terça-feira, 26 de dezembro de 2023

'Clube dos ricos': Brasil deveria se importar com relatórios da OCDE?

Recentemente, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE) divulgou o relatório Economic Survey Brazil 2023, em que destaca pontos positivos e negativos da política econômica e monetária brasileira. Diplomaticamente recebido pelo Ministério da Fazenda, o documento foi criticado por Lula, que convidou a OCDE a visitar o Brasil em 2024 e ver como o país superará as suas expectativas.

Para a grande mídia, no entanto, o parecer da OCDE representa erros no direcionamento da economia brasileira sob o comando do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. De acordo com especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil, isso não é nenhuma surpresa. "A mídia ocidental, em sua maioria controlada por grandes grupos financeiros, é hegemonicamente neoliberal e apresenta uma reflexão alinhada aos interesses do Norte Global", afirmou João Victor Motta, doutorando do programa de pós-graduação em relações internacionais San Tiago Dantas.

·        O que é a OCDE?

Criada em em 1948, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico é um fórum de países que seguem um alinhamento relacionado a preceitos econômicos comuns. Também conhecida como "clube dos ricos", para Ana Prestes, socióloga, analista internacional e doutora em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a OCDE. "É herdeira de um arcabouço econômico, lá de Bretton Woods, depois do pós-guerra, que criou uma estrutura econômica mundial em torno do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, com empréstimos muito draconianos."

Motta, contudo, ressalta a hipocrisia do fórum, que em seus relatórios "apresenta soluções e propostas que são a antítese do modo que possibilitou o desenvolvimento de seus países-membros". Pedro Faria, economista, concorda com a opinião do especialista, afirmando ainda que "a OCDE representa uma ideologia dominante nesses países, que nem sempre eles mesmos implementam." "Por exemplo, os Estados Unidos hoje estão tocando déficits públicos enormes, fazendo política industrial extremamente ativa, impondo restrições ao livre comércio, e a OCDE está recomendando para a gente o oposto." Do outro lado, aponta o economista, temos o caso da Alemanha, que "está se autoinfligindo cortes de gastos gigantescos que estão criando uma recessão desnecessária no país", se referindo ao limite de custos do governo, que se vê impossibilitado de manter os preços de energia sob controle.

Nesse contexto, Faria descreve a OCDE como uma formadora de consenso ideológico pelo qual as decisões econômicas, financeiras e monetárias são avaliadas. "A OCDE tenta criar esse ambiente ideológico e tenta influenciar as decisões de investimento para que os fluxos de capital disciplinem a atuação dos governos de forma atuem de acordo com o que eles querem. Os fluxos de capital têm seus próprios interesses, então eles disciplinam governos e têm um efeito relevante."

·        Por que o Brasil ainda não faz parte da OCDE?

Sob o governo de Michel Temer, o Brasil formalizou seu pedido de adesão à OCDE, mas, foi durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro que o país deu gás às reformas exigidas pela organização. Hoje, sob mandato do presidente Lula, o Brasil deu uma freada no processo. Ainda assim, de acordo com o Ministério da Economia, chefiado por Fernando Haddad, a entrada no fórum econômico não foi rescindida.

Para Motta, entretanto, a entrada brasileira na organização não traria nenhum benefício direto ao país, uma vez que sua agenda econômica "não é adequada para os países do Sul Global", que, conforme explica Faria, "têm uma realidade econômica completamente distinta, outro parque produtivo e outra situação de posicionamento na divisão global do trabalho". Segundo Prestes, o documento vem como uma forma da OCDE tentar manter uma interlocução aberta frente a um governo que "prioriza muito mais outras frentes de atuação na política externa. Ou de tentar mostrar que uma avaliação ruim da OCDE pode ter impacto econômico para o Brasil", avaliou.

Em vista disso, aponta Motta, a divulgação do recente relatório da OCDE serve como uma forma de "imposição de agenda e dos 'toolkits' de políticas públicas". "O tom do documento é uma represália ao desinteresse brasileiro, mas também ao desalinhamento com a agenda político e econômica da OCDE", ressaltou Motta. Já, de acordo com Faria, o documento, cuja equipe econômica brasileira o recebeu de maneira "diplomática", é uma "peça ideológica que propõe uma série de recomendações de política pública, com o objetivo de influenciar tanto o debate nacional, criar um consenso e condicionar os influxos de capital à essa ideologia".

