terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Por que casos de dengue estão se multiplicando na Europa

Se algum de nós procurasse informações sobre a dengue nos livros ou na internet, muito provavelmente a encontraríamos classificada dentro do grupo conhecido como doenças tropicais e subtropicais. E, com a mesma probabilidade, nos últimos meses, teríamos nos deparado com notícias sobre um dos picos históricos mais intensos da epidemia (tanto em número de casos quanto em mortes) já registrados no Peru, que declarou estado de emergência na maioria de suas regiões.

Com climas subtropicais e tropicais, o país sul-americano sofre uma intensificação significativa da circulação do vírus ano após ano. O mesmo acontece no Brasil, que liderou o número de casos de dengue no mundo, com 2,9 milhões registrados em 2023, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Os casos são mais da metade dos 5 milhões registrados mundialmente.

A partir de fevereiro, o Brasil terá o primeiro imunizante contra a dengue oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A Qdenga (TAK-003) é um imunizante contra a dengue desenvolvido pelo laboratório japonês Takeda Pharma. O registro foi aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em março deste ano.

·        Recorde casos em 2023

Teríamos encontrado também recentemente notícias sobre a doença fora da América Latina: registros de novos casos autóctones (não importados) nos Estados Unidos, Itália ou França, assim como o surgimento dos primeiros durante anos na Espanha: nas regiões da Catalunha, Ibiza etc. No ano passado, foram registrados 2,8 milhões de casos de dengue só no continente americano, o que representa um número quase duas vezes maior em relação às 1,2 milhão de notificações registradas em 2021.

Embora a doença incida, majoritariamente, em áreas tropicais e subtropicais da América, Ásia e África, nos últimos anos tem sido observado um aumento significativo em áreas mais temperadas, como a Europa. E principalmente no sul do continente, onde a doença está presente desde a década de 1970.

Segundo dados do Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças (ECDC, por sua sigla em inglês), foram notificados 71 casos de dengue adquirida localmente em 2022 na parte continental da União Europeia. Isso representa um aumento de nada menos que 20% em relação a 2021. Na última sexta-feira (22/12), a OMS chamou atenção para o fato de que a dengue tem se espalhado para países onde historicamente não circulava.

O que está acontecendo?

·        Picadas com consequências graves

A dengue é uma doença causada por um dos quatro sorotipos (DENV1, DENV2, DENV3 e DENV4) do vírus da dengue (DENV). Esse patógeno pertence à família Flaviviridae e foi relatado que os quatro sorotipos podem circular juntos e causar o mesmo quadro clínico.

dengue hemorrágica merece atenção especial, pois geralmente é desencadeada após exposição a um desses sorotipos de vírus após ter sido previamente exposto a outro.

O DENV é transmitido pela picada de mosquitos do gênero Aedes infectados, principalmente Aedes aegypti e, em menor extensão, Aedes albopictus. Esses insetos, que se alimentam de sangue humano e podem transmitir o vírus pela saliva, são encontrados em áreas tropicais e subtropicais de todo o mundo.

Embora, como apontamos, tenham se espalhado para áreas mais temperadas nas últimas décadas. Assim, a transmissão do vírus segue um ciclo humano-mosquito-humano. Quando uma fêmea do mosquito Aedes infectada com DENV pica uma pessoa, ela introduz o DENV e inicia o ciclo dentro do ser humano. O período de incubação costuma ser de 3 a 10 dias, embora varie dependendo de fatores ambientais, como a temperatura.

A doença começa então a se desenvolver. Normalmente começa apresentando febre, dor de cabeça, desconforto muscular, dores nas articulações, náuseas e vômitos. Em casos graves, pode causar sangramento, falência de órgãos e morte.

Os mosquitos Aedes se reproduzem na água parada, como recipientes com água, piscinas não utilizadas, pneus velhos etc. Portanto, nos locais onde há ausência de vacinas e tratamentos eficazes, é importante eliminar os criadouros do mosquito para evitar a transmissão da doença.

Mas não só a dengue, já que esses insetos também atuam como vetores de transmissão da zika e da chikungunya.

·        Mudanças climáticas e globalização

As mudanças climáticas são um dos fatores que contribuem para o aumento dos casos de dengue, tanto na América como na Europa. O aumento das temperaturas e a duração da temporada de mosquitos (devido aos verões mais quentes e longos) podem favorecer a proliferação do Aedes aegypti.

