Bahia: Dinheiro gasto por ano com reconhecimento facial custearia um hospital por 32 anos e 1,5 mil
ambulâncias
A 930 metros acima do nível do mar, a pacata cidade de Seabra, incrustada
na Chapada Diamantina, na Bahia, tem um frio moderado até mesmo em dias de
verão. O principal meio de locomoção, como é comum em várias cidades do
interior nordestino, é o mototáxi. Nas três vezes que passei pela sede da 29ª
Companhia de Independente da Polícia Militar, unidade responsável pelo
policiamento ostensivo na área, uma viatura estacionada na calçada estava de
vidros abertos sem ninguém por perto. “Aqui a gente não tem muito problema. Já
teve vezes de deixar a moto na calçada de casa com a chave”, me contou uma
servidora pública.
Seabra foi escolhida pelo governo da Bahia como uma
das 78 cidades a receber sua festejada tecnologia de reconhecimento
facial. São oito câmeras cobrindo parte do centro urbano
do município. A tecnologia faz parte da vitrine da gestão estadual, que entra
no quinto mandato seguido sob o comando do PT, e é o principal gasto do governo
baiano na área de segurança pública.
Funciona assim: as câmeras captam os rostos de
pessoas que circulam pelas ruas, o sistema registra e faz o link com um banco
de fotos – no caso baiano, a partir de mandados de prisão –, que é vasculhado
por um algoritmo responsável por comparar as imagens e encontrar semelhanças.
Quando há um match, um alerta é disparado para a polícia, que é
enviada para o local para averiguação.
A informação de que esse moderno sistema de
monitoramento facial está funcionando em Seabra trouxe estranheza a quem mora
no local. Nem mesmo a prefeitura tinha ciência disso – até ser questionada
pelo Intercept. “Nada foi
dito à gestão municipal. Recentemente, tentamos implantar um sistema de
vigilância com câmeras no centro da cidade, com apoio de empresários, e não foi
possível. Mas nada a respeito desse sistema do governo chegou até nós”, afirmou
a assessoria da prefeitura.
O reconhecimento facial é parte do contrato de
valor mais alto hoje em vigor na Secretaria de Segurança baiana. Cada ponto de
imagem com a tecnologia custa, em média, R$ 66,3 mil, além de toda a
infraestrutura prevista na contratação. No total, o gasto chega a R$ 665
milhões, até julho de 2026, para a implantação e uso do sistema em 78 dos 417
municípios baianos, em conjunto com diversas outras soluções de vigilância e
telecomunicações.
De acordo com um estudo do Panóptico, projeto de
monitoramento de iniciativas de reconhecimento facial, o valor investido no
contrato da Bahia para aquisição dos equipamentos e do software possibilitaria,
a título de comparação, investimentos como a compra de 1,5 mil ambulâncias com
UTI móvel. Ou construir por 300 unidades de pronto atendimento, as UPAs. Ou até
custear um hospital de referência por 32 anos.
O enorme investimento, no entanto, não impediu que
a Bahia vivesse uma onda de violência. Foram quase 7 mil assassinatos no estado
em 2022, segundo o último
anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Do ranking das 50 cidades com maior número de assassinatos, 12 estão
na Bahia. No topo da lista estão Jequié, Santo Antônio de Jesus e Simões Filho,
todas com mais de 80 mortes a cada 100 mil habitantes. Todas são equipadas com
as câmeras do governo estadual, que garante que o investimento
deu resultado.
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Prisão de devedor de
pensão
Seabra não está na lista dos municípios mais
violentos da Bahia. A cidade tem mais da metade da sua população, de
aproximadamente 49 mil pessoas, na zona rural. Mais de 51%
dos moradores vivem sem abastecimento de água e pouco mais de 4%
da cidade conta com cobertura adequada de saneamento básico. Desses, só 0,75%
têm o esgoto devidamente manejado e tratado.
As câmeras em Seabra estão distribuídas no centro
da zona urbana, região repleta de pequenos comércios e serviços como bancos,
lotéricas e clínicas médicas, cortada por estreitas ruas de calçamento. Asfalto
mesmo, só em um pequeno trecho de uma avenida principal, entre a margem da
BR-242, principal porta de entrada da cidade, e a ponte sob o tímido Rio Cochó
que serpenteia o município.
