‘Os EUA gostariam de ser donos de Essequibo’, diz prefeito venezuelano
Coordenador nacional da Unión Comunera e prefeito
de Simón Planas, município do estado de Lara, com 35 mil habitantes, o
venezuelano Angel Prado veio ao Brasil para a formatura da primeira turma
internacionalista do Instituto Educacional Josué de Castro, de Viamão (RS), com
jovens da Venezuela e da Argentina. Ele também visitou comunidades rurais e
urbanas e cozinhas solidárias.
Muito próximo do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST), Prado conta que “andamos por esta terra procurando ideias para
implementar em nosso país”. Entre elas, o trabalho junto à agricultura familiar
para produzir alimentos sem devastação do meio ambiente. A Unión Comunera
representa três mil comunas espalhadas pelo território venezuelano, que,
juntas, somam cinco milhões de pessoas. “Minha comuna se lança a partir da
revolução. É formada por muitas famílias camponesas sem terra”, explica.
Nesta conversa com Brasil de Fato RS, Prado aborda
a disputa com a Guiana pelas terras de Essequibo, o papel central das comunas
na defesa da revolução bolivariana, a importância da educação e da consciência
de classe, a solidariedade internacional dos movimentos quando a Venezuela
ficou isolada e, sobretudo, como declara, seu “grande amor pelo MST”, que
ajudou a matar a fome no seu país.
>>>> Confira na íntegra a entrevista:
·
Nos explique este conflito agora envolvendo a
Venezuela e a Guiana?
Angel Prado – Entendo
que o imperialismo norte-americano e as potências europeias buscam
desesperadamente controlar a América Latina. Temos visto, nas últimas três
décadas, o surgimento de movimentos populares e indígenas fortes que tomaram o
poder, geraram mudanças e que conseguiram muita participação popular. Isto
representa um perigo para os donos do poder e um grande perigo para a
burguesia. E a América Latina tem as maiores reservas minerais do mundo.
Essequibo sempre pertenceu à Venezuela ou, ao
menos, como há uma disputa, ninguém deveria estar operando ali. Ninguém poderia
estar extraindo recursos dali. Os estadunidenses e os britânicos sempre foram
os que lideraram esta luta ou controvérsia entre a Guiana e a Venezuela. Sempre
se reservando o direito de opinar sobre o território. Desde 2015, em um momento
de extrema debilidade política venezuelana, começaram a extrair petróleo.
Instalaram-se ali suas transnacionais e muito perto instalam suas bases militares.
Há uma divisão política na Venezuela entre a direita, supostamente
nacionalista, e o governo socialista.
Há uma crise política e parece ser o momento
preciso para começarem a ocupar o território (de Essequibo) porque lhes pareceu
que não teríamos condições. Às portas de uma guerra civil, não teríamos
condições para levantar a voz como estamos levantando. Dizendo que
historicamente este território nos pertence. E, neste ano, na véspera de
eleições, não somente na Venezuela, mas também nos Estados Unidos, os
abusadores se atrevem. Celebramos que, em 2020 e 2021, Maduro aprofundou a
reclamação sobre Essequibo e, agora, a aprofundou mais ainda.
Parece que a direita ficou entusiasmada na América
Latina com a vitória de [Javier] Milei, na Argentina, e [de Daniel Noboa] no
Equador. Aumentam o bloqueio contra Cuba e esperam o possível retorno de
governos de direita em nossos países. E o governo títere da Guiana se rende ao
imperialismo. Chávez o chamaria de cachorro do imperialismo. Vínhamos de boas
relações com a Guiana e não havia confrontação. Tememos que os Estados Unidos
tomem a área petrolífera do [rio] Orenoco, que é a segunda maior do mundo. Gostariam
de ser os donos de Essequibo.
Criticaram a Venezuela por ter anexado o Essequibo.
O que estamos fazendo é uma frente de defesa do nosso território e da nossa
soberania. Não podemos ser ingênuos e crer que isto é casual. É todo um plano.
E, bem, seguramente vamos ver muita confrontação. E nos toca nos defendermos,
buscar o apoio internacional.
