terça-feira, 3 de outubro de 2023

A questão democrática no Brasil

"Todo ano de eleição, vemos diversos veículos de comunicação realizando a cobertura das votações como momento significativo, onde temos a celebração da chamada “festa da democracia”. No entanto, antes que a escolha de nossos representantes fosse recontada em clima tão festivo, devemos aqui analisar os descaminhos e valores que a democracia assumiu em nossas terras ao longo dos séculos.

Nos tempos coloniais, observamos que o exercício dos direitos políticos se restringia a uma limitada parcela de proprietários de terra, conhecidos como “homens bons”. No interior das câmaras municipais, eles decidiam quem ocuparia os cargos políticos mais importantes e quais leis teriam validade. Já nesse instante, a associação entre as elites e os direitos políticos se movia em favor da exclusão política.

Atingindo o século XVIII, notamos que os ideais iluministas chegaram às terras brasileiras dando suporte a algumas das revoltas coloniais. Em alguns casos, como na Inconfidência Mineira, a possibilidade de organização de um governo republicano aparece como reivindicação. Apesar de sugerir direitos, não podemos elencar a busca pela democracia, tendo em vista que a escravidão seria mantida no novo regime.

Em nossa independência, vemos que uma elite interessada em manter suas vantagens econômicas capitaneava o fim do pacto colonial. Desse modo, a escravidão foi mantida no Brasil e a instalação do voto censitário, homologado pela nossa primeira constituição, estabeleceu a participação política como uma regalia destinada aos privilegiados. Além disso, o poder moderador sacramentava um sistema político centrado na figura do rei.

A partir de 1870, a onda republicana veio junto do abolicionismo. Entre diferentes projetos e interpretações, vemos que o fim da escravidão e da ordem imperial sequenciou os anos de 1888 e 1889. Naquele momento, o acesso ao voto e às instituições foi ainda mais reduzido quando, em um lugar carente de instituições de ensino, a alfabetização foi exigida como requisito na escolha de representantes políticos.

Na chamada Primeira República, vemos que a exigência ainda se somou a um sistema eleitoral corrupto e contaminado por mecanismos que determinavam a alternância das oligarquias no poder. Com o crescimento das cidades e do eleitorado urbano, essa situação começou a experimentar seus primeiros sinais de instabilidade. Foi daí que, em 1930, uma revolução colocou Getúlio Vargas no comando da nação.

Ao mesmo tempo em que era severo crítico da corrupção eleitoral e da exclusão política, Vargas empreendeu manobras políticas que, nos quinze anos subsequentes, cristalizaram o seu nome no poder. Somente em 1945, após ter lutado contra os regimes totalitários europeus, foi que Getúlio Vargas deixou o posto presidencial para que as eleições ocorressem mediante o exercício de cidadania de milhares de brasileiros.

Entre os anos de 1945 e 1964, observamos o desenvolvimento das instituições democráticas em uma fase na qual o desenvolvimento econômico nacional caminhava ao lado do agravamento das questões sociais. O aumento de nossa dívida externa e a demanda de nossas classes trabalhadoras entrava em choque com o tom populista dos governantes dessa época. Dessa forma, os movimentos sociais e partidos de esquerda passaram a reivindicar transformações mais significativas.

Foi então que, em 1964, os militares organizaram um golpe militar que estabeleceu a drástica redução das liberdades democráticas no país. Alegando a ameaça de uma revolução de tom comunista, o regime militar se instalou promovendo a extinção do pluripartidarismo e a instalação de um sistema bipartidário que quase não abria brecha a uma oposição sistemática ao governo.

Passados vinte e um anos, os militares saíram do poder ao permitirem a volta das eleições diretas e a livre organização partidária. Nesse momento, diversos partidos se formaram numa época em que as demandas da população se avolumavam em um período marcado pela instabilidade econômica e os terríveis índices inflacionários. De tal modo, experimentávamos o retorno da democracia sem ainda reconhecer sua importância e significado.

