domingo, 24 de setembro de 2023

Argentina cogita voltar a política econômica que a faliu

O tango nasceu na periferia de Buenos Aires no fim do século XIX, influenciado pelos estilos musicais de imigrantes italianos e espanhóis. No princípio, era uma música dançante e bem-humorada, mas com o tempo ganharia contornos graves e dramáticos. Não poderia haver referência melhor para definir a história da Argentina. Há 100 anos, o país chegou a ser uma das dez maiores economias do mundo, com uma vitalidade financeira e cultural que rivalizava com a pujança das metrópoles europeias. Nos últimos anos, contudo, governos desastrosos levaram a um processo de declínio que parece não ter fim. Agora, a inflação anual está em 135%, os índices de pobreza atingem 40% da população e a moeda local, o peso, desvaloriza-se velozmente. À beira do precipício, a Argentina, mais uma vez, flerta com o populismo. Depois de aventuras malsucedidas de candidatos de esquerda, é a vez do radical de direita Javier Milei liderar as pesquisas para o pleito que ocorrerá em 22 de outubro. Milei defende, entre outras propostas questionáveis, o fechamento do Banco Central e o fim do ensino público. Uma de suas ideias, contudo, merece ser levada a sério e discutida com profundidade.

O candidato do partido A Liberdade Avança prometeu, se eleito, dolarizar a economia argentina. Segundo ele, trata-se do único caminho possível para acabar com a inflação no país. Em linhas gerais, seu plano é parar de imprimir cédulas do peso argentino e estabelecer que toda e qualquer transação financeira passe a ser feita em dólar. “No curtíssimo prazo, é impossível fazer isso, simplesmente porque a Argentina não tem dólares suficientes”, afirma Fabio Giambiagi, ex-economista-chefe do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e pesquisador associado da Fundação Getulio Vargas. As reservas cambiais da Argentina são consideradas baixas, perto de 26 bilhões de dólares. Para efeito de comparação, o estoque do Brasil é de aproximadamente 350 bilhões de dólares. Para engordar o cofre, Milei tem dito que vai vender parte dos títulos em poder do Banco Central no mercado secundário, mas os números que ele brande são mirabolantes, de até 60 bilhões de dólares. A questão é: quem compraria tudo isso de um país com pouca credibilidade? Ressalte-se ainda que a renúncia à gestão monetária não é bem-­vista pelo mercado internacional. “Toda vez que um país abre mão de padrões de controle, está dizendo que é tão incapaz que prefere dar para outro o cuidado de suas responsabilidades fiscais”, diz Alexandre Chaia, professor de finanças do Insper.

Na história recente, nações como El Salvador, Equador, Micronésia, Panamá, Porto Rico e Timor Leste — que estão longe de ser potências econômicas — incorporaram a moeda americana. O exemplo mais próximo é o do Equador. Em janeiro de 2000, o presidente Jamil Mahuad Witt anunciou a dolarização da economia do país. A medida promoveu a estabilidade monetária, algo que não era visto desde o longínquo 1970, mas eliminou a possibilidade de o governo utilizar políticas cambiais para responder a choques externos. Qual foi o efeito prático da iniciativa? “O crescimento econômico no Equador tem sido positivo desde a dolarização”, disse a VEJA o economista Francisco Zalles, um dos pais da medida e que atualmente apoia Milei na replicação do modelo na Argentina. Entre 2000, quando a economia equatoriana foi dolarizada, e 2022, o PIB do país cresceu, em média, 2,9% ao ano. No Brasil, a taxa anual média foi de 2,3%. Para Zalles, o processo de dolarização é simples, dado que não existe quantidade “mágica e perfeita” de dólares em reserva para se alterar uma economia nesse nível de profundidade. “Apenas é necessário que o governo aceite abrir mão de seu privilégio de imprimir dinheiro e devolva os dólares que mantém em troca dos pesos em circulação”, diz. Zalles pontua ainda que, de certa forma, a economia argentina já é dolarizada. Com a cotação do peso caindo cotidianamente, as operações em dólar são amplamente aceitas no país.

Não é a primeira vez que a Argentina flerta com a dolarização para conter a escalada dos preços. No início dos anos 1990, o governo de Carlos Menem adotou a paridade fixa entre o peso argentino e a moeda americana. A inflação foi domada e houve um breve período de expansão econômica. Mas o sistema era frágil, sem controle fiscal, e com o tempo o cenário mudou. Uma alta de juros nos Estados Unidos tornou a geração de divisas mais difícil para a Argentina. Com a economia paralisada e pouco competitiva, o país passou a depender cada vez mais de financiamento externo, o que levou muitos argentinos a enviar seus dólares para o exterior. Por sua vez, a fuga de capitais resultaria na escassez da moeda americana, processo que, afinal, tornaria a dolarização insustentável. No momento mais dramático, em 2001, a Argentina teve protestos, saques e cinco presidentes em doze dias. Em 2002, já com o peronista Eduardo Duhalde eleito, foi decretado o fim da paridade cambial.