A Venezuela lutou por este território nos anos de
1960 e 1970. Em 2023, nos cremos em condições de enfrentar a situação. Não
podemos deixar que os Estados Unidos se instalem como um estado autônomo para
ter o controle total dessa zona com a cumplicidade do governo da Guiana. Dentro
de algumas semanas teríamos os gringos na faixa petrolífera do Orenoco
controlando todo o sul da Venezuela.
·
Como funciona as comunas na Venezuela?
Sou um comuneiro, venho de uma comunidade
localizada no centro ocidental da Venezuela. É uma organização popular que
existe desde 2009. Minha comuna se lança a partir da revolução. É formada por
muitas famílias camponesas sem terra. Tem uma estrutura e personalidade
jurídica. E tem conta bancária, agenda de trabalho e plano de lutas. Tem um
território definido, e as decisões são submetidas à assembleia cidadã.
Trabalha-se o político, o social, o econômico, o cultural e também o
territorial. Tem um autogoverno num território que funciona sobretudo a partir
da visão da comunidade.
·
Quantas pessoas vivem na tua comuna?
Somos nove mil habitantes. Existem programas que
chegam a uma parte da população segundo o interesse das pessoas em participar.
Assumem competências da necessidade comum, como a distribuição do gás, dos
alimentos e dos serviços. O autogoverno do território assume parte desse
trabalho. A comuna nasce como uma nova forma política de se fazer governo.
·
Como se dá a relação com o governo da cidade?
Há uma disputa entre os dois modelos. O modelo
comunal, socialista, contra o modelo liberal burguês. O presidente Hugo Chávez
foi o grande promotor que buscou construir uma nova forma de se fazer política.
·
A comuna começou já no primeiro governo de Chávez?
Em 2006, Chávez propõe criar governos territoriais
que se chamam conselhos comunais. E comitês de trabalho tocam a agricultura, o
social, a saúde, as finanças. Começou a executar os projetos, planos de
moradia, as missões sociais. Chávez não as executava pela via tradicional e
conseguiu a participação de muita gente. O povo assumiu o poder, aprendeu a
gestionar a partir da sua organização e participação. Passou a executar
projetos e a dar resposta às nossas necessidades. Isto para sair do
paternalismo e do assistencialismo que sempre se teve com a política
representativa da Venezuela.
Em 2009, aprofundou-se o modelo comunal. A produção
da comuna. Também se começa a eliminar algumas estruturas do Estado tradicional
burguês, como as estruturas legislativas e paroquiais. E estamos na tarefa de
construir o Estado comunal. É normal reconhecer que esta não era a nossa
tradição. É um fator de vontade política do governo de seguir construindo as
comunas.
Percorremos toda a Venezuela e levantamos a
situação econômica, a situação do bloqueio, a pandemia, os embargos. A aposta
comunal segue em marcha. Hoje, muitas comunas organizadas se vão juntando com
outras que estão nascendo. Está surgindo uma poderosa organização nacional de
comunas, disputando espaços no campo econômico, político e, agora, disputa no
campo eleitoral. O que conta com o reconhecimento e o apoio financeiro do
presidente Nicolás Maduro.
Esta conquista não estamos dispostos a perdê-la.
Sempre se negou a participação ao povo. A revolução bolivariana permitiu a
participação popular, nos convocou a fazer política e, bem, já temos anos nas
ruas e já estamos há anos organizados.
Existe uma tarefa clara que temos: disputar o poder
ao Estado tradicional burguês. Algumas estruturas não aceitam e pretendem
preservar o poder. Porém, há uma consistência entre a revolução bolivariana de
Maduro e a base popular. Com a intenção de concretizar nosso projeto primeiro.
O que sustenta a revolução bolivariana é um compromisso moral com seu
comandante Hugo Chávez. E é a estratégia bolivariana para realizar as mudanças
necessárias.
·
Como se mantém o governo Maduro mesmo com os
ataques da extrema direita dentro do país? E dos Estados Unidos? Qual o papel
das comunas nisso?
Sim, temos avançado nos campos ideológico, político
e cultural. Nós sustentamos a revolução popular na Venezuela. Se não houvesse a
organização popular já não teríamos o que temos. Sabemos o que ocorreu em
outros países, o que ocorreu no Brasil e também o que se tentou fazer
contra Chávez em 2012.
