacto. Na última auditoria, divulgada em outubro de 2023, 2% das compras da JBS
no Mato Grosso apresentaram inconformidades. Em agosto, a Repórter Brasil
mostrou que pecuaristas que arrendavam ilegalmente fazendas dentro da Terra
Indígena Marãiwatsédé, em Mato Grosso, escoaram o gado para outras propriedades
em seu nome ou de familiares que, por sua vez, forneciam animais para a JBS. A
situação é característica de uma manobra conhecida como “lavagem de gado”,
quando produtores encobrem a origem ilegal de seu rebanho, registrando a
passagem dos bois por uma fazenda que não tem impedimentos socioambientais para
vender ao frigorífico.
Fonte: Repórter Brasil
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