'Clube dos ricos': Brasil deveria se importar com relatórios da OCDE?
Recentemente, a Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento (OCDE) divulgou o relatório Economic Survey Brazil 2023, em que
destaca pontos positivos e negativos da política econômica e monetária
brasileira. Diplomaticamente recebido pelo Ministério da Fazenda, o documento
foi criticado por Lula, que convidou a OCDE a visitar o Brasil em 2024 e ver
como o país superará as suas expectativas.
Para a grande mídia, no entanto, o parecer da OCDE
representa erros no direcionamento da economia brasileira sob o comando do
governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. De acordo com especialistas
ouvidos pela Sputnik Brasil, isso não é nenhuma surpresa. "A mídia
ocidental, em sua maioria controlada por grandes grupos financeiros, é
hegemonicamente neoliberal e apresenta uma reflexão alinhada aos interesses do
Norte Global", afirmou João Victor Motta, doutorando do programa de
pós-graduação em relações internacionais San Tiago Dantas.
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O que é a OCDE?
Criada em em 1948, a Organização para a Cooperação
e Desenvolvimento Econômico é um fórum de países que seguem um alinhamento
relacionado a preceitos econômicos comuns. Também conhecida como "clube
dos ricos", para Ana Prestes, socióloga, analista internacional e doutora
em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a OCDE. "É
herdeira de um arcabouço econômico, lá de Bretton Woods, depois do pós-guerra,
que criou uma estrutura econômica mundial em torno do Fundo Monetário
Internacional (FMI) e do Banco Mundial, com empréstimos muito
draconianos."
Motta, contudo, ressalta a hipocrisia do fórum, que
em seus relatórios "apresenta soluções e propostas que são a antítese do
modo que possibilitou o desenvolvimento de seus países-membros". Pedro
Faria, economista, concorda com a opinião do especialista, afirmando ainda que
"a OCDE representa uma ideologia dominante nesses países, que nem sempre
eles mesmos implementam." "Por exemplo, os Estados Unidos hoje estão
tocando déficits públicos enormes, fazendo política industrial extremamente
ativa, impondo restrições ao livre comércio, e a OCDE está recomendando para a
gente o oposto." Do outro lado, aponta o economista, temos o caso da
Alemanha, que "está se autoinfligindo cortes de gastos gigantescos que
estão criando uma recessão desnecessária no país", se referindo ao limite
de custos do governo, que se vê impossibilitado de manter os preços de energia
sob controle.
Nesse contexto, Faria descreve a OCDE como uma
formadora de consenso ideológico pelo qual as decisões econômicas, financeiras
e monetárias são avaliadas. "A OCDE tenta criar esse ambiente ideológico e
tenta influenciar as decisões de investimento para que os fluxos de capital
disciplinem a atuação dos governos de forma atuem de acordo com o que eles
querem. Os fluxos de capital têm seus próprios interesses, então eles
disciplinam governos e têm um efeito relevante."
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Por que o Brasil ainda não faz parte da OCDE?
Sob o governo de Michel Temer, o Brasil formalizou
seu pedido de adesão à OCDE, mas, foi durante o governo do ex-presidente Jair
Bolsonaro que o país deu gás às reformas exigidas pela organização. Hoje, sob
mandato do presidente Lula, o Brasil deu uma freada no processo. Ainda assim,
de acordo com o Ministério da Economia, chefiado por Fernando Haddad, a entrada
no fórum econômico não foi rescindida.
Para Motta, entretanto, a entrada brasileira na
organização não traria nenhum benefício direto ao país, uma vez que sua agenda
econômica "não é adequada para os países do Sul Global", que,
conforme explica Faria, "têm uma realidade econômica completamente
distinta, outro parque produtivo e outra situação de posicionamento na divisão
global do trabalho". Segundo Prestes, o documento vem como uma forma da
OCDE tentar manter uma interlocução aberta frente a um governo que
"prioriza muito mais outras frentes de atuação na política externa. Ou de
tentar mostrar que uma avaliação ruim da OCDE pode ter impacto econômico para o
Brasil", avaliou.
Em vista disso, aponta Motta, a divulgação do
recente relatório da OCDE serve como uma forma de "imposição de agenda e
dos 'toolkits' de políticas públicas". "O tom do documento é uma
represália ao desinteresse brasileiro, mas também ao desalinhamento com a
agenda político e econômica da OCDE", ressaltou Motta. Já, de acordo com
Faria, o documento, cuja equipe econômica brasileira o recebeu de maneira
"diplomática", é uma "peça ideológica que propõe uma série de
recomendações de política pública, com o objetivo de influenciar tanto o debate
nacional, criar um consenso e condicionar os influxos de capital à essa
ideologia".