Atualmente, milhares de brasileiros exercem a sua cidadania através do voto. Entre a descrença e o ceticismo de alguns, questiona-se frequentemente a existência do voto obrigatório para grande parte da população. Ao mesmo tempo, observamos que a crença nas ideologias e partidos políticos perdem espaço para o fácil elogio a figuras políticas que se valem mais do carisma do que de uma convicção para angariar o nosso eleitorado.

 

       O tesouro frágil da democracia

 

Em novembro, o Brasil completará 134 anos como uma república. É uma história relativamente breve, em comparação com os outros países do mundo. Principalmente quando se leva em conta que período mais longo sem ditaduras da história do país é justamente o que vivenciamos, já que o autoritarismo, infelizmente, não é uma novidade na história política brasileira. Desde a redemocratização nos anos 1980, o país vem trilhando um caminho de progresso democrático, ainda que com solavancos aqui e ali, mas sempre com os civis no poder e os militares de volta aos quartéis – onde, afinal, eles pertencem.

Por isso, preocupa a falta de posicionamentos e ações por parte das Forças Armadas em repúdio aos atos golpistas de 8 de janeiro, a maior ameaça à estabilidade democrática nas últimas décadas. À medida em que as investigações sobre a destruição impetrada por uma horda bolsonarista na Praça dos Três Poderes avançam, tem ficado claro a participação de setores do Exército, da Marinha e da Aeronáutica na trama.

Essas duras revelações deveriam ser acompanhadas de uma condenação veemente dos envolvidos e de uma demonstração de compromisso com a democracia. Em vez disso, parece que a cúpula militar decidiu que o problema não é dela, quase como se estivesse tentando ignorar o ocorrido. Essa aparente indiferença à gravidade dos eventos de janeiro é inquietante. Tratar algo tão sério como corriqueiro é um sinal preocupante.

O mais surpreendente é o fato de que, em apenas quatro anos, o país tenha chegado a esse ponto de naturalização de discursos e ações antidemocráticas. A sociedade não pode permitir que a anestesia das consciências tome conta da sociedade. Por isso, o julgamento dos envolvidos no 8 de janeiro pelo Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido marcante ao demonstrar o caminho que as instituições devem seguir no caso: repúdio total e punições exemplares para os responsáveis pela tentativa de golpe.

É possível que, diante da celeridade dos julgamentos no STF, os comandantes estejam esperando alguma condenação para, enfim, se pronunciarem e até punirem os militares que se envolveram na tentativa fracassada de tomar o poder à revelia da população. Mas essa letargia é um erro, que não só provoca uma corrosão constante na imagem das Forças Armadas para a sociedade brasileira, como enfraquece a necessidade de todos os setores da sociedade, incluindo os militares, trabalharem juntos para exercitar e proteger a república.

A democracia é o alicerce sobre o qual o país vem sendo reconstruído lentamente desde o fim da ditadura militar, e é dever de todos protegê-la a todo custo. É preciso lembrar das lições do passado e compreender que a estabilidade democrática não é algo garantido, mas sim conquistado com esforço e vigilância constante. Por isso, é fundamental que as Forças Armadas brasileiras reafirmem seu compromisso com a Constituição e com os valores democráticos que sustentam a república. É preciso ter transparência e responsabilidade, condenando publicamente a tentativa de golpe e punindo com rigor e firmeza todos os que se envolveram no ato. Nossa história nos ensina que a democracia no Brasil não é um mero acaso: é um tesouro frágil, que vem sendo construído dia a dia pela sociedade, e, por isso, é preciso assegurar que ela continue a prosperar no país.

 

       Cautela no embate entre Poderes

 

Chama atenção no noticiário político a tensão entre o Supremo Tribunal Federal (STF), órgão máximo do Judiciário, e o Congresso Nacional, do Legislativo. Decisões recentes da Corte levaram a um movimento coordenado entre as maiores bancadas - a ruralista, do agro e da Segurança Pública - para travar votações importantes ao governo. No Senado, os governistas conseguiram destravar o Desenrola Brasil, cuja Medida Provisória inicial perde a validade neste início de semana.