O Brasil também já flertou com a dolarização. Lançado em 1994, o Plano Real estabeleceu, de início, a criação da Unidade Real de Valor (URV), uma espécie de índice balizador entre cruzeiro e real, que tinha paridade em dólar. A grande sacada foi a dupla indexação da economia para conversão da inflação: enquanto a disparada de preços corroía o debilitado cruzeiro, a URV pouco se alterava. Quando o real entrou em circulação, a inflação do índice, que era baixíssima, foi adotada oficialmente, expurgando os efeitos da inflação passada. O resto é história.

É consenso entre especialistas que a estabilidade na Argentina, mesmo que conquistada por meio da dolarização de sua economia, seria benéfica para o Brasil. Os argentinos são nossos terceiros parceiros comerciais, atrás de americanos e chineses. No início de agosto, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, sugeriu que a Argentina passasse a pagar pela compra de produtos do Brasil em yuan, a moeda chinesa, em razão da escassez de dólares. Com a economia dolarizada, entraves como esses seriam superados. Nação de múltiplas faces, a Argentina merece destino melhor do que sugerem as crises intermináveis. Para isso, como por aqui, terá de fazer reformas e controlar as contas. Só assim seus lindos tangos talvez embalem momentos mais felizes.

 

Ø  Os resquícios da guerra que seguem no cotidiano da Colômbia

 

Ao entrar em um shopping center de Bogotá, é bem provável que um segurança uniformizado peça para o cliente desligar o motor e abrir as portas e o porta-malas para uma revista. Um cão farejador treinado participa da ação. O objetivo é verificar se há uma bomba no veículo.

“Isso é necessário?”, perguntou a reportagem da BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, a um segurança do shopping Retiro, no norte da capital colombiana, há poucos dias.

“Bem, você não se lembra que ali na frente (no shopping Andino) a guerrilha plantou uma bomba há cinco anos que matou três pessoas?”

A sociedade colombiana está em estado de alerta. Não está claro se é devido a um trauma herdado de conflitos armados, que teve o seu auge nos anos 1990, ou porque a guerra ainda continua de alguma forma, ou porque a criminalidade tomou conta da sensação de segurança da sociedade. Ou se é um pouco de todas essas coisas.

De qualquer forma, as medidas de segurança que podem ser inusitadas em outros países da América do Sul, também assolados pela criminalidade, não se limitam aos cães de guarda. Na Colômbia, é comum ser inspecionado pelos cachorros ao entrar a pé em um shopping ou mesmo pela polícia.

Também é comum ver soldados armados com fuzis patrulhando ruas e rodovias. E a indústria da segurança privada, que inclui escoltas, guardas e sistemas de monitoramento, é maior do que a polícia.

Hoje a Colômbia não é muito mais violenta do que outros países da região.

Embora os homicídios tenham aumentado no ano passado, o número de 26 mortes violentas por 100 mil habitantes – o principal critério utilizado para medir a violência – não é superior ao do Equador ou do México, e é inferior ao da Venezuela e de Honduras. No Brasil, essa taxa foi de 23,4 por grupo de 100 mil habitantes no ano passado.

Em Bogotá, o número de 12,8 homicídios por 100 mil habitantes, semelhante ao de Medellín, é próximo ao do Uruguai ou do Panamá e inferior ao da Guatemala e do próprio Brasil.

A Colômbia, então, deixou de ser um dos países mais violentos da América Latina. A violência diminuiu principalmente nas grandes cidades.

No entanto, na Colômbia é possível ver medidas que refletem um sentimento forte de insegurança, marcado por uma história traumática e, também, por uma enorme indústria de segurança particular.

·         ‘A guerra acabou, mas o crime não’

É difícil saber quais destas medidas são exclusivas da Colômbia. A segurança pública é um problema em toda a América Latina e as soluções têm sido, em geral, as mesmas.

Cães de guarda e antiexplosivos, que nos casos de shopping centers vivem e dormem no mesmo prédio há anos, surgiram nas décadas de 80 e 90, quando as bombas dos traficantes de drogas, primeiro, e depois dos guerrilheiros, tornaram-se relativamente comuns nas cidades.

Cães de guarda também são comuns no México.

Em 2019, naquele país, foi oficializada e regulamentada a presença de soldados nas ruas para combater o crime. Na Colômbia isso ocorreu na década de 1970, em meio a uma onda de decretos presidenciais de emergência denominados “estado de sítio.”

Há também o exemplo da segurança privada, indústria que tanto no México como na Colômbia representam 1,5% do PIB e são as maiores da região, embora estes números não incluam a segurança privada informal, que pode ser tão grande ou maior que o mercado regularizado.

A indústria, em todo caso, conta com 800 empresas e 400 mil funcionários na Colômbia: seguranças, escoltas, motoristas, treinadores. É um quarto dos funcionários da Polícia Nacional.

José Rivera é dirigente sindical da empresa Fortox, uma das maiores do setor. Ex-militar, trabalha como segurança há 27 anos. Para ele, as medidas são justificadas.