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OCDE, Sul Global e as alternativas
A OCDE, explica Motta, "assume um papel
neocolonial com os países do Sul". Dentro dessa perspectiva, os analistas
convidados expressaram a necessidade de se pensar em instrumentos e fóruns
alternativos, que atendam a necessidades específicas de países emergentes. Para
Motta e Prestes, essa organização é o BRICS, que possui seu próprio banco
internacional, o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD).
O grupo, conhecido como BRICS+ a partir de janeiro
de 2024, quando sua composição será estendida para 11 nações, possui uma agenda
"bem diferente" daqueles países que integram o núcleo da OCDE,
afirmou Ana Prestes. "É uma agenda de desdolarização, é uma agenda de
investimento em infraestrutura, é uma agenda de investimento também em
políticas sociais." Motta destaca ainda que o grupo apresenta menos
soluções cartilhas ideológicas prontas, sendo um grupo mais aberto e com
"mais espaço de diálogo e reflexão".
Essa contraposição entre a OCDE e o BRICS, para o
especialista em relações internacionais, retorna a histórica oposição entre
Norte e Sul, "desde o movimento dos países não alinhados e o
terceiro-mundismo, passando pelo G77 e mais recentemente com a retomada do
papel do BRICS." Na opinião de Faria, no entanto, uma alternativa a OCDE
deve ser capaz de "produzir relatórios baseados em outras
perspectivas". "Seria bom para justamente criar um ambiente
ideológico internacional de combate a ideologia que a OCDE, o FMI, o Banco
Mundial produzem."
Nesse sentido, o BRICS ainda se apresenta como
insuficiente para se contrapor ideologicamente no cenário global à OCDE.
"Estamos vendo o fortalecimento de instituições como o Novo Banco de
Desenvolvimento, que é conhecido como o Banco dos BRICS, que produz seus
relatórios", disse. "Mas a gente ainda não consegue produzir um
ambiente ideológico de geração de conhecimento que seja capaz de se contrapor a
esse que é criado pelas instituições de Bretton Woods e pela OCDE."
O economista destaca ainda a existência de
instituições brasileiras que produzem pesquisas, notas e relatórios
"baseadas em visões alternativas", como o Centro Celso Furtado, do
Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o
Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica do Instituto de Economia
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e o Centro de Pesquisa em
Macroeconomia das Desigualdades (Made) da Faculdade de Economia, Administração
e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo (USP).
Ø BRICS se
estabelece como contrapeso ao Ocidente em 2023, com expansão e discussão sobre
moeda comum
O ano de 2023 foi marcado por eventos importantes
no que diz respeito à atuação do BRICS. Entre alguns fatos passíveis de serem
listados está a adesão de novos membros, a ascensão de Dilma Rousseff à
presidência do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), conhecido como Banco do
BRICS, e o avanço na discussão em torno da criação de uma moeda única para o
grupo.
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Quais são os países que querem entrar no BRICS?
Para Marco Fernandes, mestre em história, doutor em
psicologia social, pesquisador do Instituto Tricontinental e coeditor do
Notícias da China Dongsheng, o evento mais marcante para o BRICS em 2023 foi o
interesse que mais de 20 países do Sul Global manifestaram de se tornarem
membros do grupo. "Isso foi inédito, quer dizer, nunca tinha havido
tamanha mobilização mundial em torno dos BRICS. Até a Grécia, que não é
exatamente um país do Sul [Global], [...] é a periferia, digamos, da Europa,
também pediu para entrar nos BRICS. E tivemos até aquele pedido um tanto
inconveniente do presidente francês [Emmanuel] Macron, que pediu também para
participar da cúpula dos BRICS, mas que evidentemente foi vetado."
Ele acrescenta que o segundo fato importante para o
BRICS em 2023, em sua avaliação, foi a expansão histórica do grupo. Nesse
contexto, ele cita que foi crucial o trabalho de Anil Sooklal, da África do
Sul, designado como Sherpa (o diplomata do país que é responsável por operar,
em nome do Ministério das Relações Exteriores e em nome da presidência, as
concertações do BRICS). "Imagina o trabalho que o Sherpa da África do Sul
[...] teve esse ano para fazer toda essa articulação, de dialogar com mais de
20 países que estavam se candidatando, e depois para todo o processo de escolha
dos seis novos países."