·        OCDE, Sul Global e as alternativas

A OCDE, explica Motta, "assume um papel neocolonial com os países do Sul". Dentro dessa perspectiva, os analistas convidados expressaram a necessidade de se pensar em instrumentos e fóruns alternativos, que atendam a necessidades específicas de países emergentes. Para Motta e Prestes, essa organização é o BRICS, que possui seu próprio banco internacional, o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD).

O grupo, conhecido como BRICS+ a partir de janeiro de 2024, quando sua composição será estendida para 11 nações, possui uma agenda "bem diferente" daqueles países que integram o núcleo da OCDE, afirmou Ana Prestes. "É uma agenda de desdolarização, é uma agenda de investimento em infraestrutura, é uma agenda de investimento também em políticas sociais." Motta destaca ainda que o grupo apresenta menos soluções cartilhas ideológicas prontas, sendo um grupo mais aberto e com "mais espaço de diálogo e reflexão".

Essa contraposição entre a OCDE e o BRICS, para o especialista em relações internacionais, retorna a histórica oposição entre Norte e Sul, "desde o movimento dos países não alinhados e o terceiro-mundismo, passando pelo G77 e mais recentemente com a retomada do papel do BRICS." Na opinião de Faria, no entanto, uma alternativa a OCDE deve ser capaz de "produzir relatórios baseados em outras perspectivas". "Seria bom para justamente criar um ambiente ideológico internacional de combate a ideologia que a OCDE, o FMI, o Banco Mundial produzem."

Nesse sentido, o BRICS ainda se apresenta como insuficiente para se contrapor ideologicamente no cenário global à OCDE. "Estamos vendo o fortalecimento de instituições como o Novo Banco de Desenvolvimento, que é conhecido como o Banco dos BRICS, que produz seus relatórios", disse. "Mas a gente ainda não consegue produzir um ambiente ideológico de geração de conhecimento que seja capaz de se contrapor a esse que é criado pelas instituições de Bretton Woods e pela OCDE."

O economista destaca ainda a existência de instituições brasileiras que produzem pesquisas, notas e relatórios "baseadas em visões alternativas", como o Centro Celso Furtado, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e o Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made) da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo (USP).

 

Ø  BRICS se estabelece como contrapeso ao Ocidente em 2023, com expansão e discussão sobre moeda comum

 

O ano de 2023 foi marcado por eventos importantes no que diz respeito à atuação do BRICS. Entre alguns fatos passíveis de serem listados está a adesão de novos membros, a ascensão de Dilma Rousseff à presidência do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), conhecido como Banco do BRICS, e o avanço na discussão em torno da criação de uma moeda única para o grupo.

·        Quais são os países que querem entrar no BRICS?

Para Marco Fernandes, mestre em história, doutor em psicologia social, pesquisador do Instituto Tricontinental e coeditor do Notícias da China Dongsheng, o evento mais marcante para o BRICS em 2023 foi o interesse que mais de 20 países do Sul Global manifestaram de se tornarem membros do grupo. "Isso foi inédito, quer dizer, nunca tinha havido tamanha mobilização mundial em torno dos BRICS. Até a Grécia, que não é exatamente um país do Sul [Global], [...] é a periferia, digamos, da Europa, também pediu para entrar nos BRICS. E tivemos até aquele pedido um tanto inconveniente do presidente francês [Emmanuel] Macron, que pediu também para participar da cúpula dos BRICS, mas que evidentemente foi vetado."

Ele acrescenta que o segundo fato importante para o BRICS em 2023, em sua avaliação, foi a expansão histórica do grupo. Nesse contexto, ele cita que foi crucial o trabalho de Anil Sooklal, da África do Sul, designado como Sherpa (o diplomata do país que é responsável por operar, em nome do Ministério das Relações Exteriores e em nome da presidência, as concertações do BRICS). "Imagina o trabalho que o Sherpa da África do Sul [...] teve esse ano para fazer toda essa articulação, de dialogar com mais de 20 países que estavam se candidatando, e depois para todo o processo de escolha dos seis novos países."

·        Dilma Rousseff, a presidente do Banco do BRICS a partir de 2023

Ele também destaca a atuação de Dilma Rousseff à frente do Banco do BRICS, afirmando que o fato dela ser indicada para o cargo traz para o Brasil um destaque importante. "Ter uma líder global brasileira num posto tão importante evidente que isso cacifa o Brasil, isso dá capital político para o Brasil e, sobretudo, para o presidente Lula, que foi quem tomou essa decisão [de indicar Dilma para o cargo]."

