Declaração de óbito de jovem morto na baixada Santista põe em dúvida
versão da polícia
“O corpo do Vinicius estava muito machucado, todo
apanhado. Tinha marca de botina. [Na maca] Ele estava de barriga para cima, na
parte do estômago e peito estava fundo e com marca de botina”, contou um familiar
de Vinicius de Souza Silva, 20 anos, morto na manhã desta segunda-feira (21)
durante ação da Polícia Militar (PM) na Baixada Santista, litoral norte de São
Paulo. O jovem é a vigésima pessoa morta por intervenção policial durante a
Operação Escudo, que iniciou no fim de julho, como resposta à morte do soldado
da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), Patrick Bastos Reis.
Segundo Boletim de Ocorrência, registrado no 5°
Delegacia de Polícia de Santos, ao qual a reportagem teve acesso, Vinicius teria
atirado contra os policiais e com ele teriam sido apreendidas uma arma e
drogas. Moradores e familiares do jovem contestam a versão. Eles dizem que não
houve confronto com a polícia e que o rapaz foi pisoteado.
A Agência Pública teve acesso, com exclusividade, à
declaração de óbito dele, emitida dia 22 de agosto pela Santa Casa da
Misericórdia de Santos. O documento aponta que a causa da morte foi choque
“hemorrágico, trauma torácico e ferimento por arma de fogo”.
A pedido da reportagem, o perito forense Eduardo
Llanos analisou a declaração de óbito de Vinicius. Segundo Llanos, “para
produzir um trauma torácico, a bala teria que subir pela perna, passar pela
pelve, atingir a barriga e posteriormente o tórax. Não existe esse desvio de
trajeto num corpo em movimento quando ele é atingido por um projétil na perna”.
O perito ressalta que “um projétil de arma de fogo
e uma facada no peito ou em qualquer parte do tórax pode produzir um trauma
torácico”, no entanto, aponta que “o documento não é objetivo para o entendimento
técnico das lesões que provocaram a morte da vítima”. “Normalmente, o médico
não coloca trauma torácico. Eles colocam ‘disparo por arma de fogo na região
torácica de tantos centímetros etc’. Aqui não fala nada. Como é um atendimento
num hospital, ele é muito básico. Ele não informa aquilo que o corpo estava
mostrando. Mas o que podemos considerar é que se o possível suspeito está
correndo, não tem como ele levar um disparo no peito”.
Um morador relatou à reportagem que Vinicius, que
residia na Vila Progresso, em Santos (SP), conversava com conhecidos quando a
polícia teria chegado atirando. O grupo saiu correndo em direção a região de
mata próximo a comunidade. “Até onde vi, eles estavam conversando e a polícia
chegou dando tiro. [Aqui] Quando a polícia chega é sempre atirando e por isso
ninguém fica na rua. Eles não dão enquadro, eles chegam atirando”, disse um
morador, que não quis ser identificado por medo de represália.
De acordo com o relato, com a chegada da polícia,
os homens que correram mata adentro, foram em direção ao morro Santa Maria –
comunidade que faz divisa com a Vila Progresso. Ao chegar próximo a rua Sete,
local no qual a ocorrência foi registrada, Vinicius, de acordo com testemunhas,
foi baleado em uma das pernas na região da coxa, caiu e passou a ser torturado
pelos policiais.
“Depois que ele levou um tiro na coxa, não
conseguiu correr com todo mundo. Caiu no meio do mato e a polícia matou ele
pisando na cabeça. Ele foi pisoteado até ele parar de se mexer. Depois pegaram
o corpo dele e jogaram numa lona, levaram para outro local e esperaram até o
Corpo de Bombeiros chegar e levar o corpo dele”, disse uma testemunha à
reportagem.
Enquanto os agentes aguardavam a chegada do Corpo
de Bombeiros, moradores tentaram pegar Vinicius na tentativa de prestarem
socorro, por desconfiarem que o jovem ainda estivesse vivo. O Boletim de
Ocorrência foi registrado às 11h30 e a a hora do falecimento, segundo o boletim
do hospital, aconteceu às 12h45. As testemunhas ainda afirmam que os policiais
isolaram o local impedindo a passagem dos populares. Em protesto, algumas
pessoas atearam fogo em cones de sinalização e outros objetos. Um vídeo gravado
por moradores mostra o momento.
Moradores relataram que Vinicius aparentava estar
vivo quando foi socorrido pelo Corpo de Bombeiros, no entanto, chegou “sem
vida” a Santa Casa de Misericórdia de Santos e foi encaminhado ao Instituto
Médico Legal (IML) da Praia Grande, segundo nota enviada à reportagem pela
Assessoria de Imprensa da Santa Casa.