Hoje, visitei o Morro da Cruz, aqui em Porto
Alegre, e fiz algumas perguntas. Perguntei sobre as estruturas
político-organizativas do bairro. E me falaram de várias. É certo que, no
Brasil, o movimento campesino leva muita vantagem. Está muito organizado para
disputar a terra, para produzir, para educar-se, para realizar, para
distribuir.
Porém, é certo que, na zona urbana, na Venezuela,
se avançou antes e é onde está concentrada a população. Esta base popular
organizada viveu uma bonança econômica, a era boa do petróleo. Depois, houve
as guarimbas (*), os protestos contra Maduro, onde vimos até a
prática de queimar pessoas. Tivemos uma debacle econômica. Uma situação muito
dura, enfrentar uma migração forçada, logo depois da pandemia, para o Brasil.
Superamos tantas coisas graças a esta base social organizada nas grandes
cidades e menos nos campos e zonas rurais. É uma base que efetivamente está
decidida a preservar o modelo político que hoje temos. Porém, preservar desde a
Constituição, resistir dentro da Constituição.
Meu primeiro voto foi para Chávez. Não sabia nada
de política. E foi tanta a participação que permitiu à juventude venezuelana
formar políticos e dirigentes. Na Venezuela, antes de Chávez, os jovens da
periferia chegaram a comer sapatos para suportar a fome, além de muitas outras
coisas terríveis que agora não se veem, apesar dos problemas que temos.
Somos cinco milhões de habitantes que estão em
comunas e participam da estrutura política. São 42 mil conselhos comunais. Cada
conselho pode ter de 100 até mil moradores. Estamos em cerca de três mil
comunas pelo país. Algumas com mais avanços e outras com menos.
·
Trabalham dentro das comunas?
Muitos trabalham dentro das comunas, mas não são
necessariamente comuneiros. Podem trabalhar para o governo, para uma empresa
privada, mas, na comunidade em que vivem, há um conselho comunal, uma
assembleia, um comitê de trabalho e atividades comunitárias. De maneira
militante.
São pessoas que nem compartilham ideologicamente a
revolução, mas vivem ali e lhes interessa que a comunidade seja organizada e
por isso participam. São patriotas que se ocupam que não ocorra uma guerra
civil no país. É essa base organizada que mantém o projeto da revolução
bolivariana.
·
Como as comunas trabalham com a formação, a
educação e a comunicação?
Há um modelo educativo para conscientizar a partir
da informação, do estudo. Conscientizar a população e construir a participação
da juventude desde o esporte, a cultura, a comunicação. Creio que as comunas
que terão maiores avanços são as que fazem a disputa ideológica. As que têm
maior interesse em aprofundar a mudança de modelo e transitar para a nova
sociedade.
Se uma comuna não tem dirigentes com propostas
conscientes, se não tem clareza da luta de classes, se não tem clareza da luta
anti-imperialista, não irá avançar e, facilmente, um partido político irá se
apropriar dela. Controlá-la. Há experiências que propõem a comunicação como um
meio para transmitir informações. Temos periódicos comunais, existem escolas de
comunicação que fazem murais, transmitem mensagens de conscientização.
Procuramos esclarecer sobre quem estamos
enfrentando, mostrar quais são as causas da situação da economia do nosso país,
alertar sobre a necessidade de adotar novos meios para ter melhores resultados.
Por exemplo, na Venezuela, durante uns três anos,
os pequenos agricultores não puderam plantar porque não havia sementes. Não
entravam sementes no país. Tivemos que convencer a todos que devíamos produzir
sementes. Em um momento ficamos sem a arepa [bolo de milho], a principal comida
venezuelana, e ninguém do setor privado fabricava farinha. Fizemos uma
mobilização forte de gente do movimento popular que entrou no campo industrial
e fabricou a farinha. Não fez falta o setor privado e isso deixou um ensinamento.
Estamos nos reinventando, rompendo esquemas. Não
estamos produzindo carros, mas estamos produzindo hortaliças. Nunca se importou
hortaliças mesmo na situação mais dura da guerra econômica de 2016 a 2018.
Descobrimos que podíamos jogar com a arma que tinha a direita que eram os
alimentos. Para nós era impossível fazer os embutidos, processar carne. Agora,
podemos.
·
Isto se dá na parceria com o MST. Vieste aqui no
Brasil para a formatura de jovens que estudaram na escola do movimento. Como se
dá esta parceria?
Temos um grande amor pelo MST. Ele tem dado muita
solidariedade ao nosso povo. Temos comido na Venezuela o arroz agroecológico do
MST. Temos conseguido alimentar-nos com vários produtos que foram daqui,
sobretudo nos momentos mais duros.
Quando os governos do mundo nos deixaram sozinhos.
Quando Nicolás Maduro saía pelo mundo buscando quem se animava a vender comida
para a Venezuela, entre os que se atreveram estava o MST. É gente que se
organizou como comuna em uma grande nação, uma potência econômica.
Agora tive a oportunidade de conhecer experiências
com companheiros e companheiras de minha comuna e da minha organização, a Union
Comunera. Somos povos que nos abraçamos, que nos completamos. Somos povos
anti-imperialistas. Cremos no socialismo. O que ocorre entre as pessoas de uma
comunidade no meu país é como uma prática socialista. Sentir a dor do
companheiro, das famílias, dedicar-se voluntariamente, sem remuneração, fazer
um trabalho, sobretudo as mulheres.
Foram anos duros, os governos nos deixaram
sozinhos, mas os povos sempre creram em nosso futuro. Cubanos, gente da
Nicarágua, brasileiros do MST e do MPA [Movimento dos Pequenos Agricultores],
argentinos, companheiros da Colômbia, companheiras do País Basco. Estou seguro
que a Venezuela sairá dessa, apesar da quantidade de coisas negativas nos meios
de comunicação de massa de 150 países.
Sentimos a necessidade de ensinar nossos filhos
sobre os programas de educação popular, de educação técnica. Entramos no debate
em torno do modelo agrícola, que trata de fazer o possível para afastar-se do
modelo tradicional explorador que acaba com o meio ambiente. E isso nos
aproxima muito do MST e andamos por esta terra procurando ideias para
implementar em nosso país.
Ø Crise com a
Venezuela: Reino Unido envia navio de guerra à Guiana
O Reino Unido vai enviar um navio de patrulha
militar em apoio à Guiana, por conta da crise envolvendo o Essequibo, um
território rico em petróleo reivindicado pela Venezuela, disse Londres neste
domingo (24/12).
“O HMS Trent viajará este mês para a Guiana, nosso
aliado regional e parceiro da Commonwealth, para uma série de compromissos na
região”, disse o Ministério da Defesa britânico em comunicado, sem mais
detalhes.
Segundo a BBC, o barco-patrulha deverá
participar de manobras militares depois do Natal com outros aliados não
especificados da ex-colônia britânica. Londres já tinha demonstrado o seu apoio
à Guiana ao enviar o seu secretário de Estado, David Rutley, para a América do
Sul.
O HMS Trent, que, normalmente, fica baseado no
Mediterrâneo, foi enviado ao Caribe no início de dezembro para combater o
tráfico de drogas.
Cerca de 125 mil pessoas, um quinto da população da
Guiana, vivem no Essequibo, que representa dois terços da área terrestre do
país.
·
Disputa histórica
A Venezuela sustenta que o rio Essequibo deveria
ser a fronteira entre os dois países, como era em 1777, na época do Império
Espanhol. A Guiana argumenta que a fronteira, que data da era colonial inglesa,
foi ratificada em 1899 por um tribunal arbitral em Paris.
Recentemente, a tensão aumentou após o lançamento
das licitações de petróleo pela Guiana em setembro, e depois do referendo
organizado em resposta em 3 de dezembro na Venezuela sobre a anexação do
Essequibo, um território de 160 mil quilômetros quadrados, rico em petróleo e
recursos naturais, administrado por Georgetown.
O presidente da Guiana, Irfaan Ali, e o presidente
da Venezuela, Nicolás Maduro, estiveram reunidos no dia 15 de dezembro numa
cúpula que ajudou a aliviar a pressão. Ambos prometeram continuar as discussões
de forma diplomática, sem o uso de forças militares, apesar disso, os dois
países mantiveram as suas posições.
Fonte: Brasil de Fato/Opera Mundi

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