Esses mosquitos são capazes de sobreviver em temperaturas acima de 10 graus Celsius e, com o aquecimento global, podem expandir seu alcance para áreas mais temperadas. E, ao provocar alterações nos padrões de chuvas, as mudanças climáticas aumentam o volume de água parada, habitat ideal para a sua reprodução.

Além disso, o aumento das viagens e do comércio internacional (as pessoas que viajam para zonas com dengue podem contrair a infecção e transmiti-la quando voltam à Europa). O crescimento das cidades também criam condições favoráveis ​​à reprodução destes mosquitos.

Estaremos no caminho para que a Europa se torne uma região endêmica?

Com esse panorama, a possibilidade de a dengue se tornar uma doença endêmica no Velho Continente é um cenário real: as condições ambientais — mudanças climáticas e globalização — estão cada vez mais favoráveis à atividade do vetor e à replicação do vírus nele. Além disso, esses são fatores que atualmente estão fora do controle humano.

Se a dengue se tornar uma doença endêmica na Europa, poderá ter um impacto significativo na saúde pública. Por essa razão, as autoridades de saúde europeias já estão trabalhando para prevenir a sua propagação com medidas sobre fatores que podem ser controlados, como a vigilância de casos, a educação sobre como prevenir picadas de mosquitos e a aplicação de medidas críticas de controle na população de mosquitos a partir do momento em que sua presença é detectada. Algo que, por exemplo, tem acontecido com bastante frequência na ilha espanhola de Tenerife.

Todo cuidado é pouco.

 

Ø  Como mosquito egípcio chegou ao Brasil e matou 10 mil pessoas

 

Popularmente conhecido como mosquito da dengue, o Aedes aegypti há mais de um século é o mais temido "inimigo público" do Brasil. A espécie, originária do Egito, é responsável pela transmissão das arboviroses urbanas mais comuns do país: dengue, chikungunya e zika. Seu tamanho inferior a um centímetro e suas listras brancas no tronco, cabeça e pernas parecem esconder sua alta capacidade de transmissão de doenças. O que pouca gente sabe é que nas últimas três décadas o Aedes aegypti foi responsável pelas mortes de 10 mil brasileiros.

Levantamento feito pelo Ministério da Saúde a pedido da BBC News Brasil aponta que desde 1990, 10.096 brasileiros morreram após serem picados pelo mosquito. Foram 9.186 mortes por dengue, 875 por chikungunya e 35 por zika. Sem contar as milhões de pessoas que são contaminadas todos os anos pelo mosquito e conseguem se recuperar. Para ter uma ideia, somente em 2022, foram registrados 1.450.270 casos e 1.017 mortes de dengue no Brasil – um recorde, desde que os óbitos pela doença passaram a serem registrados oficialmente.

Cientificamente, o Aedes aegypti foi descrito pela primeira vez, em 1762, quando foi denominado Culex aegypti - culex de 'mosquito' e aegypti em referência a sua região de origem: o Egito. Contudo, em 1818, pesquisadores notarem que a espécie tinha características morfológicas e biológicas semelhantes às de espécie do gênero Aedes. Com isso, o nome passou a ser Aedes aegypti.

No Brasil, estudos apontam que a chegada do mosquito transmissor da dengue, chikungunya, zika e febre amarela urbana ocorreu entre os séculos 17 e 19, através de navios que traziam pessoas do continente africano para serem escravizadas na América Latina. A capacidade dos ovos da espécie de resistir até um ano sem contato com água ajudou para que rapidamente o mosquito do Egito encontrasse ambiente favorável para se reproduzir nos navios e, em seguida, no território brasileiro.

Tamara Nunes de Lima Camara, pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que apesar do primeiro caso oficial de dengue no Brasil ser de 1981, existem evidências que, desde o início do século 19, o Aedes aegypti já era um problema no país. "Existem relatos de epidemias de doença com sintomas similares à dengue em 1916, em São Paulo (SP); e em 1923, em Niterói (RJ), mas sem diagnóstico laboratorial, apenas clínico. A primeira confirmação em laboratório de dengue no país somente ocorreu em 1981, a partir de uma epidemia na cidade de Boa Vista, em Roraima."