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Dilma Rousseff, a presidente do Banco do BRICS a partir de 2023
Ele também destaca a atuação de Dilma Rousseff à
frente do Banco do BRICS, afirmando que o fato dela ser indicada para o cargo
traz para o Brasil um destaque importante. "Ter uma líder global
brasileira num posto tão importante evidente que isso cacifa o Brasil, isso dá
capital político para o Brasil e, sobretudo, para o presidente Lula, que foi
quem tomou essa decisão [de indicar Dilma para o cargo]."
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O que é o Banco do BRICS?
Fernandes argumenta que Dilma "tem feito um
excelente trabalho, em vários níveis", em sua gestão como presidente do
Banco do BRICS, e cita como exemplo o fato de o banco voltar a ter debate
público. "O Banco do BRICS precisa pautar debates públicos sobre as
grandes questões estratégicas do mundo, assim como fazem, por exemplo, o Banco
Mundial. Quantas vezes a gente não abre na imprensa e lê: 'De acordo com o
relatório do Banco Mundial' sobre uma avaliação desde a inflação do ano até a
projeção de crescimento do ano que vem? O FMI é a mesma coisa. E todos, claro,
são instituições justamente de Bretton Woods e que representam, em grande
parte, os interesses dos países do Norte Global. Nós precisamos ter o banco [do
BRICS] também cumprindo esse papel do nosso lado, do lado do Sul", explica
o pesquisador.
Outra boa medida tomada por Dilma, na avaliação de
Fernandes, foi o fato de o Banco do BRICS voltar a captar recursos. "Antes
da presidenta chegar, [o banco] já estava há mais de um ano sem captar nenhum
recurso. E se um banco não capta recurso, não está fazendo muita coisa. O papel
do banco é captar recurso para poder garantir financiamento de projetos de
desenvolvimento, de infraestrutura no Sul Global".
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Qual o papel de Dilma no BRICS?
Ele acrescenta que desde que Dilma ascendeu à
presidência do Banco do BRICS já foram captados "o equivalente a US$ 6
bilhões de dólares (cerca de R$ 29 bilhões) neste ano", com expectativa de
chegar a US$ 7,5 bilhões (cerca de R$ 36 bilhões) nos próximos dias. "Ora,
se a gente pensar que o banco tinha captado o equivalente a US$ 33 bilhões
[cerca de R$ 160 bilhões] em oito anos, isso dá uma média de mais ou menos US$
4 bilhões [cerca de R$ 19 bilhões] por ano. Se eles chegarem a US$ 7,5 bilhões
até o final do ano, isso vai ser quase o dobro da média de captação que o banco
vinha fazendo."
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Qual o principal objetivo do BRICS?
Para Fernandes, o principal desafio para o Banco do
BRICS em 2024 será avançar no debate da desdolarização. Ele destaca que,
atualmente, a maioria dos recursos captados pelo banco é em dólar. "Para
vocês terem uma ideia, desses US$ 33 bilhões, somente o equivalente a US$ 5
bilhões [cerca de R$ 24 bilhões], mais ou menos, foram captados em yuans, a
moeda chinesa. O resto foi a maior parte em dólares e a outra parte em euro.
Ora, isso é um problema, porque justamente os países do Sul Global, quando
pegam dívidas em dólares, eles estão submetidos às variações cambiais e à
política monetária do banco Federal Reserve dos Estados Unidos", explica o
pesquisador. "Então isso é um problema. O banco precisa captar dinheiro
nas moedas locais. Essa é a meta para 2026, captar até 30% em moedas locais.
Mas, ainda assim, é pouco. Então o banco vai precisar avançar muito nisso nos
próximos anos", acrescenta.
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Qual seria a moeda do BRICS?
Segundo Fernandes, outro grande debate previsto
para o BRICS em 2024 será a criação de uma moeda única para o grupo. Primeiro,
ele explica que a moeda não será algo como o euro. "Não é uma moeda que
vai circular, não vou ter as notinhas aqui da moeda dos BRICS para comprar um
cafezinho ali na esquina." Ele destaca que a moeda serviria "como
referência para reserva entre os países do grupo, uma espécie de mecanismo em
comum".
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Presidência do BRICS em 2024 será da Rússia
Em 2024, o Brasil deveria assumir a presidência do
BRICS. Porém, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pediu ao grupo para que o
país não fosse alçado ao posto, já que em 2024 o Brasil também assumirá a
presidência do G20, o que traria um acúmulo de funções bastante complexo. Com
isso, foi decidida a antecipação da entrada da Rússia como presidente do BRICS.
