Por que casos de dengue estão se multiplicando na Europa
Se algum de nós procurasse informações sobre
a dengue nos
livros ou na internet, muito provavelmente a encontraríamos classificada dentro
do grupo conhecido como doenças tropicais e subtropicais. E, com a mesma
probabilidade, nos últimos meses, teríamos nos deparado com notícias sobre um
dos picos
históricos mais intensos da epidemia (tanto em número de casos quanto em
mortes) já registrados no Peru, que declarou estado de emergência na maioria de
suas regiões.
Com climas subtropicais e tropicais, o país
sul-americano sofre uma intensificação significativa da circulação do vírus ano
após ano. O mesmo acontece no Brasil, que liderou o número de casos de dengue
no mundo, com 2,9 milhões registrados em 2023, segundo a Organização Mundial da
Saúde (OMS). Os casos são mais da metade dos 5 milhões registrados
mundialmente.
A partir de fevereiro, o Brasil terá o primeiro
imunizante contra a dengue oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A Qdenga
(TAK-003) é um imunizante contra a dengue desenvolvido pelo laboratório japonês
Takeda Pharma. O registro foi aprovado pela Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) em março deste ano.
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Recorde casos em 2023
Teríamos encontrado também recentemente notícias
sobre a doença fora da América Latina: registros de novos casos autóctones (não
importados) nos Estados Unidos, Itália ou França, assim como o surgimento dos
primeiros durante anos na Espanha: nas regiões da Catalunha, Ibiza etc. No ano
passado, foram registrados 2,8 milhões de casos de
dengue só no continente americano, o que representa um número quase duas
vezes maior em relação às 1,2 milhão de notificações registradas em 2021.
Embora a doença incida, majoritariamente, em áreas
tropicais e subtropicais da América, Ásia e África, nos últimos anos tem sido
observado um aumento significativo em áreas mais temperadas, como a Europa. E
principalmente no sul do continente, onde a doença está presente desde a década
de 1970.
Segundo dados do Centro Europeu de Prevenção e
Controle de Doenças (ECDC, por sua sigla em inglês), foram notificados 71 casos
de dengue adquirida localmente em 2022 na parte continental da União Europeia. Isso
representa um aumento de nada menos que 20% em relação a 2021. Na última
sexta-feira (22/12), a OMS chamou atenção para o fato de que a dengue tem se
espalhado para países onde historicamente não circulava.
O que está acontecendo?
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Picadas com consequências graves
A dengue é uma doença causada por um dos quatro
sorotipos (DENV1, DENV2, DENV3 e DENV4) do vírus da dengue (DENV). Esse
patógeno pertence à família Flaviviridae e foi relatado que os
quatro sorotipos podem circular juntos e causar o mesmo quadro clínico.
A dengue
hemorrágica merece atenção especial, pois geralmente é desencadeada após
exposição a um desses sorotipos de vírus após ter sido previamente exposto a
outro.
O DENV é transmitido pela picada de mosquitos do
gênero Aedes infectados, principalmente Aedes aegypti e, em menor extensão,
Aedes albopictus. Esses insetos, que se alimentam de sangue humano e podem
transmitir o vírus pela saliva, são encontrados em áreas tropicais e
subtropicais de todo o mundo.
Embora, como apontamos, tenham se espalhado para
áreas mais temperadas nas últimas décadas. Assim, a transmissão do vírus segue
um ciclo humano-mosquito-humano. Quando uma fêmea do mosquito Aedes infectada
com DENV pica uma pessoa, ela introduz o DENV e inicia o ciclo dentro do ser
humano. O período de incubação costuma ser de 3 a 10 dias, embora varie
dependendo de fatores ambientais, como a temperatura.
A doença começa então a se desenvolver. Normalmente
começa apresentando febre, dor de cabeça, desconforto muscular, dores nas
articulações, náuseas e vômitos. Em casos graves, pode causar sangramento,
falência de órgãos e morte.
Os mosquitos Aedes se reproduzem na água parada,
como recipientes com água, piscinas não utilizadas, pneus velhos etc. Portanto,
nos locais onde há ausência de vacinas e tratamentos eficazes, é importante
eliminar os criadouros do mosquito para evitar a transmissão da doença.
Mas não só a dengue, já que esses insetos também
atuam como vetores de transmissão da zika e da chikungunya.
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Mudanças climáticas e globalização
As mudanças climáticas são um dos fatores que
contribuem para o aumento dos casos de dengue, tanto na América como na Europa.