Isolamento contra o mosquito

Antes do primeiro caso de dengue ser confirmado oficialmente, o Aedes aegypti já era um problema no território brasileiro pela sua capacidade de transmitir o vírus da febre amarela urbana. Na época, por falta de conhecimento que a picada do Aedes aegypti poderia transmitir doenças muitas pessoas acreditavam que a febre amarela, por exemplo, era contraída a partir do contato com um infectado. Foi somente no século 20, que houve o consenso que eram os vetores, entre eles, o mosquito Aedes aegypti, os grandes responsáveis pela transmissão da doença e que o combate não seria apenas isolando as vítimas, mas combatendo os focos de reprodução dos mosquitos transmissores.

"Foi apenas entre 1905 e 1906, que o médico inglês Thomas Lane Bancroft, propôs na Austrália que o Aedes aegypti quando infectado, poderia, através da picada, transmitir o microrganismo causador da dengue. Em seguida, em 1908, as observações de Bancroft foram confirmadas pelo médico cubano Aristides Agramonte y Simoni", explicou Jorge Tibilletti de Lara, pesquisador em história das ciências e saúde da Fiocruz. Com a descoberta, começou no Brasil uma verdadeira "caça aos mosquitos". Quem estava contaminado precisava ficar em isolamento e na residência era instalada uma armação de madeira revestida de tela ao redor da cama para impedir o acesso dos mosquitos ao doente. No resto da casa, papéis eram colados em todas as aberturas para evitar a entrada dos insetos. Além disso, era comum a queima de pó de piretro, que liberava um vapor capaz de atordoar os mosquitos.

Brasil já conseguiu 'acabar' com o mosquito

A busca por acabar com os mosquitos transmissores da febre amarela - na forma silvestre os vetores são o Haemagogus e o Sabethes; e na forma urbana (último registro em 1942), os mosquitos Aedes aegypti e Albopictus - levou o Brasil a adotar uma série de medidas, na primeira metade do século 20, contra a procriação de mosquitos.

Proprietários de terrenos, por exemplo, eram punidos com multas caso tivessem criadouros de vetores e até farmácias tinham que informar quem estava com febre amarela ou dengue. O esforço deu certo e vetores de doenças comuns começaram a ser erradicados do Brasil.

A primeira espécie foi a Anopheles gambiae, em 1940. O extermínio desse mosquito, um perigoso vetor da malária, ocorreu antes do uso do pesticida DDT (dicloro-difenil-tricloretano) ser utilizado no país. "Em 1958, a erradicação do Aedes aegypti no Brasil foi reconhecida pela a Organização Pan-americana da Saúde (OPAS), após uma campanha que teve grande importância para a cooperação interamericana em saúde pública, mas que também foi marcada por problemas internos, como a adesão tardia dos Estados Unidos ao programa de erradicação. Isso somente ocorreu em 1964 e foi finalizado em 1969 sem ter atingido as metas estabelecidas", apontou Gabriel Lopes, pesquisador em história das ciências e saúde da Fiocruz. Foi o estopim para que em 1967, o Brasil voltasse a registrar reinfestação dos mosquitos.

·        De febre amarela a dengue

Quando o Aedes aegypti voltou a ser problema, na década de 1970, o Brasil já não tinha as mesmas características dos anos 1900. O êxodo rural que fez brasileiros se mudarem do campo para as cidades estimulou o crescimento urbano desordenado, a falta de saneamento básico e concomitantemente a reprodução acelerada da espécie. "A dengue, como conhecemos hoje, se espalhou pela América Latina a partir da década de 1980, afetando 25 países e se expandindo rapidamente pelas cidades mais povoadas. O retorno e propagação do mosquito Aedes aegypti, que se intensificou ao final da década de 1970, foi fundamental para esse processo. A permanência desse mosquito em regiões urbanas pouco saneadas garantiu a circulação de epidemias sem precedentes no século 21, como o caso da zika e da chikungunya", apontou Gabriel.

Outra explicação está atrelada ao ciclo de vida do Aedes aegypti. Sua rápida reprodução com ovos capazes de ficar até um ano em ambiente seco para conceder larvas são apontados como motivações para que o vetor continue sendo temido. "Os mosquitos têm o ciclo de vida holometábolo, ou seja, com metamorfose completa. O ciclo possui as fases de ovo, larva, pupa e adulto. Os ovos são muito resistentes à dissecação e o embrião pode permanecer viável até um ano sem contato com a água", explicou Tamara.