·        O que é o Banco do BRICS?

Fernandes argumenta que Dilma "tem feito um excelente trabalho, em vários níveis", em sua gestão como presidente do Banco do BRICS, e cita como exemplo o fato de o banco voltar a ter debate público. "O Banco do BRICS precisa pautar debates públicos sobre as grandes questões estratégicas do mundo, assim como fazem, por exemplo, o Banco Mundial. Quantas vezes a gente não abre na imprensa e lê: 'De acordo com o relatório do Banco Mundial' sobre uma avaliação desde a inflação do ano até a projeção de crescimento do ano que vem? O FMI é a mesma coisa. E todos, claro, são instituições justamente de Bretton Woods e que representam, em grande parte, os interesses dos países do Norte Global. Nós precisamos ter o banco [do BRICS] também cumprindo esse papel do nosso lado, do lado do Sul", explica o pesquisador.

Outra boa medida tomada por Dilma, na avaliação de Fernandes, foi o fato de o Banco do BRICS voltar a captar recursos. "Antes da presidenta chegar, [o banco] já estava há mais de um ano sem captar nenhum recurso. E se um banco não capta recurso, não está fazendo muita coisa. O papel do banco é captar recurso para poder garantir financiamento de projetos de desenvolvimento, de infraestrutura no Sul Global".

·        Qual o papel de Dilma no BRICS?

Ele acrescenta que desde que Dilma ascendeu à presidência do Banco do BRICS já foram captados "o equivalente a US$ 6 bilhões de dólares (cerca de R$ 29 bilhões) neste ano", com expectativa de chegar a US$ 7,5 bilhões (cerca de R$ 36 bilhões) nos próximos dias. "Ora, se a gente pensar que o banco tinha captado o equivalente a US$ 33 bilhões [cerca de R$ 160 bilhões] em oito anos, isso dá uma média de mais ou menos US$ 4 bilhões [cerca de R$ 19 bilhões] por ano. Se eles chegarem a US$ 7,5 bilhões até o final do ano, isso vai ser quase o dobro da média de captação que o banco vinha fazendo."

·        Qual o principal objetivo do BRICS?

Para Fernandes, o principal desafio para o Banco do BRICS em 2024 será avançar no debate da desdolarização. Ele destaca que, atualmente, a maioria dos recursos captados pelo banco é em dólar. "Para vocês terem uma ideia, desses US$ 33 bilhões, somente o equivalente a US$ 5 bilhões [cerca de R$ 24 bilhões], mais ou menos, foram captados em yuans, a moeda chinesa. O resto foi a maior parte em dólares e a outra parte em euro. Ora, isso é um problema, porque justamente os países do Sul Global, quando pegam dívidas em dólares, eles estão submetidos às variações cambiais e à política monetária do banco Federal Reserve dos Estados Unidos", explica o pesquisador. "Então isso é um problema. O banco precisa captar dinheiro nas moedas locais. Essa é a meta para 2026, captar até 30% em moedas locais. Mas, ainda assim, é pouco. Então o banco vai precisar avançar muito nisso nos próximos anos", acrescenta.

·        Qual seria a moeda do BRICS?

Segundo Fernandes, outro grande debate previsto para o BRICS em 2024 será a criação de uma moeda única para o grupo. Primeiro, ele explica que a moeda não será algo como o euro. "Não é uma moeda que vai circular, não vou ter as notinhas aqui da moeda dos BRICS para comprar um cafezinho ali na esquina." Ele destaca que a moeda serviria "como referência para reserva entre os países do grupo, uma espécie de mecanismo em comum".

·        Presidência do BRICS em 2024 será da Rússia

Em 2024, o Brasil deveria assumir a presidência do BRICS. Porém, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pediu ao grupo para que o país não fosse alçado ao posto, já que em 2024 o Brasil também assumirá a presidência do G20, o que traria um acúmulo de funções bastante complexo. Com isso, foi decidida a antecipação da entrada da Rússia como presidente do BRICS.