Um familiar de Vinícius que falou com a Pública
disse que, antes do corpo ir para o IML, pediu para vê-lo e tentou
fotografá-lo. “Um homem que estava lá falou assim: ‘não pode tirar foto’. O
Vinicius estava em cima de uma mesa, coberto com um lençol branco e dentro de um
saco preto. Eu pedi pra abrir pra ver o corpo dele, mas eu não imaginava que ia
ver o corpo dele machucado. O Vinícius estava com uma marca de sapato no
pescoço. Eu não consegui virar ele, eu não consegui, porque eu estava
procurando tiro. Ele estava tão cheio de terra que eu só conseguia ver sangue,
muito sangue”.
A Pública questionou ao Corpo de Bombeiros e à
Secretaria de Segurança Pública (SSP) se o jovem estava com vida quando foi
socorrido ou se o óbito ocorreu durante o trajeto. Até o fechamento da reportagem
não houve resposta.
Tanto o Boletim de Ocorrência, quanto a declaração
de óbito não têm a informação da parte do corpo que Vinicius foi atingido por
tiro ou se foi mais de um disparo. No registro do B.O., consta apenas que os
agentes estavam em patrulhamento pela Vila Progresso, quando teriam avistado
“criminosos armados de pistolas”, que ao perceberem a aproximação da viatura,
fugiram para uma região de mata e alguns policiais começaram a persegui-los. Na
fuga, de acordo com a polícia, os indivíduos “passaram a efetuar disparos
contra as equipes que revidaram a injusta agressão”.
Boletim de ocorrência sobre a morte de Vinicius
Na versão dos policiais, os homens “continuaram
atirando” e efetuaram a fuga com o intuito de acessar a avenida João Belchior
Marques Goulart, no Morro Santa Maria – que fica ao lado da Vila Progresso,
onde teria sido iniciada a perseguição.
O B.O. diz que, quando os indivíduos chegavam na
comunidade vizinha, os policiais estavam na viatura – os cabos Jeferson Batista
da Silva e Wendel Evangelista Ferreira – , já o aguardavam na avenida , “pois
tentavam fechar a rota de fuga”. Segundo os agentes, eles “visualizaram os
criminosos atirando contra os policiais que ainda estavam na colina, e também,
efetuaram disparos visando conter a agressão daqueles indivíduos.”
Foi neste momento que Vinícius teria sido baleado e
com ele encontrado “uma pistola .40 com numeração suprimida”. No registro,
consta que outro homem “conseguiu se evadir sentido comunidade”. “No percurso
desse indivíduo, foram localizados algumas porções de drogas e apetrechos para
o tráfico.”
A polícia também informou que Vinicius tinha
antecedentes criminais e dois mandados de prisão expedidos.
Durante a ocorrência, os policiais atiram 37 vezes:
“Jeferson Bastidas da Silva efetuou cinco disparos, Rodrigo Paes de Lira três
disparos, Wendel Evangelista Ferreira efetuou três disparos, Luiz Fernando
Calixto Shenki efetuou cinco disparos, Juscelino Marcos dos Santos efetuou
quatorze disparos e Bruno Nunes Viana efetuou sete disparos”.
A versão dos policiais não deixa claro se as drogas
e o “apetrechos para o tráfico” estariam na posse de Vinicius. No entanto, no
boletim, foi atribuído a ele 450 gramas de maconha e 117 gramas de cocaína.
A reportagem questionou a Secretaria de Segurança
Pública (SSP) se os agentes utilizavam câmeras nos uniformes durante a operação
e se as imagens foram entregues ao Ministério Público (MP), a Divisão
Especializada em Investigações Criminais (Deic) de Santos e ao Departamento
Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP); se seguem atuando
ostensivamente na rua e, em caso de suspeita de tortura, qual é o procedimento
adotado pela corporação em relação aos agentes envolvidos na ocorrência.
Apenas a SSP respondeu até a publicação da reportagem.
Em nota, a SSP alegou que “todos os casos envolvendo mortes decorrentes de
intervenção policial relacionados à Operação Escudo são investigados pela DEIC
de Santos, com apoio do DHPP, e pela Polícia Militar, acompanhados pelo
Ministério Público e Poder Judiciário. A pasta reforça que todas as denúncias
podem ser formalizadas em qualquer unidade da Polícia Militar, inclusive pela
Corregedoria da Instituição. Desvios de conduta não são tolerados e todas as
denúncias são rigorosamente apuradas mediante procedimento próprio.”
Fonte: Por José Cícero, da Agencia Pública
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