Tida como o centro geográfico da Bahia, a cidade
nomeada em homenagem ao ex-governador J. J. Seabra fica na confluência de estradas
que interligam Salvador, a fronteira agrícola do oeste baiano e o norte do
estado. Menos conhecida que os polos turísticos vizinhos que atraem viajantes
do país inteiro, como Lençóis e Palmeiras, Seabra é o município mais populoso
da região. A prefeitura estima que a cidade receba, em dias mais movimentados,
até 7 mil pessoas de municípios vizinhos. “Há uma concentração de serviços que
atendem toda a região, por isso o fluxo. Mas casos de violência mesmo são
raros, o último de grande porte foi em 2016”, relatou a prefeitura, citando um
assalto a banco naquele ano.
As próprias estatísticas da Secretaria de Segurança
Pública, a SSP, vão ao encontro das impressões: entre janeiro e setembro de
2022, não foi registrada nenhuma morte violenta em Seabra. Roubo a
estabelecimento comercial foram dois e a “transeuntes”, como registra a
secretaria, foram oito – somando os dois tipos, a média de crimes fica pouco
acima de um por mês nesse período. Os números se somam ao resultado gerado pelo
uso do reconhecimento facial na cidade até aqui: um único preso, por não
pagamento de pensão alimentícia, no fim de março deste ano.
“As licitações
para contratação de tecnologias de vigilância estatal, que
superaram as centenas de milhões de reais, causam estranheza”, avaliou Tarcízio
Silva, pesquisador sênior em políticas de tecnologia da Fundação Mozilla e
especialista em antirracismo na inteligência artificial.
A implantação do sistema vem de longa data. Começou
no fim de 2018, exclusivamente em Salvador. O processo foi evoluindo até 2021,
quando, sob a gestão do governador Rui Costa, a SSP assinou um contrato para
expandir o sistema de controle. Quem o abocanhou foi o Consórcio Vídeo Polícia,
formado pelas empresas Oi Soluções e Avantia Tecnologia e Segurança, sediadas
em Recife, Pernambuco.
A planilha de preços cita diretamente em dois
tópicos o termo “reconhecimento facial”. O primeiro fala de “ponto de imagem
tipo III” para ambientes internos e externos de fluxo controlado, no qual
deverão ser aplicados R$ 28,8 milhões em 424 unidades. Já o segundo tópico é o
“ponto de imagem tipo IV”, em locais de fluxo livre, com 573 unidades ao custo
de R$ 37,2 milhões.
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Cada prisão feita a
partir dessa tecnologia na Bahia custou, em média, R$ 875 mil.
No total, serão 997 câmeras implantadas
gradualmente nos municípios. Somam-se a esse valor outros pontos necessários
para o funcionamento pleno do sistema, como o sinal de comunicação de banda
larga, infraestrutura física e técnica.
O resultado? Segundo a Secretaria de Segurança
Pública da Bahia, até agora 760 pessoas foram presas no estado com o auxílio do
reconhecimento facial desde 2019, ano em que o sistema foi implementado. Cada
prisão custou, em média, R$ 875 mil. O mais recente balanço divulgado pela SSP,
quando foi capturada a 600ª pessoa por meio de reconhecimento facial, aponta
que mais da metade dos presos eram procurados por assalto (222 casos) e tráfico
(106 casos).
O governo informou que utiliza o Banco Nacional de
Mandados de Prisão, organizado pelo Conselho Nacional de Justiça, para
alimentar a tecnologia no estado. Na Bahia, são 13.965 mandados de prisão
pendentes. Em tese, as câmeras varreriam todos os rostos captados para tentar
encontrar um match entre os procurados.
Segundo a Secretaria de Segurança Pública, entre o
início da implantação do programa, à época restrito a Salvador, e o fim do
primeiro semestre de 2022, foram captados mais de 280 milhões de rostos.
“Hoje, já se tem o conhecimento de que, se eu ando
no metrô de Salvador, meu rosto foi para o banco. Ou seja, é uma forma de
vigilância sem respaldo legal. Não temos uma legislação sobre onde isso vai
ficar, quem guarda. O termo de referência fala que a Oi vai guardar meus dados.
A Oi? Uma empresa vai gerir os meus dados?”, desaprova.
Para Tarcízio Silva, os gastos excessivos em
tecnologias “cria uma infraestrutura que traz factualmente mais riscos do que
benefícios e destoa do que poderia ser investido na construção de bem-estar
social e geração de empregos no estado”.
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Máquina de prender preto
Para o defensor público Maurício Saporito, a extensão do uso da
tecnologia em Salvador e na Bahia não é à toa. “Não pode ser coincidência que
você tem um sistema que é condenado no mundo inteiro por ter um viés racial,
pega e traz para o estado mais negro da federação e coloca como case de
sucesso. Você analisa os casos, e é só gente negra presa”, completou.