Ouve-se nos corredores do Congresso, e em falas públicas, sem pudor, críticas à suposta atuação do Judiciário para usurpar a atribuição de fazer as leis no país. A tensão entre os Poderes não é nova e já demonstrou em governos anteriores, especialmente o de Jair Bolsonaro. É preciso, porém, cautela para entender a situação política.

Em primeiro lugar, um embate entre dois ou mais Poderes da República nunca é bom para a estabilidade do país. A forma como a democracia brasileira foi construída prevê, porém, o sistema de pesos e contrapesos entre os Poderes. Ou seja, há de haver tensão quando um dos lados concentra maior protagonismo e força na tomada de decisões.

No momento, o Judiciário tem sim decidido sobre temas latentes no Brasil, como o marco temporal e a descriminalização das drogas. E as decisões desagradam a maioria conservadora do Congresso, já que o Supremo demonstra estar mais no compasso dos novos tempos do que o Legislativo, que insiste em manter posições retrógradas e que já demonstraram ser pessoas para o país. Que o digam os milhares de encarcerados por porte de quantidades pífias de drogas. Negros e de baixa renda, em sua grande maioria.

Agora, dizer que o Supremo está passando por cima do Congresso e tentando legislar é um erro factual e pura retórica de efeito reproduzida por parlamentares insatisfeitos. O STF decide pela interpretação da Constituição, sem jamais alterar seu texto. Se a Corte decide por descriminalizar uma determinada quantidade de maconha, por exemplo, é porque a lei permite tal interpretação.

Nesse embate, sejamos honestos, os ataques partem quase que unilateralmente do Congresso. Preocupa que os parlamentares, representantes do povo, estejam mais preocupados com a manutenção de seu poder de influência sobre a vida do país do que sobre os efeitos nefastos que medidas conservadoras podem ter. Já se cogita endurecer o combate às drogas, o que não funcionou em lugar algum no mundo, e reverter decisão que finalmente deu aos povos originários brasileiros um suspiro de alívio quanto às suas terras.

Não há como saber aonde esse embate vai levar, mas urge que todos os integrantes do poder público discutam não sobre quem tem a prerrogativa de nortear os rumos do país, mas sobre as medidas concretas que devem ser tomadas para podermos caminhar para a frente. Em conjunto.

 

       Mulheres protestam contra PEC da Anistia Partidária, tramitando na Câmara

 

A proposta de emenda à Constituição (PEC) que trata da anistia aos partidos de não pagarem multas por não cumprimento das cotas às candidaturas de mulheres e pessoas negras e, que, flexibiliza as sanções às legendas que apresentaram irregularidades nas prestações de contas (9/2023), teve sua votação adiada pela terceira vez consecutiva na Câmara na última semana. A proposta é controversa e reúne entre seus defensores dois rivais políticos: o PT e o PL.

Em meio aos pedidos ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que indique uma jurista negra para a vaga aberta pela aposentadoria da ministra Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal (STF), se amplia o debate da misoginia e racismo no poder.

“Isso tem a ver com a própria estrutura do patriarcado, a misoginia e o machismo, como a gente tanto critica”, observa, ao Correio, Jolúzia Batista, articuladora política do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), um dos coletivos que compõe a Frente Parlamentar Feminista Antirracista com Participação Popular.

Para ela, o machismo é onde “reside a aliança de todos os partidos, de direita à esquerda”. “O feminismo sempre tem falado sobre isso e uma das questões mais difíceis, há 10 anos pelo menos, que existe uma movimentação muito grande para a reforma do sistema político e uma das questões da proposta feminista era a lista alternada de sexo”.