Para Fernandes, essa decisão veio em um ótimo
momento, uma vez que a Rússia tem bastante interesse em buscar alternativas ao
dólar, por ter sido cancelada do sistema financeiro ocidental. Além disso, ele
aponta que a Rússia, em 2024, estará cumprindo um papel de liderança no Sul
Global por conta de seu embate com a Organização do Tratado do Atlântico Norte
(OTAN) na questão envolvendo o conflito ucraniano. "Então vai juntar a
fome com a vontade de comer. Acho que nada poderia ter sido melhor para o
BRICS, num ano de consolidar a expansão e de avançar nos debates sobre
alternativas ao dólar, do que a Rússia assumir a presidência nesse
momento."
Fernandes finaliza lamentando a decisão do novo
governo argentino de não dar andamento à adesão do país ao BRICS. Ele lembra
que o Brasil apoiou a entrada da Argentina no grupo desde o começo e empregou
todos os esforços para que fosse consolidada. "Se a Argentina não entrar,
o que eu ouvi de fontes internas do BRICS é que não vai haver uma substituição
imediata da Argentina. Isso seria muito ruim, porque a América Latina vai
perder uma vaga que a gente conquistou com tanto esforço. Infelizmente, a gente
faz parte do processo democrático, a gente precisa respeitar o resultado das
eleições, mas realmente, para os BRICS, foi uma tragédia a vitória de [Javier]
Milei."
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Quem fará parte do BRICS em 2024?
Em entrevista ao podcast Mundioka, Laerte
Apolinário, professor de relações internacionais da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), afirma que não houve muito critério na escolha
de alguns países específicos para a expansão do BRICS, mas que alguns
escolhidos trazem boas oportunidades, como a Etiópia. "Quando a gente olha
para a Etiópia em especial, a gente está falando de um país com uma grande
população. [...] a Etiópia é o segundo país mais populoso da África, com uma
população de mais de 120 milhões de habitantes. E é uma população composta
majoritariamente por jovens. O que quer dizer que o país tem boas perspectivas
de crescimento no futuro, em especial em termos de bônus demográfico." Ele
acrescenta que, "para além da questão demográfica, o país está localizado
em uma região bastante estratégica. Ele é visto não apenas como um ponto de
conexão dentro do continente africano, pela sua posição central ali em relação
ao continente, mas também pelo seu papel de ligação da África e com o Oriente
Médio."
Apolinário destaca ainda a questão econômica,
afirmando que a Etiópia "tem apresentado altas taxas de crescimento ao
longo dos últimos anos, muito acima da média das economias emergentes". "O
país tem apresentado um destaque na atração de indústrias intensivas em mão de
obra barata, com destaque para a indústria têxtil."
Outra importante adesão, na avaliação de
Apolinário, foi o Irã, país que se encontra às margens da liderança ocidental,
liderada pelos EUA e institucionalizada em organizações como a OTAN". "Nas
últimas décadas, o país tem sido alvo de muitas sanções por parte dos Estados
Unidos, especialmente, e também pelos demais países ocidentais que buscam fazer
pressão sobre o regime. Então, o Irã tem buscado [...] diversificar suas
parcerias internacionais, até como uma forma de evitar esse isolamento político
no sistema internacional. A gente observa que, ao longo dos últimos anos, o Irã
buscou se aproximar, em especial da China, que hoje é o seu maior parceiro
comercial, representando mais da metade das suas exportações, um terço das suas
importações, para além de outros países, como a Índia, como a Rússia."
Ele também destaca a entrada do Emirados Árabes no
grupo, e ressalta que o país é "um dos maiores produtores de petróleo e
gás natural do mundo, e é um grande exportador de petróleo". "A gente
está falando de um país que já faz parte do Banco do BRICS, então é um país que
já tem participado ao longo dos últimos anos de mecanismos do BRICS. E a
contribuição dos Emirados Árabes seria justamente essa, um país que pode
injetar a tão necessária liquidez para esse banco, para que ele possa ter uma
atuação mais expressiva no sistema financeiro internacional."
Questionado se 2023 foi um ano bom para o Brasil no
BRICS, o especialista afirma que sim, em médio e longo prazo. "Acredito
que essa expansão possa ser positiva, em especial em função do aumento do
volume de recursos, que vai permitir o maior peso relativo desse bloco em
negociações em diferentes esferas das relações internacionais", afirma
Apolinário. "Eu também destacaria a possibilidade de o Brasil intensificar
suas relações econômicas junto a esses países, em especial se apropriando
desses canais diplomáticos, tendo em vista objetivos mais amplos da política
externa brasileira, com destaque para o apoio a um assento no Conselho de
Segurança [da ONU], para além de candidaturas em diferentes organizações
internacionais", conclui o especialista.
Fonte: Sputnik Brasil

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