'Último projeto da ditadura' mantém sob gestão da Defesa R$ 3 bi para
obras em 10 estados
Brasil, 1985. Últimos anos de Guerra Fria, generais
desgastados, pressões pela convocação de uma Assembleia Constituinte. Os
militares, que por duas décadas tiveram influência sobre o conjunto das
políticas de Estado, estavam prestes a ver suas atribuições reduzidas aos
assuntos de Defesa.
Sem forças para barrar a redemocratização, o alto
escalão das Forças Armadas tentou, por várias frentes, preservar ao menos parte
de seu poder fora da caserna.
Um dos projetos elaborados à época, com outra
finalidade, garante hoje que bilhões de reais para obras e atividades de
infraestrutura, logística, educação, saúde e assistência social em 783
municípios sejam alocados no Ministério da Defesa (MD). A pasta possui um
departamento específico para gestão dos repasses, coordenado por um general de
divisão nomeado por Jair Bolsonaro (PL). São 1.354 convênios em execução com
estados e municípios, com montante total de R$ 2,99 bilhões, e um vasto
histórico de irregularidades desde os anos 1980, que o MD não tem se mostrado
capaz de prevenir.
Esta é a primeira matéria de uma série sobre o
Programa Calha Norte (PCN), que descreve como seu propósito se modificou ao
longo dos anos, contribuindo para ampliar a presença das Forças Armadas na
Amazônia e legitimá-las regionalmente.
Segurança e desenvolvimento
A política da ditadura para a Amazônia baseou-se no
binômio "segurança" e "desenvolvimento", combinando
elementos de assistência à população civil com uma perspectiva de segurança
armada e defesa do território. A baixa densidade populacional, especialmente
próximo às fronteiras, era vista com preocupação pelos militares, que
incentivaram a ocupação e exploração dos bens da floresta por brasileiros de
outras regiões.
"A ideia de articular segurança e
desenvolvimento, com essas características, é da Guerra Fria, da guerra de
contrainsurgência. Foi um modelo que os franceses desenvolvem a partir das
experiências na Argélia e no Vietnã, e que os Estados Unidos – a partir do
Vietnã também, e do apoio que começam a dar a todas as forças
contrarrevolucionárias no mundo – aprendem e levam adiante nos anos 1960",
explica Thiago Rodrigues, professor no Instituto de Estudos Estratégicos da
Universidade Federal Fluminense (UFF).
Sob essa perspectiva, a ausência de desenvolvimento
e de integração da economia local tornaria a população amazônica suscetível a
propostas alternativas e anticapitalistas, o que justificaria maior presença
militar na região, com investimentos em infraestrutura e serviços básicos.
"Isso se conecta com as origens positivistas da República brasileira e com
a compreensão, desde o final do século 19, de que os militares brasileiros são
uma força 'civilizatória', e não apenas de segurança", acrescenta
Rodrigues. O professor lembra que, nesse contexto, "as noções de progresso
e desenvolvimento são sempre baseadas no parâmetro ocidental".
Em 1970, o projeto Radar da Amazônia (Radam)
coletou dados sobre recursos minerais, vegetação e uso da terra da Amazônia e
áreas adjacentes da região Nordeste, onde seria inaugurada em 1972 a Rodovia
Transamazônica (BR-230). A construção dessa estrada, assim como da BR-174, que
liga Manaus (AM) a Boa Vista (RR), da BR-163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém
(PA), e da hidrelétrica de Tucuruí, no Rio Tocantins, eram parte do Plano de
Integração Nacional do general Emílio Garrastazu Médici, que expulsou povos indígenas
e comunidades tradicionais e jamais obteve os resultados prometidos.
O projeto Calha Norte, por sua vez, nasce por meio
de um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) em 1985, já sob governo José
Sarney. O objetivo era enfrentar o "vazio de poder" entre os rios
Solimões e Amazonas e o traçado de fronteira entre o Oiapoque (AP) e Tabatinga
(AM), na tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Peru, dotando a região de
instalações militares e infraestrutura de transporte aéreo e terrestre, entre
outros serviços. A exposição de motivos foi assinada pelo general Rubens Bayma
Denys, então secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional e
ministro-chefe do Gabinete Militar.