“Isso nunca passa dentro dos partidos porque, na verdade, o eixo central da estrutura partidária é machista. (...) E é aí onde reside a aliança de todos os partidos. Da direita à esquerda, é não mexer numa estrutura em que os homens ganham”, explica Jolúzia.

A articuladora política do Cfemea avalia, ainda, que a própria forma como a estrutura política eleitoral se organiza é uma evidência do machismo e racismo presentes nos espaços de poder. “Os homens brancos e os proprietários, se não proprietários, os aliançados com a estrutura do poder econômico que também é uma grande marca de todo o nosso processo político eleitoral, no financiamento privado nas campanhas, por exemplo, por mais que a gente tenha feito alguns movimentos tentando mudar essa estrutura. É uma estrutura política que realmente exclui as chamadas ‘populações minoritárias’”.

“As mulheres dentro dos partidos, sobretudo no campo de centro e à esquerda, travam uma luta muito grande contra o sistema partidário”, completa.

A PEC da Anistia foi defendida, ainda na análise de mérito na Comissão de Constituição Justiça e Cidadania (CCJC), pela presidente do PT, a deputada Gleisi Hoffmann (PR). “A multa deve ser para corrigir, não pode ser uma multa que realmente inviabiliza os partidos políticos, porque nesse caso se está contra a democracia, contra os instrumentos que são representativos da democracia. (…) Os órgãos de controle não podem sair aplicando multas de qualquer jeito e inexequíveis”, afirmou a parlamentar em maio.

Porém, a pressão ao governo por mais representatividade ganha corpo no Congresso. O Psol, que contou com um curioso alinhamento com Kim Kataguiri (União-SP), é contrário à medida. Na última terça, Guilherme Boulos (Psol-SP) pediu por um “debate mais amplo” sobre o tema e pontou que “essa anistia é péssima para a democratização dos espaços de Poder e, particularmente, do Parlamento do Brasil”.

Jilmar Tatto (PT-SP) reforçou o pedido e, segundo ele, a bancada petista está interessada em negociar outra porcentagem dos recursos destinados às candidaturas de pessoas negras dos partidos. Na PEC em tramitação, o mínimo previsto é de 20% do fundo partidário e o PT sugere que seja 30%.

O STF estabelece que os recursos das legendas devem ser destinados proporcionalmente a quantidade de candidatos negros ou pardos em ano eleitoral. Se o relatório da PEC for aprovado, seguirá para votação em plenário e precisará de pelo menos 308 votos para ser aprovado. O coordenador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e advogado especialista em direito eleitoral, Renato Ribeiro de Almeida, avalia que a aprovação poderia indicar um grande retrocesso.

"A aprovação dessas PEC implica involução no sistema legal que confere o necessário espaço para as candidaturas femininas e de pessoas pretas. As sanções atuais, especialmente as multas, denotam um caráter pedagógico aos partidos. Caso aprovada a PEC, sem sanções severas, penso que muitos partidos não cumprirão o compromisso de incentivar efetivamente as candidaturas das mulheres e das pessoas pretas", alerta.

A deputada Dandara Tonantzin (PT-MG), relatora da atualização da Lei de Cotas, avaliou como “contraditório” o apoio do PT à PEC, “uma vez que afeta diretamente candidaturas de mulheres e pessoas negras”. “É inadmissível que essa PEC queira impor um retrocesso ao pouco que a gente conseguiu avançar sobre a participação das mulheres e negros na política. Mulheres negras são maioria na sociedade, mas subrepresentadas nos Parlamentos”, critica a parlamentar.

“Como Bancada Negra, a coalização de parlamentares negros de diferentes partidos políticos da qual faço parte, conseguimos transformar em piso os 20% de recursos públicos para o financiamento de candidaturas de pessoas pretas e pardas. E não teto, como a direita e extrema-direita queriam. Essa foi uma articulação da deputada Benedita da Silva”, finaliza.

 

Fonte: Por Rainer Sousa, em Brasil Escola/Correio Braziliense

 

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