“A guerra acabou, mas o crime não, e o crime também é prejudicial”, diz ele. “Não vejo problema em, por exemplo, ao entrar em um prédio, a pessoa ter de passar por uma revista, com o documento de identidade e registro”.

Na Colômbia é comum que para entrar em um prédio seja necessário se registrar junto a um segurança - isso acontece em muitas cidades do Brasil, também. O procedimento é comum em edifícios de escritórios, universidades e edifícios residenciais.

Mas nada é mais difícil do que entrar como visitante em condomínios residenciais fechados, fenômeno que o arquiteto e urbanista Fernando de la Carrera considera o produto mais “transcendental desta sociedade do medo”.

Eles cresceram em áreas ricas e pobres das cidades, especialmente em Bogotá. E incluem diversas torres cercadas por bares, tudo monitorado por câmeras em todas as esquinas. Esses locais são vigiados por seguranças e cães de guarda e ocupam blocos inteiros.

Por volta de 40% dos 9 milhões de habitantes de Bogotá vivem em um condomínio fechado. Só Ciudad Verde, bairro de condomínios na zona sul, moram 200 mil pessoas - é uma cidade privada.

“O sucesso do modelo de condomínio fechado é alimentado pelo medo. Seu crescimento coincide com o aumento da violência que tomou conta do país a partir da década de 1980”, escreve De la Carrera em Rejalópolis, um estudo que publicou com a Universidade dos Andes.

“O medo nos levou a sacrificar o espaço público e as interações sociais e econômicas que ele gera”, afirma. “A segregação espacial que motiva os complexos fechados aumenta o sentimento de medo, de isolamento e fomenta mais do mesmo: desconfiança, insegurança, mais medo e mais grades”, diz De la Carrera.

Mas medidas extremas de segurança não falam apenas de um presente violento, mas também de um passado revivido cada vez que ocorre um acontecimento violento. Ou seja, o passado é sentido no presente.

·         Acompanhantes e Toyotas

A Unidade de Proteção Nacional (UNP, na sigla em espanhol) é a organização estatal responsável pela segurança dos colombianos em risco de serem assassinados: funcionários públicos, congressistas, líderes camponeses e uma longa lista de comunidades vulneráveis.

A entidade conta com cerca de 2 mil guarda-costas e outros 8 mil terceirizados de empresas de segurança privada, além de caminhões e armas.

Cerca de 10 mil guarda-costas no país é um número semelhante ao que é relatado pelo Serviço de Proteção Federal, órgão semelhante no México, um país com o dobro do tamanho da Colômbia.

“A segurança deveria ser a salvação do medo, mas na realidade é um negócio”, diz Augusto Rodríguez, diretor da UNP. “E tem gente que brinca com isso, que aumenta ou diminui o risco de acordo com o seu interesse, porque o medo é o terreno fértil para a corrupção”.

Rodríguez acompanhou o presidente Gustavo Petro ao longo de sua carreira: estiveram juntos na guerrilha, no Congresso e na Prefeitura de Bogotá.

“Proteger a vida é a linha política central deste governo”, afirma, para explicar por que alguém tão próximo do presidente preside um cargo de segundo escalão.

Desde que assumiu o cargo, Rodríguez diz ter encontrado diversos esquemas de corrupção no órgão: carros que não são usados ​​mas utilizam cota de gasolina, veículos usados para traficar drogas, esquemas de venda de armas legais a grupos ilegais e desvios na estrutura salarial dos funcionários.

“Queremos destoyotizar a Colômbia”, diz, referindo-se aos caminhões Toyota que chegaram ao país na década de 80 e eram símbolo dos narcotraficantes – quase sempre blindados e brancos. Hoje, esses veículos são um símbolo de status.

Rodríguez não acredita que as medidas de segurança sejam exageradas, em geral. “A violência persiste porque persiste a desigualdade, persistem os problemas fundiários (...) Muitos não precisam de esquemas de segurança, têm mais um problema de mobilidade do que de segurança, mas a maioria sim.”

Parece, em todo o caso, que existe uma discrepância entre a realidade dos dados da violência, que hoje é menor do que antes, e as medidas que os colombianos tomam para se protegerem, que só aumentam.

Para Luis Ignacio Ruiz, criminologista e psicólogo social da Universidade Nacional, não existe “medo injustificado”.

“O medo do crime envolve muitas outras emoções que não falam apenas de insegurança”, afirma. “Em vários estudos descobrimos que as pessoas se declaram inseguras quando o seu medo, na realidade, é a pobreza, a falta de educação ou a fome”.

“E também é preciso acrescentar que os números da violência nunca estão completos, porque omitem uma série de crimes que não são noticiados, além do fato de os meios de comunicação, que dão prioridade ao crime, e agora as redes sociais, gerarem um efeito de repetição do evento violento”.

A maior parte do território colombiano já não está em guerra. Mas lembrá-la não é apenas um exercício mental: tem implicações materiais no presente.

E isso deixa os colombianos com medo.

 

Fonte: Veja/BBC News Mundo

 

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