·        Animal mais letal do planeta

Diferentemente do que muita gente imagina, os mosquitos são os animais mais letais do planeta. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que cerca de 725 mil pessoas morrem todos os anos por doenças transmitidas por eles. Isso porque, diferentemente de muitas outras criaturas perigosas, os mosquitos podem ser encontrados em praticamente todas as partes do mundo sem serem notados.

No caso do Aedes aegypti, para que a transmissão da dengue aconteça é preciso que o vetor esteja infectado. Isso porque, ao mesmo tempo em que pica para sugar o sangue, o Aedes expele saliva infectada e transmite a doença para o ser humano. Além disso, a pessoa infectada, ao entrar na fase aguda da dengue e ser picada por um outro mosquito, vai contaminá-lo, iniciando novamente o ciclo de transmissão do vírus. "Hoje, sabemos que até os ovos da fêmea infectada também nascem com o vírus", ressaltou Lívia Vinhal, coordenadora de vigilância de arboviroses do Ministério da Saúde.

·        Vetores de doenças

Jorge Tibilletti de Lara, pesquisador em história das ciências e saúde da Fiocruz explica a transmissão de muitos dos vírus relacionados ao Aedes aegypti se dá pelo sangue. "Esses vírus se replicam no estômago do mosquito. Ao mesmo tempo, o sangue humano, alimento preferido das fêmeas da espécie, aumenta as aptidões dos mosquitos e a taxa de reprodução dos vírus." Além disso, o fato de os mosquitos se alimentarem várias vezes de forma sorrateira, pelos tornozelos, aumentam as chances de transmissão. Isso porque muitas vezes a pessoa não consegue ver a tempo o inseto em contato com sua pele.

"O Aedes aegypti não é o único mosquito que transmite patógenos aos humanos, mas preenche muito bem vários critérios que corroboram seu protagonismo como transmissor de doenças: utiliza humanos como fonte de alimentação sanguínea; e vive em estreita associação com humanos numa ampla distribuição geográfica", apontou Jorge. Ou seja, diferente de outros mosquitos que vivem mais em áreas de mata, o Aedes aegypti se adaptou bem ao ambiente urbano. Com isso, tem um maior contato com os seres humanos em relação aos outros vetores do planeta, ganhando protagonismo em transmitir doenças. "Cidades populosas sem saneamento adequado ao serem atingidas pelas chuvas, produzem condições muito boas para a proliferação do Aedes aegypti no Brasil. De forma geral, as regiões urbanas que possuem piores condições relacionadas ao descarte do lixo, drenagem e obras inacabadas ou precárias podem produzir criadouros muito produtivos para o vetor", disse Gabriel.

·        Como combater o Aedes aegypti

Pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil dizem que dificilmente o Brasil vai conseguir erradicar o Aedes aegypti, como fez há 70 anos. "Hoje, o vetor é altamente domiciliado. O que falamos atualmente é em diminuir a infestação do vetor e consequentemente a transmissão dos vírus", disse Livia Vinhal, coordenadora de vigilância de arboviroses do Ministério da Saúde.

Segundo a OMS, a dengue é considerada endêmica em pelo menos 100 países, abrangendo as regiões das Américas, África, Oriente Médio, Ásia e Ilhas do Pacífico.

Atualmente, a grande esperança está relacionada aos resultados positivos de vacinas contra formas graves da dengue – doença mais comum de ser transmitida pelo Aedes aegypti no Brasil. No entanto, Alda Maria da Cruz, diretora do departamento de doenças transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde, ressalta que, com ou sem vacina, a melhor maneira de evitar a dengue, chikungunya e zika continua sendo acabar com os criadouros do Aedes aegypti. "A população muitas vezes acredita que o fumacê é uma das medidas mais efetivas no combate ao Aedes aegypti, mas usamos ele quando todas as oportunidades de controle já não estão dando mais certo. O que é altamente efetivo no combate ao vetor é evitar água parada. Por isso, precisamos muito da colaboração de todos."

 

Fonte: Por Raimundo Seguí López-Peñalver, para The Conversation/BBC News Brasil

 

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