"A Bertha Becker, renomada professora da UFRJ
[falecida em 2013], dizia que o Calha Norte era o último dos grandes projetos
da ditadura. Ele tinha essa marca, essa ideia de vivificar as fronteiras, e
também havia grande preocupação com a possibilidade de infiltração comunista na
região", observa Adriana Aparecida Marques, pesquisadora do Instituto de
Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ).
A Amazônia era vista pelos militares como uma área
isolada do centro econômico e político e, portanto, sujeita a dissidências e à
captura por agentes externos. Por meio de pelotões e unidades militares,
prometia-se estimular outras atividades econômicas nas áreas de fronteira, como
estratégia de ocupação.
"Não pega bem falar que é um projeto militar,
por isso a concepção é sempre de um projeto civil, mas com aplicação militar,
execução militar, ou que atenda os preceitos militares", analisa Samuel de
Jesus, professor do Grupo de Estudos de Política Internacional da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). "Essa é uma característica do Calha
Norte, mas também do Sistema de Vigilância da Amazônia [Sivam, a partir da
década de 1990] e do sistema de monitoramento terrestre", completa.
O projeto Calha Norte foi elaborado sob sigilo, sem
participação social. O relatório final do GTI é de dezembro de 1985, mas os
brasileiros – incluindo os moradores da região e o próprio Congresso Nacional –
só tomaram conhecimento meses depois, após o documento ser vazado por
servidores da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
• Retórica
anti-ONGs respaldou retomada do programa
Os dois primeiros anos foram dedicados à construção
e ampliação de quartéis, aeroportos e bases navais na tríplice fronteira. A
partir de 1989, o aporte de recursos caiu drasticamente, e só voltou a crescer
no final do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Um dos impulsos à retomada do projeto, rebatizado
em 1995 como Programa Calha Norte (PCN), baseou-se nos trabalhos de uma
Comissão Especial Mista do Congresso Nacional da qual fazia parte o então
deputado Jair Bolsonaro. O discurso anti-ONGs, que caracterizaria sua passagem
pela Presidência da República, já era explícito há quase 30 anos.
Bolsonaro dizia que os indígenas eram "massa
de manobra" de organizações internacionais e defendia maior presença do
Exército na Amazônia e redução da terra indígena Yanomami. No relatório final
da Comissão, o envio de militares à região é citado como "um ótimo
'anti-vírus' para qualquer ação de ONGs que queiram falar ao povo
indígena".
Autor do livro "Esperando os bárbaros:
geopolíticas da segurança no Brasil do século XXI", o geógrafo Licio
Monteiro explica que os militares se projetam no espaço localizando quais são
os elementos de ordem e de desordem. "Eles partem da ideia de que o Brasil
está ameaçado, de um lado, por traficantes de drogas, guerrilheiros; de outro,
por potências estrangeiras, pela cobiça sobre a Amazônia. Como não há exércitos
francês, inglês ou norte-americano na Amazônia, eles projetam essa ameaça a um
agente interno, e as ONGs são vistas nesse lugar de desordem, de cooptação de
indígenas", afirma Monteiro, que também é professor adjunto de Geografia
Política e Geopolítica da UFRJ. "O curioso é que, para eles, o garimpeiro,
mesmo que ilegal, ocupa outro lugar: o da ordem, do desenvolvimento".
Ao final dos trabalhos, os parlamentares pediram ao
governo FHC a elevação do orçamento do PCN – estimado em R$ 4 milhões em 1997,
o que incluía atividades tão diversas como a implantação de aeródromos,
construção de centrais de telecomunicações, distribuição de material escolar,
criação de polo madeireiro e de pesquisa de produtos farmacêuticos.
• A
Amazônia como laboratório
Após a criação do Ministério da Defesa, em 1999, em
substituição ao Estado-Maior das Forças Armadas e aos Ministérios Militares, o
PCN se desdobrou em duas vertentes: civil ("desenvolvimento
regional") e militar ("soberania e integridade territorial"). No
ano seguinte, o orçamento do programa saltou de R$ 1,2 milhão para R$ 24
milhões. O incremento coincidiu com o anúncio do Plano Colômbia, de combate ao
narcotráfico, com apoio dos Estados Unidos.