A análise do defensor coincide com estudos prévios
feitos pela Defensoria Pública a respeito das audiências de custódia. Em 2019,
97,8% das 5.153 pessoas presas em
flagrante na capital baiana eram pretas ou pardas. Um
estudo semelhante a respeito das prisões por reconhecimento facial está em
curso. “A decisão por mais policiamento, vigilância e violência como reação a
problemas de segurança pública tem terreno fértil em países construídos por
meio da escravidão, como Estados Unidos e Brasil, por causa da supremacia
branca vigente. O acúmulo de violência e desigualdades sociais atualizado
constantemente através do racismo estrutural avança no posicionamento de que
pessoas negras são menos dignas da vida e de direitos”, acrescentou Silva.
Respondendo a um questionamento feito via Lei de
Acesso à Informação, a Secretaria de Segurança da Bahia informou que não produz
dados estatísticos a respeito do perfil étnico-racial das pessoas que são
detidas a partir do reconhecimento facial por câmeras.
“Acaba sendo uma tecnologia para continuar vigiando
as mesmas pessoas, sob o pretexto de vigiar todo mundo. Coloca-se onde tem a
maior circulação de pessoas negras: festa popular na rua, não na entrada do
camarote; bota no metrô, não no shopping”, finalizou o defensor Maurício
Saporito, criticando o que chama de “contenção e controle da população negra e
vulnerabilizada”.
Procurada pelo Intercept por telefone e por e-mail,
a SSP não deu qualquer retorno aos questionamentos e pedidos de entrevista. Em
resposta via Lei de Acesso ao Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, a
gestão ressaltou que o sistema visa “proteção da vida e da propriedade, a
prevenção e a detecção de crimes e a garantia da segurança pública, tornando-se
um instrumento salutar para o combate à criminalidade e passando a ser um
instrumento agregador no mecanismo de prevenção ao crime, quando empregadas em
conjunto com processos e práticas eficientes de policiamento”.
Para Igor Rocha, capitão da PM que preside a
Associação dos Oficiais Militares Estaduais da Bahia, a tecnologia implantada pela
SSP é benéfica para o trabalho na segurança pública. “O reconhecimento facial é
uma tecnologia que dá um upgrade para a segurança pública.
Agora nas festas, como o Carnaval, tem grande utilidade. Isso otimiza o
trabalho da polícia e da justiça. É uma ferramenta excelente, que a gente
acredita que veio para somar ao trabalho que o policial já desenvolve no dia a
dia”, defende o militar.
Mas tanto policiais da ativa ouvidos pelo Intercept
como o coordenador geral da Associação dos Policiais e Bombeiros da Bahia e
ex-deputado estadual ligado à direita, Marcos Prisco, têm outra avaliação.
“Para quem está na ponta, é um investimento para inglês ver. Até o momento, o
efeito prático é zero. Os policiais não são contra o reconhecimento facial, mas
você não vai substituir um homem por uma câmera. Deveria investir na base”,
afirmou o representante dos PMs.
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Até o momento, o efeito
prático é zero.
O discurso é ecoado por agentes ouvidos em
anonimato. “A gente recebe o chamado, aparece a identificação lá na tela. Até
aí, tudo bem. Mas a gente só vai se for uma situação tranquila, um cara que a
gente vê que não é perigoso. Nenhum policial vai se arriscar. Termina que a
tecnologia não muda muita coisa”, disse um deles.
Já à esquerda, a crítica é relacionada aos vieses
discriminatórios da tecnologia. O deputado estadual Hilton Coelho, do Psol,
apresentou à Assembleia Legislativa da Bahia, em 2022, um projeto de lei para
suspender completamente o uso do sistema. “ As câmeras vêm no sentido de um
controle dessa grande população negra, que aos olhos de uma elite – e,
infelizmente, o governo reproduz essa posição – precisa ser tutelada,
acompanhada, reprimida, muitas vezes por ações seguidas de morte”, apontou
Hilton.
O parlamentar pontuou ainda a falta de diálogo por
parte do governo. “O que vemos é o que sai na imprensa e nas publicações
oficiais. Não existe envolvimento da sociedade, do parlamento. Aponta-se um
caráter autoritário. Não está inserido em um debate sobre segurança pública
garantidora de direitos, nem de reforço da investigação em detrimento da ação
ostensiva”, concluiu.
Fonte: Por Paulo Nascimento, em The Intercept
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