sexta-feira, 1 de março de 2024

Tilápias do mal: peixes exóticos estão invadindo mares e rios do Brasil

O Brasil é conhecido mundialmente por sua biodiversidade. Não é por menos. Só de peixes, já foram catalogadas mais de 3.500 espécies de água doce no país, o que corresponde a quase 10% da fauna global desses animais.

Entretanto, vivemos um paradoxo. Enquanto nossos rios têm uma diversidade gigantesca de espécies nativas, o que chega à mesa da grande maioria dos brasileiros são peixes exóticos, ou seja, originários de outros países. Nas prateleiras de supermercados e nos cardápios de restaurantes, invariavelmente o consumidor irá encontrar entre as principais e, talvez únicas opções, a tilápia e o salmão.

“Por que estamos investindo em poucas espécies exóticas se temos a maior diversidade de peixes de água doce do planeta? Por que priorizar algumas poucas espécies, que não são daqui, e comprar tecnologia de fora?”, questiona o biólogo Jean Vitule, professor de Ecologia do Departamento de Engenharia Ambiental da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

A resposta está na ponta da língua do presidente da Associação Brasileira da Piscicultura (Peixe BR), Francisco Medeiros. “A tilápia, o salmão, a carpa e o panga são os peixes, dentre as milhares de espécies globais, que o homem escolheu para cultivo.”

A tilápia, em particular, é a menina dos olhos desse setor — tanto no exterior como no Brasil, que atualmente é o quarto maior produtor mundial da espécie. Originária do Rio Nilo, na África, e introduzida no país na década de 1970, a espécie Oreochromis niloticus representou 65% das 860 mil toneladas de peixes produzidos em cativeiro em 2022 e 98% das exportações da piscicultura brasileira.

Entretanto, ao se tornar a principal aposta da aquicultura nacional, vários cientistas demonstram preocupação e alertam sobre a falta de fiscalização na criação de tilápia e os impactos de descartes ilegais e escapes dessa e outras espécies não nativas em nossas bacias, algo relatado com frequência nos últimos anos.

“A aquicultura destaca-se como o principal vetor de introdução de espécies não nativas no mundo. No Brasil, a tilapicultura é a atividade com maior expressão. Dentre as espécies cultivadas, a Oreochromis niloticus figura como uma das dez mais invasoras, com graves consequências ambientais”, afirma Almir Cunico, doutor em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais e coordenador do Laboratório de Ecologia, Pesca e Ictiologia da UFPR.

Desde 2010, Cunico participa de um estudo, juntamente com outros pesquisadores, como Vitule, que monitora a presença da tilápia na bacia hidrográfica do Alto Rio Paraná, estado onde está o maior polo de produção da espécie.

Num período de cinco anos, entre 2014 e 2019, se observou um aumento de 1.500% na captura de tilápias em riachos da região. Para eles, esse crescimento está diretamente relacionado ao salto na produção em tanques, onde esses peixes deveriam estar confinados.

“Nossos resultados sugerem a ocorrência de importantes falhas na evitação de escapes para ambientes naturais, caracterizando a atividade como importante fonte de propágulos [partes desses organismos, como ovos ou larvas, que podem gerar uma nova população], e contribuindo para a elevação do risco de invasão biológica da tilápia na bacia”, alerta Cunico.

·        Escapes em água doce e salgada 

Em um artigo científico divulgado na publicação Aquatic Ecology, em outubro de 2023, pesquisadores brasileiros relatam o registro de diversos cardumes de tilápias na costa brasileira, em pontos do litoral do Maranhão, Espírito Santo, São Paulo, Santa Catarina e Rio de Janeiro.

A espécie pertence à família dos ciclídeos, um dos últimos grupos marinhos que migraram para a água doce. Seus ancestrais viviam no mar e por isso, ela pode ter mais facilidade em se readaptar à água salgada.

“Não são registros pontuais”, salienta Ana Clara Franco, pesquisadora do Laboratório de Ictiologia Teórica e Aplicada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, e principal autora da análise.

Em nota, o Ibama, um dos órgãos a quem cabe a fiscalização do setor, afirmou que está atento ao aumento da presença da tilápia no litoral.

“Os registros de tilápia no mar são fruto do rompimento de lagunas costeiras, algumas com água salobra onde ela consegue sobreviver por ser uma espécie eurialina, capaz de suportar grandes variações de salinidade. Contudo, após o rompimento e chegada ao mar, cuja salinidade é bem mais elevada, as tilápias não sobrevivem por muito tempo e vão morrendo ao longo dos dias, portanto não é fator de preocupação do ponto de vista ambiental”, diz o Ibama.

Vitule argumenta que infelizmente o governo não faz monitoramento desses casos, que precisam ser levados mais a sério.

“Não há dados nem estudos de impacto ambiental sobre esses escapes. Mesmo mortas, essas tilápias mudam fluxos de matéria e nutrientes em escala local”, rebate o biólogo.

O fato é que os escapes estão ocorrendo. E não deveriam.