A realidade do PCN muda de patamar definitivamente
em 2003, quando passa a contar com recursos provenientes de emendas
parlamentares. Até hoje, deputados e senadores definem os municípios e as obras
a serem realizadas; ao programa, cabe "acompanhar a gestão do recurso
público, monitorar a execução dos projetos e aferir se os recursos estão sendo
aplicados conforme a finalidade aprovada".
Concebido para atender apenas áreas ao norte do rio
Amazonas, o PCN passou a abranger o sul da bacia em 2006, chegando a 32% do
território nacional – 194 municípios, dos quais 99 fora da faixa de fronteira
(150 km de largura ao longo das fronteiras terrestres). Nos dois primeiros
mandatos de Lula (PT), os investimentos anuais no programa aumentaram de R$
42,4 milhões para R$ 376,7 milhões.
"Municípios e estados passam a recorrer cada
vez mais ao Ministério da Defesa para ter recursos para asfaltamento de rua,
construção de escola, posto de saúde, etc", relembra o professor Licio
Monteiro. "Inicialmente, isso chegou a ser compreendido como uma forma de
'civilizar' a verba da Defesa. Depois, vendo o que aconteceu, entendemos que o
que houve foi a militarização da intervenção social, desempenhando, de certa
forma, um papel de 'relações públicas' das Forças Armadas dentro da Amazônia".
Além de obras, em territórios com infraestrutura
precária como São Gabriel da Cachoeira (AM) ou Santa Rosa do Purus (AC) a
vertente militar inclui ações cívico-sociais, por meio das quais as Forças
Armadas oferecem tratamento médico-odontológico, entre outros serviços. "É
uma forma ainda mais incisiva de ganhar legitimidade social no âmbito
amazônico. Ou seja, estar presente no território para dissuadir atores não
estatais", analisa Monteiro, acrescentando que a Amazônia funcionou como
"laboratório para um Brasil militarizado".
A legitimação da presença dos militares também
ocorre no interior das terras indígenas. "Em uma situação de grande
dificuldade, as pessoas tendem a valorizar quando alguém oferece socorro.
Comunidades indígenas diretamente beneficiadas por essas ações acabam
valorizando e fazendo uma avaliação pessoal da situação, e isso às vezes
dificulta uma leitura mais crítica e mais ampla sobre os impactos
gerados", relata Chico Gunther, integrante do Conselho Indigenista
Missionário (Cimi). Os impactos a que ele se refere serão detalhados na próxima
reportagem desta série.
Em 2013, com a reestruturação do MD, foi criado o
Departamento do Programa Calha Norte (DPCN), ao qual compete "planejar,
executar e coordenar as atividades relacionadas à execução orçamentária e
financeira do Programa"; "celebrar convênios e contratos de repasse
com Estados e Municípios para aplicação dos recursos"; "realizar
ações de acompanhamento, de apuração de danos ao erário e de ressarcimento dos
recursos da União, quando necessário, referentes aos convênios e aos contratos
de repasse"; e "planejar, celebrar e supervisionar as atividades
relacionadas a convênios realizados por meio de contrato de prestação de
serviços". O atual diretor do departamento, desde o primeiro ano do
governo Bolsonaro, é o general de divisão Ubiratan Poty.
Entre 2014 e 2016, o número de convênios vigentes
passou de 292 para 457, e os valores quase triplicaram – de R$ 170 milhões para
R$ 485 milhões. Hoje são 1.354 em execução, com montante total aproximado de R$
3 bilhões e um ritmo de assinaturas superior a um por dia desde 2016.
Jair Bolsonaro priorizou a liberação de emendas
para o Ministério da Defesa desde o início de seu governo. Já no primeiro
semestre de 2019, o capitão reformado garantiu R$ 150 milhões para a pasta, dos
quais 98% foram destinados ao PCN.
Thiago Rodrigues, professor da UFF e coordenador do
grupo de pesquisa Segurança e Defesa nas Américas, ressalta que a lógica
securitária se mantém preponderante na ocupação da região Norte do Brasil,
independentemente de governos.
