Conflito de Nagorno-Karabakh: entenda os impactos geopolíticos da crise
no Cáucaso
Em 19 de setembro, o Azerbaijão anunciou o início
de uma operação militar no enclave separatista de Nagorno-Karabakh, classificando
as ações como "medidas antiterroristas". Os bombardeios na região de
maioria armênia deixaram mais de 200 mortos e representaram o rompimento de um
cessar-fogo entre Armênia e Azerbaijão, mediado pela Rússia, ainda em 2020.
O risco de uma nova guerra de grande escala
envolvendo os dois países acabou resultando em um acordo de trégua em menos de
24h após o início dos ataques. Na prática, foi uma capitulação das forças
de Nagorno-Karabakh. O enclave
conta com a presença de tropas de paz russas e se insere em um intrincado jogo
de interesses geopolíticos no Cáucaso. E, apesar da trégua, abre-se um enorme
risco humanitário para a população civil de Karabakh, que passa a ser
controlada pelo Azerbaijão.
Na última sexta-feira (22/09), as unidades armadas
da não reconhecida República de Nagorno-Karabakh começaram a entregar armas e
equipamento militar como parte do acordo de trégua. A informação foi informada
pelo Ministério da Defesa da Rússia.
"Em cumprimento aos acordos alcançados, as
formações armadas de Karabakh iniciaram a entrega de armas sob o controle das
forças de manutenção da paz russas", disse a pasta.
Segundo o Ministério da Defesa, já foram entregues
seis unidades de veículos blindados, mais de 800 unidades de armas ligeiras e
antitanque, bem como cerca de cinco mil munições. Além disso, a Rússia informou
que as forças de paz russas realizarão a entrega de mais de 50 toneladas de
suprimentos humanitários para a população civil de Nagorno-Karabakh, inclusive
através do corredor de Lachin, que ficou bloqueado por 10 meses.
A região de Nagorno-Karabakh é um enclave
separatista de maioria armênia dentro do território do Azerbaijão. A
independência é reivindicada desde 1994, mas não é reconhecida
internacionalmente. A disputa entre Armênia e Azerbaijão pela região levou os
países a duas guerras: uma entre 1991 e 1994, e outra em 2020. Em ambos os
conflitos, o cessar-fogo foi mediado pela Rússia, que mantém tropas de
manutenção de paz no enclave separatista que, por sua vez, tem cerca de 120 mil
armênios vivendo na região.
A operação militar lançada pelo Azerbaijão na
última terça-feira reacendeu a possibilidade de uma nova grande guerra no
Cáucaso, considerando que o governo azeri deixou claro que apenas rendição
"total e incondicional" da presença militar armênia da região
separatista poria fim à operação militar.
"A única forma de alcançar a paz e a
estabilidade na região é a retirada incondicional e completa das Forças Armadas
armênias da região de Karabakh, no Azerbaijão, e a dissolução do chamado regime
(armênio)", declarou o Ministério da Defesa do país.
A Armênia, por sua vez, negou que tivesse tropas
atuando na região separatista de Nagorno-Arabakh. Ao mesmo tempo, o
primeiro-ministro armênio, Nikol Pashinyan, é alvo de críticas e intensos
protestos na capital de Yerevan. Desde que eclodiu a operação militar azeri,
manifestantes foram às ruas durante a semana e acusaram Pashinyan de não apoiar
a população armênia durante a ofensiva do Azerbaijão.
Houve acordo para o fim da ofensiva militar, mas a
Armênia e Azerbaijão não chegaram a assinar um acordo de paz propriamente dito.
O cessar-fogo está longe de representar um cenário estabilidade, considerando
que não houve qualquer acerto sobre o futuro da população armênia local.
Em um pronunciamento na última quinta-feira
(21/09), o primeiro-ministro Nikol Pashinyan afirmou que, de acordo com a
avaliação do governo, que "não há ameaça direta à população civil de
Nagorno-Karabakh". A declaração contradiz a fala do ministro das Relações
Exteriores da Armênia, Ararat Mirzoyan, que, durante uma reunião do Conselho de
Segurança da ONU, afirmou que "a intenção do Azerbaijão é completar a
limpeza étnica da população arménia de Nagorno-Karabakh".
A situação da população armênia na região
separatista já vinha sendo crítica nos últimos nove meses em meio a uma
escalada da tensão entre Baku e Yerevan. Em dezembro de 2022, o Azerbaijão
bloqueou o corredor de Lachin, a única estrada que liga Nagorno-Karabakh à
Armênia, deixando a população do enclave isolada. Ao mesmo tempo, Baku realizou
interrupções no fornecimento de gás, alimentos e medicamentos a Karabakh, o que
tem sido encarado com uma violação do acordo de cessar-fogo de 2020, além de
ser uma forma de forçar um êxodo da população armênia da região.
