sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Conflito Israel-Hamas: 'O grupo do WhatsApp ficou em silêncio, todos estão mortos'

Eram quatro horas da manhã e Ahmed acordou assustado. Ele, que geralmente tem sono profundo, sentiu que algo estava errado.

Ele verificava religiosamente o grupo de WhatsApp de sua família desde o início da guerra. De Londres, onde vive, tem sido difícil contactar seu pai e irmãos desde que Israel cortou a eletricidade para a Faixa de Gaza. Mas dois dias antes ele havia recebido uma mensagem de sua irmã Wallah.

A casa dela foi danificada por uma bomba. “As janelas e portas de dentro da casa estavam todas quebradas”, Wallah mandou uma mensagem para o grupo. "Mas o importante é que Deus nos salvou. Estamos todos bem."

“A casa pode ser consertada”, respondeu Ahmed. "O importante é que vocês estão seguros."

Wallah e seus quatro filhos mudaram-se para a casa do pai em Deir al-Balah, no centro de Gaza.

Naquela noite, quando Ahmed acordou, o grupo da família estava silencioso.

Ele ligou para um amigo em Gaza para saber o que estava acontecendo e foi então que descobriu que sua família estava morta.

Desde o início da guerra, Ahmed e as pessoas de Gaza com quem ele divide o apartamento em Londres têm vivido numa espécie de inferno remoto. Seus celulares são repositórios de destruição e morte. Todos os dias eles recebem informações de que um vizinho, um amigo ou alguém com quem estudavam foi morto.

Mas ele nunca acreditou que a guerra atingiria diretamente a sua família.

A casa da sua família fica no centro de Deir al-Balah, numa área que nunca tinha sido alvo de ataques antes.

“Eu pensei: é um momento assustador para eles, mas eles ficarão bem”, diz ele. "Isso foi o que pensei."

Ao todo, 21 pessoas morreram quando a casa da família foi destruída por um ataque aéreo – seu pai, três das suas irmãs, dois irmãos e 15 crianças.

A lista dos mortos é tão longa que Ahmed se confunde ao listar os nomes e as idades de cada pessoa morta em sua família.

Das crianças, seu sobrinho Eslam, de 13 anos, era o mais velho e aquele que Ahmed conhecia melhor. Ahmed era adolescente e morava na casa da família quando Eslam nasceu. Sua mãe cuidava de Eslam enquanto sua irmã estava no trabalho, então Ahmed frequentemente ajudava a alimentar e trocar Eslam quando era bebê.

Eslam dizia que queria ser como o tio. Ele foi o melhor da turma, diz Ahmed, e se dedicou muito ao estudo de inglês para poder também ir para o Reino Unido.

Eslam foi morto ao lado de suas irmãs mais novas – Dima, de 10 anos, Tala, de nove, Nour, de cinco, e Nasma, de dois, além de seus primos Raghad (13 anos), Bakr (11 anos), as meninas Eslam e Sarah, ambas de nove anos, Mohamed e Basema, que tinham oito anos, e Abdullah e Tamim, que tinham seis.

A última vez que Ahmed viu as crianças foi por videochamada. Ele recebeu um bônus no trabalho e, conforme tradição familiar, prometeu um presente aos sobrinhos e sobrinhas.

“Todos falaram que queriam ir à praia alugar um chalé e comer e dançar juntos e curtir”, conta. Então, ele alugou um chalé e encomendou jantar e lanches para eles.

As crianças ligaram para ele da praia naquele dia, brigando ao telefone para conversar. Agora, 15 delas estão mortas.

Dos nove irmãos de Ahmed, restam apenas ele e duas irmãs.

Nos dias que se seguiram ao ataque, Ahmed publicou online uma fotografia de cada uma das crianças, incluindo Omar, de três anos. Então ele recebeu um telefonema de sua irmã sobrevivente para lhe dizer que Omar está vivo. “Esse foi o momento mais feliz da minha vida”, diz ele.