"O fato de a faixa de atendimento do Calha
Norte estar se expandindo para fora da linha de fronteira mais imediata é só o
reforço de que esse modelo de segurança e desenvolvimento foi o escolhido pelo
Estado brasileiro para lidar com uma região de vastidão territorial, de baixa
densidade demográfica e de muita preocupação em termos de controle soberano do
território", analisa.
Ainda segundo o professor, embora tenham sido
evidenciados durante o governo Bolsonaro, o favorecimento a madeireiros e
mineradores ilegais e os conflitos com povos indígenas por conta da ocupação e
exploração desses territórios não são uma novidade na região. "A lógica
predatória e a lógica assistencialista, de desenvolvimento, coexistem no espaço
amazônico. Não é uma invenção de Bolsonaro. É uma sobreposição que sempre
existiu, mas que ficou mais evidente no governo Bolsonaro porque recebeu uma chancela
praticamente oficial", completa.
Ao todo, nos últimos 10 anos, o PCN investiu mais
de R$ 3 bilhões. Para 2023, a Lei Orçamentária Anual (LOA) previu R$ 529
milhões apenas para despesas da vertente civil. Na delimitação do escopo, o MD
elegeu as obras de engenharia como prioritárias.
"A pergunta é: por que não esses municípios da
Amazônia acessarem esses recursos por esses outros ministérios, sem fazer esse
lobby via Ministério da Defesa?", questiona o professor Licio Monteiro.
"Tem uma importância simbólica que esses recursos sejam acessados através
do MD. É uma forma do Exército e das Forças Armadas estabelecerem vínculos com
os municípios e estados", reforça o geógrafo.
Hoje, o PCN está presente nos 9 estados da Amazônia
Legal (Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e
parte do Maranhão) e em Mato Grosso do Sul, totalizando 783 municípios. A área
engloba mais de 80% da população indígena e quase 3/4 do território nacional.
Do ponto de vista militar, há 6 brigadas de
infantaria de selva, no Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima; um
Grupamento de Engenharia, com batalhões no Acre, Rondônia e Roraima,
encarregado da infraestrutura dos quartéis, construção e manutenção de
estradas; e 23 Pelotões Especiais de Fronteira (PEFs), com mais de mil
militares só na região conhecida como "Cabeça do Cachorro", na
fronteira com Colômbia e Venezuela.
• Driblando
o veto ao orçamento secreto
Hospitais, unidades militares, estradas, escolas,
obras de saneamento. O pretexto de "fixar o homem à terra" e povoar
as fronteiras é evocado há décadas para justificar repasses para ações que
ultrapassam a concepção clássica de Defesa por meio do Calha Norte. Sob a
presidência de Bolsonaro, esse leque de possibilidades permitiu ao programa
cumprir um papel menos nobre, na articulação entre o Executivo e o Legislativo.
Irrigado pelo orçamento secreto, o caixa do Calha
Norte dobrou de tamanho entre 2020 e 2021 e passou a atender particularmente
redutos eleitorais de aliados daquele governo. Conforme apuração do jornal O
Globo, de um pacote de R$ 588 milhões do orçamento secreto administrado pelo
Ministério da Defesa, R$ 401 milhões atenderam a 11 senadores, a maioria
governistas.
Uma investigação do portal Uol, publicada em
setembro de 2023, revelou como o governo Bolsonaro usou ao menos R$ 1 bilhão do
caixa da Defesa nos dois anos anteriores para beneficiar parlamentares aliados,
que direcionaram verbas a seus redutos eleitorais via Calha Norte. O general
Poty, diretor do DPCN, admitiu o caráter político da distribuição de verbas –
veja o que disseram ao Uol o MD e os parlamentares beneficiados.
Em 3 dezembro de 2021, um mês após decisão liminar
da ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber suspender o orçamento
secreto, o general Braga Netto (PL), à época ministro da Defesa, enviou ofício
ao Ministério da Economia solicitando incremento de recursos para o PCN. O
então ministro Paulo Guedes concedeu R$ 328 milhões, repassados ao programa
após aprovação do Congresso.
Na mesma semana, Weber voltaria a liberar o
orçamento secreto, desde que o Congresso divulgasse os nomes dos parlamentares
"padrinhos" das emendas.