Na ocasião, a diplomacia armênia exortou a Rússia a
intervir com suas tropas de manutenção de paz e garantir acordo de 2020, que
prevê que o corredor de Lachin deve estar sob o controle das forças russas.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o
cientista político e escritor russo, Stanislav Byshok, afirma que a questão que
surge agora não diz respeito ao status legal do território, mas sobre os
"direitos culturais dos armênios que estão na região".
"Isso é uma questão de respeito à
especificidade nacional da região, digamos assim, não é uma questão de status
legal da região. Essa questão é provavelmente bem mais complicada do que a
vitória militar que aconteceu de forma rápida, eficiente e com uma capitulação
[de Nagorno-Karabakh] em um dia", afirma.
De acordo com ele, com o controle exercido pelo
Azerbaijão sobre o território separatista, o destino da população local
"depende somente da boa vontade de Baku".
"Se os armênios locais reconheceram a
jurisdição de Baku sobre seu território, em troca, o Azerbaijão pode concordar
em conceder a eles certa "autonomia cultural", analisa.
A expectativa é que, diante desse cenário, a atual
situação pode provocar uma evacuação em massa da população armênia da região de
Nagorno-Karabkh. O vice-diretor do Instituto de História e Política da
Universidade Estatal Pedagógica de Moscou, Vladimir Shapovalov, é mais enfático
e afirma que o êxodo da população local é inevitável.
“Tudo indica que haverá um êxodo de parte
significativa da população armênia do Azerbaijão, e as pessoas que moram em
Karabakh devem ir para diferentes destinos, Armênia, Rússia, ou até outros
países como os EUA, a França, mas os principais destinos devem ser a Armênia e
a Rússia”, disse o analista ao Brasil de Fato.
Segundo ele, “a posição que o Azerbaijão assumiu
nos últimos anos não se enquadra nos cânones de uma resolução democrática e
jurídica da situação, não se enquadra nos cânones de tradicionais relações de
igualdade de direitos entre povos”.
“Acredito que o Azerbaijão não irá permitir certas
divisões, inclusive do ponto de vista cultural e nacional de Karabakh. Por
isso, provavelmente significativa parcela da população deverá deixar
Nagorno-Karabakh”, completa.
A investida do Azerbaijão contra o enclave de
maioria armênia está associada a uma falta de apoio concreto da comunidade
internacional à Armênia e a uma intrincada posição de Baku na arena
internacional, que tem a guerra da Ucrânia como pano de fundo.
Azerbaijão tem benefícios geopolíticos com guerra
da Ucrânia
Com a guerra da Ucrânia, o Azerbaijão pôde usufruir
de ganhos estratégicos ligados à dinâmica de sanções do Ocidente contra a
Rússia. Com o corte das importações do petróleo e gás russo por parte dos
países ocidentais, o Azerbaijão, que é rico em combustíveis fósseis, passou a
ser uma alternativa para os EUA e a União Europeia, alavancando a compra de
petróleo e gás do país do Cáucaso. Ao mesmo tempo, o Azerbaijão virou uma
alternativa para as exportações russas de recursos energéticos, revendendo o
excedente do consumo interno de gás e petróleo para o Ocidente.
Essa dinâmica cíclica da comercialização de
recursos energético garantiu ao Azerbaijão um status econômico e politicamente
privilegiado em meio à crise entre a Rússia e potências ocidentais.
Por outro lado, a Rússia, tradicional aliada da
Armênia, atualmente tem uma relação instável com o primeiro-ministro do país,
Nikol Pashinyan, que vem demonstrando uma proximidade com os EUA, e acenando
para a possibilidade de realizar exercícios militares conjuntos com Washington.
Por isso, Moscou tem grande interesse em manter a
sua influência no Cáucaso, mas o envolvimento na guerra da Ucrânia impede o
Kremlin de intervir mais enfaticamente no conflito.
Para o cientista político Vladimir Shapovalov, este
é um objetivo-chave para a Rússia: que o Cáucaso do Sul não seja uma esfera de
influência dos EUA. De acordo com ele, para a Rússia, na atual situação, “a
presença militar na Armênia é uma importante garantia de estabilidade na
região”.
Os interesses da Rússia de manter sua presença e
influência na região, no entanto, é limitada por estar plenamente voltada para
o front da guerra da Ucrânia. Ao se pronunciar sobre o conflito, Moscou fez um
apelo para o fim das hostilidades, mas classificou a crise como um assunto
interno do Azerbaijão e celebrou a resolução da operação militar de Baku.
