Orçamento de Lula reforça desigualdade nos municípios do interior do
País
Na última terça-feira, 19, o presidente Luiz Inácio
Lula da Silva apontou a desigualdade como o maior desafio do mundo durante o
discurso de abertura da Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU). No
Brasil, porém, o governo do petista tem repetido práticas de distribuição do
dinheiro federal do antecessor Jair Bolsonaro e reforçado distorções nos
municípios do País.
O município paraense de Cachoeira do Piriá, a 257
quilômetros de Belém, tem a sexta pior renda do País. Em média, cada um dos 19
mil moradores recebe R$ 38,41 por mês. Não é por falta de recursos federais,
porém, que a vida é tão difícil no lugar.
Somente no primeiro semestre deste ano, o governo
Lula enviou R$ 30 milhões para a prefeitura investir na saúde, na educação e na
assistência social. Entretanto, 87% do dinheiro caiu na folha de pagamento do
município, pagando inclusive o salário do prefeito e assessores
administrativos.
Em junho, apesar dos recursos enviados para
Cachoeira do Piriá, o Ministério Público encontrou uma situação precária no
posto de saúde de Piçarreira, um dos bairros da cidade paraense. O prédio
estava sem pintura e estrutura danificada, com banheiros interditados e uma
farmácia sem medicamentos para hipertensão e diabetes. Também não havia local
para descarte de materiais contaminados.
No geral, o governo Lula não exigiu contrapartida
das prefeituras para os recursos que enviou, repassou dinheiro sem critérios de
aplicação e distribuição para demandas da população e cortou verbas destinadas
a benefícios sociais, destinados diretamente a famílias, e à educação básica.
Ao mesmo tempo, o presidente está com mais dinheiro
para gastar - e escolher onde gastar - em comparação com seus antecessores.
Despesas sem avaliação e cada vez mais obscuras, uma marca do mandato de Jair
Bolsonaro, no entanto, se repetem agora na distribuição dos recursos federais e
se refletem na primeira peça orçamentária encaminhada pelo petista ao Congresso
Nacional.
Na série de reportagens especiais
"Desigualdade - O Brasil tem jeito?", o Estadão percorreu 2.312
quilômetros, passando por 15 cidades do Distrito Federal, Goiás e Tocantins,
para responder por que o País é tão desigual mesmo com tanto dinheiro. Grandes
investimentos feitos no passado criaram ilhas de riqueza e bolsões de pobreza
em volta. Os municípios recebem cada vez mais repasses federais, mas não têm
atacado as principais necessidades da população.
• Lula
diz na ONU que desigualdade precisa 'inspirar' indignação
Na ONU, o presidente disse que a desigualdade
precisa "inspirar" indignação. "Indignação com a fome, a
pobreza, a guerra, o desrespeito ao ser humano", afirmou Lula. A
desigualdade deu a tônica de toda a fala, feita a uma plateia seleta de líderes
globais em Nova York. A prática do governo do petista de repassar dinheiro para
as prefeituras, sem atacar a desigualdade, entretanto, permanece.
A gestão de Lula reservou R$ 376,4 bilhões para
transferir diretamente aos municípios em 2024, um valor recorde. Será um ano de
eleições municipais e os recursos são cobiçados pelos prefeitos, muitos deles
candidatos à reeleição ou padrinhos políticos de quem vai tentar uma vaga nas
urnas, mas o recurso cada vez mais é consumido com folha salarial.
"Podemos ter algum avanço na reforma tributária e na própria revisão dos
gastos, inclusive nas transferências, mas o desafio não é simples. Não tem bala
de prata para essa questão", diz o secretário de Orçamento Federal, Paulo
Bijos.