Braga Netto deixou o cargo de ministro em março de
2022 para se candidatar a vice-presidente na chapa de Bolsonaro. Porém, o
mecanismo de repasses via Calha Norte se manteve na gestão seguinte, segundo a
reportagem do Uol. Novamente, a injeção de recursos no Calha Norte ocorreu em
reação à proibição do orçamento secreto pelo STF – desta vez em definitivo, em
19 de dezembro de 2022. Dez dias depois, às vésperas da posse de Lula, o
ministério de Guedes autorizou mais R$ 703 milhões para o PCN, também distribuídos
a parlamentares do Centrão. Os mais beneficiados foram Davi Alcolumbre (União
Brasil-AP), Mecias de Jesus (Republicanos-RR), Omar Aziz (PSD-AM) e Chico
Rodrigues (PSB-RR).
• Interesses
em jogo
"No governo Bolsonaro, sobretudo na gestão
Braga Netto, através das emendas do relator, houve praticamente uma
monopolização do orçamento para a Defesa", relembra o professor Samuel de
Jesus, da UFMS. "Isso é um projeto. Não é à toa que o MD teve nos últimos
anos um orçamento fabuloso, e por meio do Calha Norte esses recursos foram
distribuídos entre os deputados. Quando Bolsonaro deixa a distribuição de
verbas do orçamento para a Câmara, se estabelece um pacto, que também é parte
de um projeto de manutenção dos militares no poder", reforça.
Curiosamente, Bolsonaro mantém e radicaliza a
tendência de fortalecimento da vertente civil do programa, legado dos primeiros
governos PT. "A expansão do Calha Norte no último governo [Bolsonaro] não
está relacionada à expansão de unidades militares, mas a um processo de
militarização da política", interpreta a pesquisadora Adriana Marques.
"Quando os militares assumem tarefas que não
são da área de Defesa, não é porque os ministérios da Saúde ou os demais não
assumem suas responsabilidades. O que acontece é que eles têm suas
responsabilidades capturadas por outra instituição. Isso significa que mais
recursos são destinados às Forças Armadas, para que elas executem essas
tarefas", completa a professora da UFRJ.
O Brasil é o 17º país do mundo que mais gasta com a
área de Defesa – sem que haja conflito externo – e o 1º da América do Sul,
conforme levantamento do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de
Estocolmo. Em 2024, o valor do Orçamento destinado ao MD aumentará de R$ 122,6
bilhões para R$ 126,1 bilhões. A cada R$ 10 despendidos pelo MD, em média R$ 8
são referentes à folha de pagamento.
Um levantamento do jornal O Estado de S. Paulo
mostrou que 1,6 mil militares receberam mais de R$ 100 mil por mês no primeiro
semestre de 2022, incluindo o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. Em alguns
casos, como o do coronel James Magalhães Sato, lotado no Exército, o pagamento
líquido em um único mês superou os R$ 600 mil.
"A gente teve grande penetração securitária
interna na ditadura militar, com as Forças Armadas coordenando a repressão
interna, e depois da Constituição de 1988 há um deslocamento: a parte civil
aprofunda-se muito, e a parte de Defesa fica estagnada", contextualiza
Thiago Rodrigues, coordenador do grupo de pesquisa Segurança e Defesa nas
Américas da UFF. "Os grandes projetos do campo de Defesa – submarinos
nucleares, caças de fabricação brasileira, ou a ideia de ter porta-aviões,
blindados brasileiros, por exemplo – caminham a passos muito lentos ou são
interrompidos, enquanto as funções civis continuam crescendo."
As funções civis, nesse caso, são serviços básicos
que vão desde a abertura de poços artesianos, atendimento médico, vacinação,
transporte de pessoas em regiões remotas, até a construção de estradas, pontes,
viadutos, etc.
"É difícil justificar perante a opinião
pública grandes investimentos em Defesa se o Brasil não tem inimigos
internacionais. Então, com a ampliação dessas funções, as Forças Armadas ganham
um ponto de justificativa para sua própria existência, e ao mesmo tempo vão
alimentando interesses corporativos e individuais – não necessariamente por
conta de corrupção, mas pela própria existência de cargos, oportunidades de
promoção, deslocamentos territoriais que vão implicar em aumento de
salários", exemplifica o professor da UFF.