Assim, a inação da comunidade internacional, em
particular, da própria Armênia e da Rússia, na defesa das reivindicações de
Nagorno-Karabakh cria um cenário de predomínio do Azerbaijão na região. O
controle militar e jurídico está consolidado com os últimos desdobramentos. Já
o conflito étnico no enclave é nebuloso e pouco promissor do ponto de vista
humanitário.
Ø Separatistas armênios negociam retirada de tropas com Azerbaijão
Os separatistas armênios de Nagorno-Karabakh
afirmaram que estão negociando a retirada de suas tropas do enclave. O
Azerbaijão reivindicou o controle da região após uma ofensiva militar relâmpago.
De acordo com um comunicado divulgado pelas
autoridades da região, “as negociações estão em curso com a parte azerbaijana,
com a mediação dos soldados russos de manutenção da paz, para organizar o
processo de retirada das tropas e garantir o retorno para casa dos cidadãos
deslocados pela agressão militar”.
As partes também estão discutindo “o procedimento
de entrada e saída dos cidadãos” de Nagorno-Karabakh, que tem ligação com a
Armênia por uma única rodovia, o corredor de Lachin.
O governo do Azerbaijão e os separatistas
armênios realizaram na quinta-feira a primeira rodada de
negociações para a “reintegração” do enclave, que
terminou com o anúncio de que outra reunião acontecerá em breve.
Os separatistas se comprometeram a entregar as
armas como parte de um acordo de cessar-fogo que acabou com a ofensiva de um
dia do Azerbaijão na região de maioria armênia. Moscou anunciou, nesta sexta,
que as tropas separatistas armênias já tinham entregue seis blindados e mais de
800 armas leves com munições.
O ministério da Defesa russo também informou, por
meio de nota, ter detectado duas violações do cessar-fogo acordado na
quarta-feira, um número inferior ao da véspera. Segundo os separatistas
armênios, a operação militar do Azerbaijão deixou pelo menos 200 mortos e 400
feridos.
Nagorno-Karabakh já foi sacudida por duas guerras
entre as antigas repúblicas soviéticas do Cáucaso, Azerbaijão e Armênia: uma,
de 1988 a 1994, com 30.000 mortos; outra, em 2020, com 6.500 mortos.
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Capital sitiada
Segundo Armine Hayrapetyan, porta-voz das
autoridades de Nagorno-Karabakh, as tropas do Azerbaijão cercaram Stepanakert,
capital da região separatista, e a população está “escondida nos porões”.
“As pessoas
temem que os soldados azerbaijanos entrem na cidade a qualquer momento e
comecem a matar”, acrescentou a porta-voz. Segundo os separatistas armênios, a
operação militar do Azerbaijão deixou pelo menos 200 mortos e 400 feridos.
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Longa espera
No corredor de Lachin, várias pessoas esperavam
nesta sexta-feira, perto de um posto de controle, o retorno de familiares
bloqueados no enclave.
Criticado por não ter enviado ajuda a
Nagorno-Karabakh, o primeiro-ministro armênio, Nikol Pashinyan, admitiu, no
Conselho de Ministros, que “a situação” continua “tensa”. Mas “há esperança de
uma dinâmica positiva”, acrescentou o chefe do governo armênio, segundo o qual
o cessar-fogo que entrou em vigor na quarta-feira entre os separatistas armênios
e o Azerbaijão está sendo “globalmente” respeitado.
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Protestos
Ainda nesta sexta, novas manifestações contra
Pashinyan ocorreram nas ruas da capital armênia, Yerevan, que terminaram com 98
novas detenções.
O primeiro-ministro acusou a Rússia, que tem um
contingente destacado em Nagorno-Karabakh desde a última guerra, em 2020, de
ter falhado em sua missão de manutenção da paz. Segundo o Azerbaijão, seis
soldados russos desta unidade morreram durante a ofensiva. O presidente Ilham
Aliyev pediu desculpas a seu homólogo russo, Vladimir Putin, por estas mortes.
A vitória do Azerbaijão poderia levar a um
deslocamento maciço de 12 mil habitantes de Nagorno-Karabakh, embora a Armênia
tenha garantido que não prevê qualquer evacuação em massa. Yerevan informou, no
entanto, estar pronta para receber “40 mil famílias” de refugiados.
De acordo com a agência estatal de notícias do
Azerbaijão, a Azertag, Baku enviou 40 toneladas de ajuda humanitária para a
região nesta sexta-feira. Mais de 10 mil pessoas, incluindo mulheres, crianças
e idosos, já foram retiradas.
Fonte: Brasil de Fato/rfi
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