No orçamento brasileiro, os programas sociais
entraram na lista de cortes. O governo é obrigado a reduzir as despesas se
verificar risco de descumprir alguma regra fiscal do País. Neste ano, diante da
necessidade de bloquear os recursos, conforme o Estadão revelou, os principais
afetados pela tesourada do governo foram o Auxílio Gás, benefício dado para a
compra do gás de cozinha a famílias carentes, a educação básica, setor que
ainda enfrenta atrasos e é apontado como essencial para a redução das
desigualdades regionais. Essas ações ficaram sem a garantia de recursos até o
fim do ano. Verbas herdadas do extinto orçamento e emendas parlamentares foram
blindadas.
O orçamento de 2024 é o primeiro encaminhado por
Lula ao Congresso, já que essa peça é sempre proposta pelo Executivo no ano
anterior. O governo promete aumentar investimentos, mas isso vai depender de um
dinheiro que a União ainda não tem. Além disso, as transferências diretas para
municípios vão aumentar em ano de eleição de prefeitos e vereadores, incluindo
repasses sem critérios e nem transparência, sem nenhuma contrapartida de como
esse recurso vai resolver os problemas sociais das cidades brasileiras.
O Bolsa Família, principal vitrine da gestão
petista na área social, não tem reajuste previsto. Além disso, o governo
escolheu colocar R$ 21,2 bilhões do programa em uma programação que hoje ele
não possui autorização para usar e que dependerá da inflação deste ano e de
aprovação do Congresso.
Na avaliação do ex-presidente do Banco Central
Armínio Fraga, o que falta é prioridade para escolher onde gastar. "A
previdência e a folha de pagamento do setor público somam quase 80% do gasto, e
fora isso têm os subsídios tributários. É um ponto totalmente fora da curva em
qualquer país do planeta", diz o economista. "Para fazer o debate
para valer, o governo tem que ter a coragem de cutucar essas áreas, e eu não
vejo nenhum sinal de que isso vai acontecer."
• Saúde
e educação podem ficar com menos recursos
Não bastasse o orçamento sem garantia, os gastos
com saúde e educação podem diminuir a partir do ano que vem. O governo vai
propor uma revisão nos valores mínimos exigidos pela Constituição para as duas
áreas, alegando necessidade de revisão da máquina e maior espaço para gastar
com outras coisas. Não se sabe ainda quais prioridades serão colocadas no lugar
e como ficarão os investimentos em escolas, hospitais e postos de saúde.
Enquanto os mínimos de saúde e educação estão na mira, nenhum debate é feito
sobre as emendas parlamentares, que também estão vinculadas a pisos
constitucionais.
O valor programado para as emendas é de R$ 37,7
bilhões no próximo ano. Na prática, o governo abriu mão de planejar essa
parcela do gasto e entregou a definição para os parlamentares, sem nenhum
critério nem transparência. Dentro desse bolo, a emenda Pix, revelada pelo
Estadão, pode chegar a R$ 12,5 bilhões em 2024, mais do que os R$ 7 bilhões de
2023. Na prática, um recurso que o País transfere para as prefeituras sem saber
como vai ser usado, antes de qualquer compromisso com políticas públicas e sem
fiscalização, pois não há prestação de contas. Totalmente na contramão do
discurso adotado pelo governo sobre planejamento e avaliação da qualidade das
despesas.
O secretário de Orçamento Federal reconhece as
distorções atuais nas contas públicas. Ele afirma que o governo procura
combater a desigualdade com medidas mais urgentes, como a retomada da
valorização real do salário mínimo e aumento da merenda escolar e da escola em
tempo integral.
Para questões mais complexas, no entanto, planeja
uma revisão de todos os gastos e uma avaliação das políticas públicas antes de
mudar os rumos. "Se a avaliação concluir que uma política não entrega os
melhores para redução de desigualdade, ela pode ceder espaço para que uma nova
política pública seja formulada", afirma Paulo Bijos.