A sequência desta reportagem descreve impactos
socioambientais da presença militar na Amazônia, cita indícios de
irregularidades na execução de convênios e debate os limites do terceiro
governo Lula diante do desafio de prevenir ingerências das Forças Armadas sobre
a política.
• Outro
lado
Por meio de sua assessoria de imprensa, o
Ministério da Defesa informou à reportagem que o PCN evoluiu e ganhou
"importância, reconhecimento e consistência" ao longo das últimas
três décadas e meia.
Sobre o histórico de auditorias e investigações que
apontam problemas nas contas de convênios realizados por meio do Calha Norte
desde 1994, o MD afirma que "o PCN tem recebido com atenção as orientações
emanadas pela Corte de Contas, adotado as ações corretivas necessárias de sua
competência e buscado aperfeiçoar o seu papel de também contribuir, de forma
eficiente, para o cumprimento de políticas públicas de interesse social em sua
área de atuação".
Segundo o MD, a metodologia utilizada pelo DPCN
para acompanhamento e monitoramento da execução dos projetos “envolve a
realização de conferências, workshop, visitas 'in loco', exames e verificação
de documentos, visando avaliar a suficiência das estruturas, funções e
funcionamentos dos controles existentes". Em 2023, houve 539 vistorias
presenciais, "entre preliminares (antes do início da obra), intermediárias
(no decorrer da execução da obra) e finais (após a conclusão da obra)",
realizadas por equipes compostas por engenheiros, técnicos e analistas
administrativos.
O PCN também possui métodos de monitoramento à
distância, que incluem a análise de relatórios fotográficos georreferenciados e
a comunicação constante entre os engenheiros do programa e os engenheiros dos
convenentes. "Essas estratégias asseguram uma supervisão contínua e
abrangente dos projetos, garantindo que todas as obras sejam vistoriadas de
maneira eficaz", ressalta a assessoria de imprensa do MD.
"No que tange à capacidade técnico-operacional
e logística, o PCN conta, atualmente, com equipe de servidores e militares das
três Forças Armadas, engenheiros e técnicos, que compõem a força de trabalho do
Programa, proporcionando um acompanhamento correto e seguro da aplicação do
recurso federal. Indiscutível é o reconhecimento de que a capacidade de
realizar vistorias em todos os municípios de atuação dos PCN, localizados nas
áreas mais inóspitas do país, está relacionada ao competente apoio que as
equipes do Programa recebem das organizações militares da Marinha do Brasil,
Exército Brasileiro e da Força Aérea Brasileira", acrescenta a resposta
enviada à reportagem.
O MD observa ainda que "após a celebração de
convênios, a Portaria Interministerial nº 424/2016, no seu Art. 7º, dispõe que
cabe aos proponentes/convenentes a execução e fiscalização diária das obras,
incluindo a designação de um profissional habilitado no local da intervenção,
com a respectiva Anotação de Responsabilidade Técnica (ART)".
Em relação ao possível uso político do programa,
por meio das emendas parlamentares, o MD informa que "a execução de
qualquer projeto no âmbito do PCN é sempre respaldada em questões
técnico-jurídicas e operacionais. São os parlamentares, por meio de emendas,
que direcionam os recursos para projetos conduzidos pelo PCN".
Conforme a resposta enviada à reportagem, "a
integração do programa com as Forças Armadas resulta em capilaridades
logísticas decisivas, especialmente na execução de missões em regiões remotas e
de difícil acesso. O apoio logístico e os meios de transporte fornecidos pelas
Forças Armadas são essenciais para alcançar localidades sem acesso rodoviário,
possibilitando a implementação efetiva das políticas públicas, operando em
sinergia e agregando um valor único ao programa, especialmente na execução de
projetos em áreas desafiadoras".
Por fim, a assessoria de imprensa do MD salienta
que "o PCN atua em estrita conformidade com as diretrizes pertinentes,
inclusive aquelas que regulamentam o relacionamento das Forças Armadas com as
comunidades indígenas".
Fonte: Brasil de Fato
Nenhum comentário:
Postar um comentário