Para Fernandes, essa decisão veio em um ótimo momento, uma vez que a Rússia tem bastante interesse em buscar alternativas ao dólar, por ter sido cancelada do sistema financeiro ocidental. Além disso, ele aponta que a Rússia, em 2024, estará cumprindo um papel de liderança no Sul Global por conta de seu embate com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) na questão envolvendo o conflito ucraniano. "Então vai juntar a fome com a vontade de comer. Acho que nada poderia ter sido melhor para o BRICS, num ano de consolidar a expansão e de avançar nos debates sobre alternativas ao dólar, do que a Rússia assumir a presidência nesse momento."

Fernandes finaliza lamentando a decisão do novo governo argentino de não dar andamento à adesão do país ao BRICS. Ele lembra que o Brasil apoiou a entrada da Argentina no grupo desde o começo e empregou todos os esforços para que fosse consolidada. "Se a Argentina não entrar, o que eu ouvi de fontes internas do BRICS é que não vai haver uma substituição imediata da Argentina. Isso seria muito ruim, porque a América Latina vai perder uma vaga que a gente conquistou com tanto esforço. Infelizmente, a gente faz parte do processo democrático, a gente precisa respeitar o resultado das eleições, mas realmente, para os BRICS, foi uma tragédia a vitória de [Javier] Milei."

·        Quem fará parte do BRICS em 2024?

Em entrevista ao podcast Mundioka, Laerte Apolinário, professor de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), afirma que não houve muito critério na escolha de alguns países específicos para a expansão do BRICS, mas que alguns escolhidos trazem boas oportunidades, como a Etiópia. "Quando a gente olha para a Etiópia em especial, a gente está falando de um país com uma grande população. [...] a Etiópia é o segundo país mais populoso da África, com uma população de mais de 120 milhões de habitantes. E é uma população composta majoritariamente por jovens. O que quer dizer que o país tem boas perspectivas de crescimento no futuro, em especial em termos de bônus demográfico." Ele acrescenta que, "para além da questão demográfica, o país está localizado em uma região bastante estratégica. Ele é visto não apenas como um ponto de conexão dentro do continente africano, pela sua posição central ali em relação ao continente, mas também pelo seu papel de ligação da África e com o Oriente Médio."

Apolinário destaca ainda a questão econômica, afirmando que a Etiópia "tem apresentado altas taxas de crescimento ao longo dos últimos anos, muito acima da média das economias emergentes". "O país tem apresentado um destaque na atração de indústrias intensivas em mão de obra barata, com destaque para a indústria têxtil."

Outra importante adesão, na avaliação de Apolinário, foi o Irã, país que se encontra às margens da liderança ocidental, liderada pelos EUA e institucionalizada em organizações como a OTAN". "Nas últimas décadas, o país tem sido alvo de muitas sanções por parte dos Estados Unidos, especialmente, e também pelos demais países ocidentais que buscam fazer pressão sobre o regime. Então, o Irã tem buscado [...] diversificar suas parcerias internacionais, até como uma forma de evitar esse isolamento político no sistema internacional. A gente observa que, ao longo dos últimos anos, o Irã buscou se aproximar, em especial da China, que hoje é o seu maior parceiro comercial, representando mais da metade das suas exportações, um terço das suas importações, para além de outros países, como a Índia, como a Rússia."

Ele também destaca a entrada do Emirados Árabes no grupo, e ressalta que o país é "um dos maiores produtores de petróleo e gás natural do mundo, e é um grande exportador de petróleo". "A gente está falando de um país que já faz parte do Banco do BRICS, então é um país que já tem participado ao longo dos últimos anos de mecanismos do BRICS. E a contribuição dos Emirados Árabes seria justamente essa, um país que pode injetar a tão necessária liquidez para esse banco, para que ele possa ter uma atuação mais expressiva no sistema financeiro internacional."

Questionado se 2023 foi um ano bom para o Brasil no BRICS, o especialista afirma que sim, em médio e longo prazo. "Acredito que essa expansão possa ser positiva, em especial em função do aumento do volume de recursos, que vai permitir o maior peso relativo desse bloco em negociações em diferentes esferas das relações internacionais", afirma Apolinário. "Eu também destacaria a possibilidade de o Brasil intensificar suas relações econômicas junto a esses países, em especial se apropriando desses canais diplomáticos, tendo em vista objetivos mais amplos da política externa brasileira, com destaque para o apoio a um assento no Conselho de Segurança [da ONU], para além de candidaturas em diferentes organizações internacionais", conclui o especialista.

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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