“O atual sistema de produção é arcaico e amador. Cavar buraco, encher de água e colocar peixes é feito desde 2 mil anos a.C.”, critica Cunico. “Ao continuar produzindo da forma como é feito hoje, existirá sempre alto impacto, seja com espécie exótica ou nativa. Há alta demanda de água e nenhum controle sanitário da água em que esses animais são produzidos”.

Se a presença da espécie africana no mar não parece preocupar o Ibama – ainda –, em rios a situação é diferente.

“Como uma espécie exótica, seus impactos na biodiversidade brasileira podem variar desde a diminuição das espécies nativas, via competição, até a introdução de doenças e o desequilíbrio da cadeia alimentar”, reconhece a equipe técnica do Ibama.

·        Não é só a tilápia: espécies nativas também podem ser invasoras

No ano passado, o Ibama lançou uma campanha entre pescadores para controlar a proliferação de peixes exóticos no Pantanal. As espécies não eram de outros países, e sim brasileiras, mas originárias de outras bacias hidrográficas.

Na lista estavam o tucunaré, tambaqui, tambacu, corvina e pirarara. A maioria é natural da Amazônia e acredita-se que são espécies encontradas nos rios de Mato Grosso do Sul devido a prováveis solturas ilegais ou escapes de tanques de empresas que criam peixes para comercialização – seja pela carne ou para atender à demanda da pesca esportiva.

Tanto o tucunaré quanto o pirarucu são predadores, ou seja, provocam um imenso desequilíbrio ambiental fora de seu habitat natural.

“O tucunaré está hoje em todas as bacias do Brasil. Foi introduzido inicialmente num reservatório do Rio de Janeiro, depois no Nordeste e no Sul”, diz Ana Clara.

Ela destaca o que aconteceu no Panamá há décadas com a introdução do tucunaré em outras bacias. “Houve extinção de várias espécies nativas. O que cabe na boca dele, ele come.” Naquele país, inclusive, detectou-se o aumento da malária, já que o tucunaré deu cabo do peixe que comia as larvas do mosquito transmissor da doença.

A ameaça do tucunaré também foi sentida na bacia do São Francisco e pesquisadores da Universidade Federal do Alagoas relatam preocupação com o as espécies exóticas ali.

“A tilápia é apenas a ponta do iceberg de um problema mais grave”, alerta Vitule. “A questão ambiental dos possíveis impactos negativos da aquicultura sobre os ecossistemas naturais está sendo ignorada de diversas formas. Não sou contra a aquicultura, mas como é feita no Brasil ela só visa a produtividade. Ninguém pensa no custo ambiental. Não há estudos de quantificação de escapes ou nitrogênio e fósforo jogados na água, ou outros impactos ecológicos, diretos ou indiretos, caros e morosos, e quem arca no final é a sociedade como um todo”.

·        Nativa ou exótica, nenhum escape é aceitável

De acordo com o Ministério da Pesca e Aquicultura, a escolha das espécies exóticas, como a tilápia, surgiu de uma demanda do setor. Embora China, Índia e Indonésia sejam os grandes da aquicultura mundial – setor que entre 1990 e 2020 teve um aumento de mais de 600% na produção –, o Brasil já se posiciona, ainda que bem atrás deles, entre os dez maiores quando se trata de peixes de água doce (excluindo moluscos, crustáceos e algas).

Mas para cultivar e comercializar as espécies que vendem bem, aquicultores precisam adquirir um pacote tecnológico para operar em larga escala que inclui a aquisição de matrizes genéticas das espécies. No caso brasileiro, esses pacotes vêm de outros países, assim como insumos, hormônios e antibióticos.

Um artigo científico divulgado em 2006, na publicação Biological Invasionsjá apontava que o Brasil é o país que cultiva a maior porcentagem de espécies de peixes de água doce exóticas, 87%. Na China, que lidera esse mercado, somente 5% delas não são nativas.

A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) admite o contrassenso de termos uma imensa diversidade de espécies nativas e priorizar as exóticas, mas destaca que há várias pesquisas em curso.

“Temos desenvolvido pesquisas com espécies nativas com bons resultados que começam a chegar aos produtores. No entanto, para o desenvolvimento de pacotes tecnológicos completos para cada espécie-alvo, há necessidade de investimentos financeiros consideráveis e em recursos humanos capacitados, assim como considerar o tempo de experimentação necessário para alcançar os resultados almejados”, reconhece Lícia Lundstedt, chefe-adjunta de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa Pesca e Aquicultura (Palmas-TO).

Para diminuir a dependência de espécies exóticas e da tecnologia vinda de fora, o que biólogos recomendam é o desenvolvimento de pacotes específicos para cada bacia hidrográfica do Brasil, permitindo o cultivo de peixes regionais, assim como o emprego de sistemas de aquicultura mais modernos para evitar escapes e impacto ambiental.

“Nenhum animal deveria escapar, até mesmo se forem nativos, uma vez que mesmo nativos usados na aquicultura vêm de poucas matrizes, o que ocasiona homogeneidade genética, caso se misturem com linhagem selvagens, o que inclusive é uma das principais causas de extinções de espécies e perda de biodiversidade”, reforça Cunico.

 

Fonte: Mongabay

 

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