Omar estava na cama com sua mãe e seu pai, Shimaa e Muhammed, quando a bomba caiu. Muhammed foi morto, mas Shimaa e Omar sobreviveram milagrosamente.

A única outra pessoa resgatada com vida foi Malak, sobrinha de Ahmed, de 11 anos. Ela teve queimaduras de terceiro grau em 50% do corpo.

Quando conheci Ahmed, ele me mostrou uma foto de Malak no hospital, com o corpo totalmente coberto de bandagens. Inicialmente achei que se tratava de um menino porque o cabelo dela estava curto. Antes era longo, disse Ahmed, mas deve ter queimado no fogo.

O pai de Malak não estava em casa quando o local foi atingido, e ele está vivo. Mas sua esposa e outros dois filhos foram mortos. Quando Ahmed lhe enviou uma mensagem perguntando como ele estava, ele respondeu: “Um corpo sem alma”.

Naquele momento, o sinal telefônico de Gaza foi totalmente cortado quando Israel intensificou seu ataque e Ahmed não conseguiu contactar ninguém. Quando o sinal foi retomado, dois dias depois, ele soube que Malak havia morrido.

Com os suprimentos médicos sendo reduzidos a nada, ela teve que ser retirada da unidade de terapia intensiva quando um caso mais urgente chegou. Ela estava com muitas dores. “Eu morria cem vezes todos os dias”, disse o pai a Ahmed, enquanto observava o mais velho e último dos seus três filhos desaparecer.

Pouco antes do apagão de comunicação, Ahmed também descobriu que a casa de seu tio havia sido atingida. Ele ainda não tem certeza de quem foi morto lá.

Falamos com três pessoas que perderam mais de 20 familiares cada uma em Gaza. Um deles, Darwish Al-Manaama, perdeu 44 membros da sua família. Eles estão lidando com o luto em uma escala incompreensível.

Yara Sharif, arquiteta e acadêmica em Londres, me mostrou fotos da casa da família de sua tia, que foi destruída por um ataque israelense uma semana após o início da guerra.

“Era uma casa muito bonita”, diz Yara, “um lindo prédio com um grande pátio no meio”. Era uma casa de família onde os filhos constroem apartamentos para as suas próprias famílias em cima do apartamento dos pais – uma tradição que significa que múltiplas gerações estão sendo exterminadas de uma só vez.

Neste ataque, morreram 20 pessoas – a tia e o tio de Yara, os seus dois primos e os seus 10 filhos, bem como seis membros da família ampliada.

Alguns dos corpos foram retirados dos escombros e apareceram como números na lista de mortos divulgada pelo Ministério da Saúde administrado pelo Hamas.

Yara nos enviou uma captura de tela da lista com uma marca vermelha ao lado de cada nome. No lado direito da lista, suas idades - Sama tinha 16 anos, Omar e Fahmy eram gêmeos de 14 anos, Abdul tinha 13, Fátima 10, Obaida sete, os primos Aleman e Fatima tinham ambos cinco, Youssef tinha quatro e Sarah e Anas tinham três anos.

Yara ainda tem dois primos. Eles pediram para não serem identificados, preocupados com um boato sem fundamentos de que aqueles que falam com a mídia estão sendo alvos.

As irmãs estão em diferentes partes de Gaza e não conseguem se comunicar para realizar um funeral. E, de qualquer maneira, a prima de Yara lhe enviou uma mensagem: “O corpo de Muhammad, de mamãe e dos dois filhos ainda estão sob os escombros”.

Não há combustível suficiente para operar as máquinas escavadoras em Gaza e as que estão em operação são usadas prioritariamente no resgate dos que estão vivos.

Na sexta-feira (27/10), enquanto eu estava sentada com Ahmed assistindo ao noticiário, a lista dos mortos rolava pela tela. Perguntei a ele se sua família estava lá. “Apenas 12 deles”, disse ele. Os outros nove ainda não foram recuperados.