O aumento das temperaturas e a duração da temporada de mosquitos (devido aos
verões mais quentes e longos) podem favorecer a proliferação do Aedes aegypti.
Esses mosquitos são capazes de sobreviver em
temperaturas acima de 10 graus Celsius e, com o aquecimento global, podem
expandir seu alcance para áreas mais temperadas. E, ao provocar alterações nos
padrões de chuvas, as mudanças climáticas aumentam o volume de água parada,
habitat ideal para a sua reprodução.
Além disso, o aumento das viagens e do comércio
internacional (as pessoas que viajam para zonas com dengue podem contrair a
infecção e transmiti-la quando voltam à Europa). O crescimento das cidades
também criam condições favoráveis à reprodução destes mosquitos.
Estaremos no caminho para que a Europa se torne uma
região endêmica?
Com esse panorama, a possibilidade de a dengue se
tornar uma doença endêmica no Velho Continente é um cenário real: as condições
ambientais — mudanças climáticas e globalização — estão cada vez mais
favoráveis à atividade do vetor e à replicação do vírus nele. Além disso, esses
são fatores que atualmente estão fora do controle humano.
Se a dengue se tornar uma doença endêmica na
Europa, poderá ter um impacto significativo na saúde pública. Por essa razão,
as autoridades de saúde europeias já estão trabalhando para prevenir a sua
propagação com medidas sobre fatores que podem ser controlados, como a
vigilância de casos, a educação sobre como prevenir picadas de mosquitos e a
aplicação de medidas críticas de controle na população de mosquitos a partir do
momento em que sua presença é detectada. Algo que, por exemplo, tem acontecido
com bastante frequência na ilha espanhola de Tenerife.
Todo cuidado é pouco.
Ø Como
mosquito egípcio chegou ao Brasil e matou 10 mil pessoas
Popularmente conhecido como mosquito da dengue,
o Aedes aegypti há mais de um século é o mais temido
"inimigo público" do Brasil. A espécie, originária do Egito, é
responsável pela transmissão das arboviroses urbanas mais comuns do país:
dengue, chikungunya e zika. Seu tamanho inferior a um centímetro e suas listras
brancas no tronco, cabeça e pernas parecem esconder sua alta capacidade de
transmissão de doenças. O que pouca gente sabe é que nas últimas três décadas
o Aedes aegypti foi responsável pelas mortes de 10 mil
brasileiros.
Levantamento feito pelo Ministério da Saúde a
pedido da BBC News Brasil aponta que desde 1990, 10.096 brasileiros morreram
após serem picados pelo mosquito. Foram 9.186 mortes por dengue, 875 por
chikungunya e 35 por zika. Sem contar as milhões de pessoas que são
contaminadas todos os anos pelo mosquito e conseguem se recuperar. Para ter uma
ideia, somente em 2022, foram registrados 1.450.270 casos e 1.017 mortes de
dengue no Brasil – um recorde, desde que os óbitos pela doença passaram a serem
registrados oficialmente.
Cientificamente, o Aedes aegypti foi
descrito pela primeira vez, em 1762, quando foi denominado Culex
aegypti - culex de 'mosquito' e aegypti em referência a sua região de
origem: o Egito. Contudo, em 1818, pesquisadores notarem que a espécie tinha
características morfológicas e biológicas semelhantes às de espécie do
gênero Aedes. Com isso, o nome passou a ser Aedes aegypti.
No Brasil, estudos apontam que a chegada do
mosquito transmissor da dengue, chikungunya, zika e febre amarela urbana
ocorreu entre os séculos 17 e 19, através de navios que traziam pessoas do
continente africano para serem escravizadas na América Latina. A capacidade dos
ovos da espécie de resistir até um ano sem contato com água ajudou para que
rapidamente o mosquito do Egito encontrasse ambiente favorável para se
reproduzir nos navios e, em seguida, no território brasileiro.
Tamara Nunes de Lima Camara, pesquisadora da
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que
apesar do primeiro caso oficial de dengue no Brasil ser de 1981, existem
evidências que, desde o início do século 19, o Aedes aegypti já
era um problema no país. "Existem relatos de epidemias de doença com
sintomas similares à dengue em 1916, em São Paulo (SP); e em 1923, em Niterói
(RJ), mas sem diagnóstico laboratorial, apenas clínico. A primeira confirmação
em laboratório de dengue no país somente ocorreu em 1981, a partir de uma
epidemia na cidade de Boa Vista, em Roraima."
Isolamento contra o mosquito
Antes do primeiro caso de dengue ser confirmado
oficialmente, o Aedes aegypti já era um problema no território
brasileiro pela sua capacidade de transmitir o vírus da febre amarela urbana. Na
época, por falta de conhecimento que a picada do Aedes aegypti poderia
transmitir doenças muitas pessoas acreditavam que a febre amarela, por exemplo,
era contraída a partir do contato com um infectado. Foi somente no século 20,
que houve o consenso que eram os vetores, entre eles, o mosquito Aedes
aegypti, os grandes responsáveis pela transmissão da doença e que o combate
não seria apenas isolando as vítimas, mas combatendo os focos de reprodução dos
mosquitos transmissores.
"Foi apenas entre 1905 e 1906, que o médico
inglês Thomas Lane Bancroft, propôs na Austrália que o Aedes aegypti quando
infectado, poderia, através da picada, transmitir o microrganismo causador da
dengue. Em seguida, em 1908, as observações de Bancroft foram confirmadas pelo
médico cubano Aristides Agramonte y Simoni", explicou Jorge Tibilletti de
Lara, pesquisador em história das ciências e saúde da Fiocruz. Com a
descoberta, começou no Brasil uma verdadeira "caça aos mosquitos".
Quem estava contaminado precisava ficar em isolamento e na residência era
instalada uma armação de madeira revestida de tela ao redor da cama para
impedir o acesso dos mosquitos ao doente. No resto da casa, papéis eram colados
em todas as aberturas para evitar a entrada dos insetos. Além disso, era comum
a queima de pó de piretro, que liberava um vapor capaz de atordoar os
mosquitos.
Brasil já conseguiu 'acabar' com o
mosquito
A busca por acabar com os mosquitos transmissores
da febre amarela - na forma silvestre os vetores são o Haemagogus e
o Sabethes; e na forma urbana (último registro em 1942), os
mosquitos Aedes aegypti e Albopictus - levou
o Brasil a adotar uma série de medidas, na primeira metade do século 20, contra
a procriação de mosquitos.
Proprietários de terrenos, por exemplo, eram
punidos com multas caso tivessem criadouros de vetores e até farmácias tinham
que informar quem estava com febre amarela ou dengue. O esforço deu certo e
vetores de doenças comuns começaram a ser erradicados do Brasil.
A primeira espécie foi a Anopheles gambiae,
em 1940. O extermínio desse mosquito, um perigoso vetor da malária, ocorreu
antes do uso do pesticida DDT (dicloro-difenil-tricloretano) ser utilizado no
país. "Em 1958, a erradicação do Aedes aegypti no Brasil
foi reconhecida pela a Organização Pan-americana da Saúde (OPAS), após uma
campanha que teve grande importância para a cooperação interamericana em saúde
pública, mas que também foi marcada por problemas internos, como a adesão
tardia dos Estados Unidos ao programa de erradicação. Isso somente ocorreu em
1964 e foi finalizado em 1969 sem ter atingido as metas estabelecidas",
apontou Gabriel Lopes, pesquisador em história das ciências e saúde da Fiocruz.
Foi o estopim para que em 1967, o Brasil voltasse a registrar reinfestação dos
mosquitos.
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De febre amarela a dengue
Quando o Aedes aegypti voltou a
ser problema, na década de 1970, o Brasil já não tinha as mesmas
características dos anos 1900. O êxodo rural que fez brasileiros se mudarem do
campo para as cidades estimulou o crescimento urbano desordenado, a falta de
saneamento básico e concomitantemente a reprodução acelerada da espécie. "A
dengue, como conhecemos hoje, se espalhou pela América Latina a partir da
década de 1980, afetando 25 países e se expandindo rapidamente pelas cidades
mais povoadas. O retorno e propagação do mosquito Aedes aegypti,
que se intensificou ao final da década de 1970, foi fundamental para esse
processo. A permanência desse mosquito em regiões urbanas pouco saneadas
garantiu a circulação de epidemias sem precedentes no século 21, como o caso da
zika e da chikungunya", apontou Gabriel.
Outra explicação está atrelada ao ciclo de vida
do Aedes aegypti. Sua rápida reprodução com ovos capazes de ficar
até um ano em ambiente seco para conceder larvas são apontados como motivações
para que o vetor continue sendo temido. "Os mosquitos têm o ciclo de vida
holometábolo, ou seja, com metamorfose completa. O ciclo possui as fases de
ovo, larva, pupa e adulto. Os ovos são muito resistentes à dissecação e o
embrião pode permanecer viável até um ano sem contato com a água",
explicou Tamara.
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Animal mais letal do planeta
Diferentemente do que muita gente imagina, os
mosquitos são os animais mais letais do planeta. Dados da Organização Mundial
da Saúde (OMS) apontam que cerca de 725 mil pessoas morrem todos os anos por
doenças transmitidas por eles. Isso porque, diferentemente de muitas outras
criaturas perigosas, os mosquitos podem ser encontrados em praticamente todas
as partes do mundo sem serem notados.
No caso do Aedes aegypti, para que a
transmissão da dengue aconteça é preciso que o vetor esteja infectado. Isso
porque, ao mesmo tempo em que pica para sugar o sangue, o Aedes expele
saliva infectada e transmite a doença para o ser humano. Além disso, a pessoa
infectada, ao entrar na fase aguda da dengue e ser picada por um outro
mosquito, vai contaminá-lo, iniciando novamente o ciclo de transmissão do
vírus. "Hoje, sabemos que até os ovos da fêmea infectada também nascem com
o vírus", ressaltou Lívia Vinhal, coordenadora de vigilância de
arboviroses do Ministério da Saúde.
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Vetores de doenças
Jorge Tibilletti de Lara, pesquisador em história
das ciências e saúde da Fiocruz explica a transmissão de muitos dos vírus
relacionados ao Aedes aegypti se dá pelo sangue. "Esses
vírus se replicam no estômago do mosquito. Ao mesmo tempo, o sangue humano,
alimento preferido das fêmeas da espécie, aumenta as aptidões dos mosquitos e a
taxa de reprodução dos vírus." Além disso, o fato de os mosquitos se
alimentarem várias vezes de forma sorrateira, pelos tornozelos, aumentam as
chances de transmissão. Isso porque muitas vezes a pessoa não consegue ver a
tempo o inseto em contato com sua pele.
"O Aedes aegypti não é o
único mosquito que transmite patógenos aos humanos, mas preenche muito bem
vários critérios que corroboram seu protagonismo como transmissor de doenças:
utiliza humanos como fonte de alimentação sanguínea; e vive em estreita
associação com humanos numa ampla distribuição geográfica", apontou Jorge.
Ou seja, diferente de outros mosquitos que vivem mais em áreas de mata, o Aedes
aegypti se adaptou bem ao ambiente urbano. Com isso, tem um maior
contato com os seres humanos em relação aos outros vetores do planeta, ganhando
protagonismo em transmitir doenças. "Cidades populosas sem saneamento
adequado ao serem atingidas pelas chuvas, produzem condições muito boas para a
proliferação do Aedes aegypti no Brasil. De forma geral, as
regiões urbanas que possuem piores condições relacionadas ao descarte do lixo,
drenagem e obras inacabadas ou precárias podem produzir criadouros muito
produtivos para o vetor", disse Gabriel.
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Como combater o Aedes aegypti
Pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil dizem
que dificilmente o Brasil vai conseguir erradicar o Aedes aegypti,
como fez há 70 anos. "Hoje, o vetor é altamente domiciliado. O que falamos
atualmente é em diminuir a infestação do vetor e consequentemente a transmissão
dos vírus", disse Livia Vinhal, coordenadora de vigilância de arboviroses
do Ministério da Saúde.
Segundo a OMS, a dengue é considerada endêmica em
pelo menos 100 países, abrangendo as regiões das Américas, África, Oriente
Médio, Ásia e Ilhas do Pacífico.
Atualmente, a grande esperança está relacionada aos
resultados positivos de vacinas contra formas graves da dengue – doença mais
comum de ser transmitida pelo Aedes aegypti no Brasil. No
entanto, Alda Maria da Cruz, diretora do departamento de doenças transmissíveis
da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde,
ressalta que, com ou sem vacina, a melhor maneira de evitar a dengue,
chikungunya e zika continua sendo acabar com os criadouros do Aedes
aegypti. "A população muitas vezes acredita que o fumacê é uma das
medidas mais efetivas no combate ao Aedes aegypti, mas usamos ele
quando todas as oportunidades de controle já não estão dando mais certo. O que
é altamente efetivo no combate ao vetor é evitar água parada. Por isso,
precisamos muito da colaboração de todos."
Fonte: Por Raimundo Seguí López-Peñalver, para The
Conversation/BBC News Brasil

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