• Transferências
não têm sido capazes de reverter desigualdade
Para o pesquisador do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) Pedro Ferreira de Souza, as transferências
governamentais não têm sido capazes de reverter a desigualdade. Os indicadores
melhoraram em 2022, muito por conta das medidas eleitoreiras do governo Jair
Bolsonaro, e devem ter um novo avanço neste ano, mas ainda esbarram nos
problemas do mercado de trabalho e nas distorções da cobrança de impostos sobre
os mais pobres.
Na prática, o Brasil ainda não recuperou as perdas
da pandemia de covid-19 e da crise econômica da década passada, que aumentaram
a pobreza, reduziram a renda dos brasileiros e aumentaram a desigualdade.
"Se tivéssemos cinco anos bons nesses indicadores, poderíamos falar que
estamos melhores. Mas ter cinco anos bons no Brasil é uma coisa que não
acontece há muito tempo. O que vivemos é uma ida e volta", afirma o
pesquisador.
Fazer
mais com menos
Por definição, a eficiência do gasto do setor
público é menor do que a do setor privado, por vários motivos, como as
necessárias amarras e controles que precisa haver na área pública, a
descontinuidade de projetos quando da mudança de governo, as pressões políticas
para alocação de recursos, a falta de capacidade de gestão de muitos entes
públicos, conduzidos por interesses que pouco tem a ver com eficiência e com
foco no interesse público. Então, quanto mais recursos são transferidos da
sociedade para o Estado, via aumento de arrecadação de impostos, como estamos
vendo hoje no Brasil, maior a ineficiência na alocação de recursos do país, e
consequentemente menor a produtividade e a competitividade da economia.
O Brasil tem a maior carga tributária entre os
países em desenvolvimento, o que potencializa o problema de má alocação de
recursos. O Estado, que deveria arrecadar para servir a sociedade, cada vez
mais serve-se dela. Estudos têm demonstrado que nós temos a pior relação do
planeta entre impostos cobrados e retorno à sociedade. As despesas correntes,
isto é, os gastos para manter a máquina pública, tem crescido nos últimos anos,
chegando a 20% do PIB, forçando o aumento da carga tributária, que passou de
25% na década de 90 para a faixa de 33% a 35% nos últimos anos. Para
investimentos, essenciais para o crescimento do país, praticamente não tem
sobrado recursos públicos.
O Estado precisa aprender a gastar com mais
eficiência o enorme volume de recursos que já arrecada. Temos que entender que
o avanço vem de gastar melhor e não de gastar mais. Na educação, por exemplo,
gastamos perto de 6% do PIB, mais do que países que são referência e tem as
melhores colocações no teste PISA, onde estamos entre os últimos colocados. O
mesmo vale para a saúde, para a segurança e outros serviços públicos.
Ter preocupação com a política social e com o
crescimento econômico, para a geração de empregos, é proposta legítima de um
plano de governo. A forma de promover as duas coisas é que faz toda a
diferença. Experiências de diversos países demonstraram que a via do aumento de
gastos alimentado por majoração de tributos tem gerado resultados muito mais tímidos
e de alcance curto do que a via da redução de gastos alicerçada em aumento de
sua eficiência. A primeira alternativa é a mais fácil, mas alimenta a inflação,
pressiona a taxa de juros, o que acaba inibindo o crescimento e prejudicando
justamente os mais pobres.
Os atalhos sempre parecem a solução mais simples,
mas, se quisermos preparar o país para um crescimento mais robusto e
consistente, temos que estar dispostos a pavimentar o nosso caminho.
Sem dúvida a responsabilidade social é pauta
obrigatória quando se discutem prioridades do país, especialmente no prover
igualdade de oportunidades, além de serviços de saúde, educação e segurança
adequados. Mas a solução não deve vir por meio de extração de mais recursos da
sociedade, isto é, de aumento de carga tributária, que já é muito elevada. Uns
mais, outros menos, todos já pagamos demais. É preciso um esforço para fazer
mais com menos.
Fonte: Agencia Estado/Correio Braziliense
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