Na semana passada, sua irmã mais velha, que estava em sua casa durante o bombardeio, foi visitar as ruínas. Mas ela disse a Ahmed que não ficou muito tempo porque não suportava o cheiro de corpos em decomposição.

Ahmed não fala com nenhuma das irmãs desde sexta-feira. Seus telefones não estão funcionando e ele não sabe o que aconteceu com elas.

Ele não consegue encontrar palavras em inglês para descrever o que vem sentindo desde o bombardeio, como se seu coração não estivesse mais no peito. Chorar é inútil, diz ele, porque não muda nada.

E ele está inquieto: "Sinto que não consigo ficar parado. Não consigo ficar parado. Não consigo dormir à noite."

"Não há nada que você possa fazer para acabar com esse sentimento."

Entre os mortos, está o irmão mais novo de Ahmed, Mahmoud. Ele trabalhava na mesma ONG de Ahmed, We Are Not Numbers, que treina jovens palestinos para contarem suas histórias ao mundo.

Mahmoud acabara de receber uma oferta de bolsa de estudos para fazer mestrado na Austrália. Uma semana depois do início da guerra, ele disse a Ahmed que não queria ir, que estava muito decepcionado com a forma como o Ocidente estava reagindo ao bombardeamento de Gaza. Ele postou no Twitter. "Meu coração não aguenta mais isso. Estamos sendo massacrados."

Uma semana depois, ele foi morto na casa de seu pai.

Falando do pai, Ahmed diz que ele foi o homem mais gentil que já conheceu. Ele trabalhou duro dirigindo um táxi e trabalhando em construção para educar sua família. Ele ouvia obsessivamente as notícias e acreditava que a única solução para este conflito era uma solução de Estado único - judeus e palestinianos vivendo lado a lado em paz.

Mas quando Ahmed pensa em seu único sobrinho sobrevivente, ele se pergunta: em que Omar acreditará, depois que esta guerra levou tantas pessoas que ele ama?

 

Ø  O pai que perdeu 11 familiares em explosão em Gaza

 

Não restam dúvidas sobre o que ele vê enquanto caminha pelos escombros.

O tecido brilha no meio das ruínas cinzentas. Khalil Khader pega o pijama infantil empoeirado e em farrapos e instantaneamente é tomado por lembranças.

O pijama era de Rosa, sua filha, de 18 meses, a caçula da família.

Khalil mostra um vídeo no seu telefone. Rosa usa a mesma camisola azul e está de mãos dadas com dois primos mais velhos. Os três dançam em círculo.

Como o vídeo foi filmado em câmera lenta, parece que as crianças estão flanando na brisa suave. Elas estão sorrindo. É hora de brincar e suas vidas ainda não foram roubadas pela guerra.

Khalil é um homem de fala tranquila, de 36 anos, engenheiro de computação no hospital Al-Najjar, em Rafah, e pai de quatro filhos pequenos: Ibrahim, de nove anos; Amal, cinco anos; Kinan, dois anos e meio, e Rosa, a filha mais nova.

Khalil caminha com cuidado pelos escombros. A casa ficava a poucos minutos a pé do hospital.

Virou um monte de alvenaria e metal, objetos domésticos e alguns brinquedos infantis. Um pequeno tambor. Um piano de brinquedo.

"Uma bomba enorme explodiu", ele disse a um repórter da BBC que o acompanhava pelo local do ataque.

"Meus vizinhos estavam vindo para o hospital. Então perguntei: 'Onde foi o bombardeio?' E eles me disseram: 'Foi perto da sua casa'. Tive que correr para ver como estava a família. Tentei ligar, mas ninguém atendeu. E como você pode ver… a casa inteira foi bombardeada."

Onze membros de sua família foram mortos.

Seus quatro filhos, suas duas irmãs, seu pai de 70 anos, seu irmão e sua cunhada, e as duas filhas deles. Eles foram cobertos por mortalhas brancas no pátio do hospital.

Sua esposa ficou gravemente ferida. Ela está em tratamento contra queimaduras e outros ferimentos sofridos quando a casa desabou.

Khalil já conhecia a guerra em Gaza. A pequena faixa de terra - com uma área total de apenas 365 km2 - tem sido palco de conflitos implacáveis ao longo de décadas.

O legado das hostilidades era tamanho que ele se preocupava em constituir família ali.

"Lembro-me que, na guerra de 2014, minha esposa estava grávida", lembra ele, "e nossos vizinhos foram bombardeados. Ela estava no sétimo mês e quase caiu da escada por causa da explosão. Eu pensava - como é que vou trazer uma criança para esta vida?"

Mas ele imaginou que uma vida melhor seria possível.

"Eu tinha um sonho para cada um dos meus filhos. Ibrahim foi o primeiro na escola e eu sonhava em vê-lo um dia como médico. Amal era muito criativa, ela adorava desenhar. E ela costumava me mostrar seus desenhos, e às vezes eu desenhava com ela", conta.

"Kinan era muito brincalhão - todos o amavam. E ele costumava cuidar da irmã mais nova. Ele estava sempre lá para proteger Rosa e dizia: 'Não toque nela, ela é meu bebê!' Agora todos se foram."

Khalil ainda procura o corpo de sua irmã sob os escombros. E ele precisa dar apoio a sua esposa no hospital. Os filhos se foram.

 

Ø  Pedido de Biden por 'pausa' marca leve mudança de tom na Casa Branca

 

O presidente dos EUA, Joe Biden, pediu uma “pausa” no conflito Israel-Hamas em um discurso de sua campanha eleitoral em Minneapolis na quarta-feira (1/11).

O presidente falava a um grupo de cerca de 200 pessoas quando uma mulher o interrompeu e pediu que ele apelasse por um cessar-fogo.

Descrevendo-se como rabina, ela falou: “Preciso que você peça um cessar-fogo imediatamente”.

“Acho que precisamos de uma pausa”, disse Biden. Uma pausa “daria tempo para retirar os prisioneiros”, disse ele.

Funcionários da Casa Branca explicaram mais tarde que ele se referia tanto a retirar os reféns detidos pelo Hamas quanto trazer ajuda humanitária, segundo a Associated Press.

Israel tem bombardeado Gaza desde os ataques do Hamas, em 7 de outubro, que mataram 1.400 pessoas e fizeram 239 reféns.

O ministério da saúde local, administrado pelo Hamas em Gaza, afirma que mais de 8,7 mil pessoas foram mortas desde o início dos ataques retaliatórios de Israel.

Biden inicialmente deu apoio a Israel, mas a sua posição parece ter mudado diante da crise humanitária e do elevado número de mortes de civis em Gaza.

Seu pedido de pausa marca uma ligeira mudança de tom por parte da Casa Branca, que durante muito tempo afirmou que não se envolveria na forma como Israel, um aliado próximo, conduz suas operações militares.

Depois que a mulher que o questionava foi retirada do discurso de Biden, o presidente disse que a guerra era uma questão “complicada” e reconheceu as emoções que ela gera.

"Isto é incrivelmente complicado para os israelenses. É incrivelmente complicado para o mundo muçulmano também... Apoiei uma solução de dois Estados; apoiei-a desde o início."

Os intensos combates em Gaza acontecem em Gaza há semanas.

Na manhã de quinta-feira (2/11), dezenas de bombas foram ouvidas caindo na cidade de Gaza – o som delas explodindo em edifícios próximos era interrompido esporadicamente pelo disparo de metralhadoras.

 

Fonte: Por Stephanie Hegarty, repórter do Serviço Mundial da BBC

 

Nenhum comentário: