Ferrogrão afetará
pelo menos 6 terras indígenas, 17 unidades de conservação e 3 povos isolados
Um
trajeto de quase mil quilômetros de ferrovia que atravessará o centro do país
em meio a áreas de proteção e a territórios indígenas onde vivem, inclusive,
povos isolados. Esse é o projeto da Ferrogrão (EF-170), obra monumental que é a
menina dos olhos de grandes produtores de soja e milho do Centro-Oeste do
Brasil, com a promessa de fortalecer a nova rota de escoamento pelo Arco Norte
do país e reduzir custos.
O
transporte é feito hoje por caminhões que trafegam pela BR-163, rumo aos portos
localizados nos municípios paraenses de Itaituba, Santarém e Barcarena. Com
traçado paralelo à rodovia, a Ferrogrão tem como promessa reduzir os custos de
transporte do agro, mas a um preço alto para os povos tradicionais e para a
agenda brasileira de mudanças climáticas.
É
mais um caso que divide ministros de Lula. Desta vez, justamente no estado que
será palco da COP-30, em 2025, quando o presidente da República gostaria de
exibir resultados positivos no combate ao desmatamento e nas emissões de gases
de efeito estufa.
“Se
eles não nos consultarem, a gente vai criar uma aldeia na linha do trem, aí
quero ver se eles vão passar em cima da gente”, afirmou à reportagem Doto Takak
Ire, presidente do Instituto Kabu, que representa 12 comunidades do povo Mẽbêngôkre-Kayapó
distribuídas entre as terras indígenas (TIs) Baú e Menkragnoti e duas
comunidades da TI Panará. O território está na área mais impactada pelo traçado
da ferrovia, segundo análise exclusiva feita pelo Laboratório InfoAmazonia de
Geojornalismo. Para agravar a situação, este é também o espaço utilizado por
três povos isolados: Pu’rô, Isolados do Iriri Novo e Mengra Mrari.
O
levantamento feito pela reportagem em parceria da InfoAmazonia e O Joio e O
Trigo expõe como, ao todo, ao menos seis terras indígenas, onde vivem
aproximadamente 2.600 pessoas, e 17 unidades de conservação estão na área
delimitada, que abrange 25 municípios do Mato Grosso e do Pará, com população
estimada em quase 800 mil pessoas. Considerando uma zona de amortecimento de
10km no entorno dos territórios, a ferrovia incide sobre mais de 7,3 mil km² de
terras indígenas e ultrapassa 48 mil km² sobrepostos às unidades de
conservação.
A
análise também considerou uma área de 50 km no entorno da Ferrogrão, tendo como
base o traçado disponibilizado no Banco de Informações de Transportes do
Ministério dos Transportes e os dados de desmatamento do Projeto de
Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), do
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), referentes ao período de 2008
a 2022.
Essa
área de influência maior tomou como base a nota técnica apresentada pelo
Instituto Kabu à Funai em novembro de 2019, que alerta para as pressões
diretamente relacionadas ao processo de pavimentação da BR-163 nesse perímetro
– e que podem se agravar a partir da construção da ferrovia.
No
lado paraense da ferrovia, diz a nota, um trecho de quase 380 km (40% do total)
está a menos de 50 km das terras indígenas Baú, Menkragnoti e Panará, “onde os
índices de desmatamento mantêm-se extremamente elevados desde que teve início a
pavimentação da BR-163”. A área de influência da BR-163 é de 40km em torno da
rodovia, previsão para esse tipo de empreendimento na Amazônia Legal segundo a
Portaria Interministerial nº 60/2015.
Apresentado
durante a gestão de Jair Bolsonaro, em novembro de 2020, o estudo de impacto
ambiental (EIA) da Ferrogrão elaborado pela empresa MRS Ambiental considerou
apenas duas TIs dentro da área de influência do empreendimento: as reservas
Praia do Mangue e Praia do Índio, localizadas no município de Itaituba e
habitadas pelos Munduruku.
O
estudo tomou como base o termo de referência emitido em setembro de 2019 pela
Fundação Nacional do Índio (Funai) – presidida pelo delegado Marcelo Xavier,
hoje investigado por uma série de crimes cometidos contra povos indígenas,
incluindo o genocídio dos Yanomami. O documento considera a distância de dez
quilômetros em torno do traçado da ferrovia, seguindo a medida estipulada para
esse tipo de empreendimento pela mesma portaria de 2015.
O
asfaltamento avançou sob o governo Bolsonaro: chegou até Novo Progresso no
final de 2019 e foi concluído até Miritituba em fevereiro de 2020. Responsável
pela execução dos recursos do Plano Básico Ambiental (PBA), principal
condicionante prevista no estudo de impacto ambiental da rodovia, o Instituto
Kabu não recebe repasses federais desde 2020.
Entre
2010 e 2019, os projetos eram decididos de forma conjunta entre as aldeias
associadas ao instituto, com a fiscalização a cargo da Funai, que recebia a
cada semestre a prestação de contas por parte dos indígenas. “Vai fazer cinco
anos que o governo Bolsonaro paralisou tudo, são cinco anos de prejuízo dos
nossos direitos”, lamenta Doto Takak Ire.
Em
maio deste ano, o Instituto Kabu conseguiu um acordo com a empresa
concessionária da rodovia para o repasse emergencial de recursos, enquanto
aguarda novos estudos da Funai para a retomada do Plano Básico Ambiental.
·
Projeto do agronegócio
Com
o início da operação do Porto de Miritituba, em Itaituba (PA), em 2014, e o
asfaltamento recém-finalizado da BR-163, o escoamento de grãos do Mato Grosso
pelos portos do Pará passou de 5% para cerca de 30%. A estimativa do governador
de Mato Grosso, Mauro Mendes (União Brasil), é que a Ferrogrão absorva 50% da
produção de grãos do estado e uma redução no valor do frete em R$ 50 por
tonelada.
O
traçado da ferrovia, que liga o município de Sinop, no norte de Mato Grosso, ao
porto de Miritituba, foi elaborado pela empresa Estação da Luz Participações
(EDLP), que se associou às maiores compradoras de grãos – Bunge, Cargill,
Amaggi e Dreyfus – para levar o projeto ao governo federal em 2014.
Encampada
pela gestão Dilma Rousseff (PT), a Ferrogrão veio a público com Michel Temer
(MDB) – que tinha como ministro da Agricultura o ruralista Blairo Maggi, dono
da Amaggi. O empreendimento avançou a passos largos com Jair Bolsonaro (PL).
Doto
Takak Ire conta que o primeiro interlocutor com os Kayapó em relação ao projeto
da Ferrogrão foi justamente Maggi, durante seu mandato de senador, em 2016.
Quando Temer assumiu, os Kayapó não foram mais ouvidos em relação ao
empreendimento.
“A
gente realmente conversou com o Blairo Maggi, que disse que o governo ia
cumprir a compensação. Antes do impeachment, a gente teve uma reunião com o
senador. Quando mudou o governo, a gente perdeu o diálogo e não conseguiu falar
com mais ninguém. Nem com o governo Bolsonaro.”
A
partir de uma ação do PSOL no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro
Alexandre de Moraes paralisou todos os processos da Ferrogrão para analisar a
eficácia da Lei 13.452/2017, originada de uma medida provisória proposta por
Michel Temer, que reduz a área do Parque Nacional do Jamanxim para acomodar a
ferrovia.
O
projeto voltou à discussão pública com a decisão do ministro, em maio deste
ano, que determina a retomada dos estudos e processos administrativos e pede
que o governo federal faça a conciliação em torno das questões ambientais que
envolvem o projeto, mas não se posiciona sobre a redução da unidade de
conservação.
“É
uma decisão bem particular, porque pede uma conciliação, mas não deixa muito
claro qual é o objeto de conciliação”, diz Biviany Garzon, coordenadora do
Programa Xingu, do Instituto Socioambiental (ISA). Ela alerta para o risco de a
discussão sobre a desafetação de áreas de proteção voltar para o Congresso
Nacional.
“Com
essa conjuntura de um Congresso totalmente avesso à questão ambiental e sedento
de emplacar retrocessos nessa área, a gente tem essa preocupação de que um PL
para desafetar o Parque Jamanxim, junto com a audiência de viabilidade do
empreendimento, termine sendo o motor para desafetar muitas outras unidades de
conservação na região.”
A
decisão de Moraes se deu justamente no momento em que os ministérios do Meio
Ambiente e dos Povos Indígenas foram enfraquecidos pelo Congresso Nacional, com
a transferência de atribuições dessas pastas para os ministérios da Justiça e
da Agricultura. A tese de conciliação foi trazida por Moraes também na recente
discussão, no STF, sobre o marco temporal da demarcação de terras indígenas.
Apesar
da forte ênfase na questão ambiental que marcou a formação do atual governo, o
ministro dos Transportes, Renan Filho (MDB), defende publicamente a Ferrogrão
desde que assumiu o cargo. Ele elogiou a decisão de Moraes e sinalizou que
pretende aproveitar os estudos já realizados sobre a ferrovia e buscar um
acordo sobre a questão ambiental em torno do projeto para lançar o edital de
leilão já em 2024.
Os
estudos de viabilidade econômica e de impacto ambiental feitos para o projeto,
porém, são alvo de questionamentos, inclusive dentro do governo. O Ministério
dos Povos Indígenas aponta que a consulta aos povos originários afetados pela
obra não foi contemplada no projeto da Ferrogrão.
Por
meio da Secretaria de Gestão Ambiental e Territorial Indígena, a pasta afirmou
em nota enviada à reportagem que os processos de avaliação de impactos da
ferrovia conduzidos durante as gestões de Michel Temer e Jair Bolsonaro foram
feitos sem levar em consideração as áreas indígenas, “bem como os povos
indígenas que ali vivem, e muito menos a presença de povos isolados e de
recente contato”.
Como
principais ameaças às populações no entorno do traçado, a secretaria aponta o
aumento da incidência do assédio do agronegócio às aldeias, o aumento da
extração de madeira e pesca ilegais dentro dos territórios indígenas e de áreas
protegidas, assim como o aumento da dificuldade para que grupos indígenas
tenham seus territórios reconhecidos.
Procurado
pela reportagem, o Ministério dos Transportes informou, por meio de nota, que
trabalha junto à Infra S.A. e à Agência Nacional de Transportes Terrestres
(ANTT) em um diagnóstico sobre as necessidades de atualização e complementação
dos estudos realizados, “com priorização para as questões socioambientais”.
Por
determinação de Lula, diz a nota, o ministério atua para que todos os seus
empreendimentos de transportes “tenham sustentabilidade socioambiental,
respeitem a legislação vigente e, ao mesmo tempo, atendam às demandas das
comunidades locais”.
“Não
é diferente com a EF-170. A pasta vai discutir as questões ambientais
necessárias, que precisam ser enfrentadas por todas as áreas interessadas do
governo federal, como os ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima e o
dos Povos Indígenas, e da sociedade brasileira”, diz o texto.
O
Ministério dos Transportes aponta como vantagens do empreendimento a redução de
emissões de CO2, a redução do frete rodoviário, a arrecadação tributária, a
geração de empregos e a “ampliação de ações de fiscalização contra expansão
ilegal da fronteira agrícola”.
Em
nota enviada à reportagem, a área técnica do Ministério do Meio Ambiente afirma
que os estudos de impacto ambiental apresentados pelo empreendedor foram
devolvidos pelo Ibama em março de 2021 e as adequações solicitadas pela equipe
de licenciamento não foram apresentadas até o momento.
·
Pressão sobre os territórios
As
terras indígenas funcionam como um escudo em relação ao avanço da degradação
ambiental na região. Dentro das TIs o desmatamento total registrado é de 9,19
km². Quando consideramos a zona de amortecimento de 10km, esse número sobe para
799,82 km² – 8.703% a mais. O levantamento da reportagem, com base em dados do
Prodes referentes ao período entre 2008 e 2022, identificou que mais de 95% da
área desmatada que incide sobre os territórios está concentrada no município de
Altamira, e afeta as TIs Baú (582,69 km²), Menkragnoti (159,38 km²) e Panará
(23,11 km²), que respondem por mais de 80% da população indígena impactada pelo
projeto na região.
Em
outra frente, Novo Progresso concentra a área mais desmatada em relação às
unidades de conservação – mais de 40% de um total de 3.955,28 km² de áreas
protegidas devastadas ao longo do trajeto da ferrovia. Este é o município onde
Bolsonaro obteve a maior votação proporcional na Amazônia durante o primeiro
turno das eleições de 2022.
O
desmatamento acumulado entre 2008 e 2022 atingiu aproximadamente 10% dos 98.862
km² analisados pela reportagem, segundo dados do Prodes. Os últimos quatro
anos, que correspondem ao governo de Jair Bolsonaro, registraram 40% do
desmatamento total nesta região.
·
BR-163 leva o desmatamento para os territórios
Meses
depois da chegada do asfalto da BR-163 até Novo Progresso, em julho de 2019, o
município foi o epicentro da ação criminosa conhecida como Dia do Fogo, quando
apoiadores do ex-presidente incendiaram de forma deliberada a floresta às
margens da rodovia. As queimadas se estenderam aos municípios de Altamira e São
Félix do Xingu.
Com
traçado paralelo à Ferrogrão, o entorno da BR-163 – quarenta quilômetros para
cada lado da rodovia – responde por um total de 80% (7.918,78 km²) de
desmatamento na área analisada pela reportagem.
“Quando
a pavimentação chegou, o desmatamento avançou, o agronegócio avançou, já
encostou na terra indígena”, afirma Doto Takak Ire. “A chegada do garimpeiro
veio muito antes, foi junto com a abertura da BR-163. Quando a pavimentação foi
chegando, aumentou os madeireiros também. A pressão está grande aqui. E agora o
agronegócio chegou, fica difícil de a gente controlar. Isso está causando muito
impacto, está preocupando.”
Nos
últimos quatro anos, o percentual de desmatamento registrado pelos municípios nesta
área foi mais que o dobro em relação ao observado na área total de cada um
deles.
·
Municípios com maior área desmatada
“É uma região de muitíssimo desmatamento desde
a abertura da BR-163. Principalmente a partir do asfaltamento, você tem vetores
de desmatamento que avançam em direção às unidades de conservação e terras
indígenas”, aponta Juan Doblas, analista geoespacial da GlobEO (Global Earth
Observation).
Junto
aos pesquisadores Mauricio Torres e Daniela Fernandes Alarcon, Doblas
acompanhou as consequências no território durante o processo de asfaltamento da
rodovia. No livro Dono é quem desmata: conexões entre grilagem e desmatamento
no sudeste paraense (IAA, 2017), eles apontam como a obra criou uma dinâmica de
especulação fundiária que colocou o município de Novo Progresso no centro do
desmatamento da Amazônia Legal.
“Esse
desmatamento foi provocado por comerciantes locais que se capitalizaram através
do asfaltamento da BR-163. É muito provável que um novo empreendimento, no caso
a Ferrogrão, possa provocar um novo ciclo de desmatamento, através de
mecanismos similares de capitalização e especulação fundiária”, aponta Doblas.
A
economista Mariel Nakane, assessora técnica do Programa Xingu do Instituto
Socioambiental (ISA), que acompanha o projeto da Ferrogrão desde 2018, defende
que os estudos de viabilidade da ferrovia devem contemplar os impactos da
BR-163, assim como todo o corredor logístico planejado para o escoamento de
grãos pelos portos do Pará.
“Essa
é uma região conflituosa, com altos índices de desmatamento, desordem
territorial e conflito fundiário em decorrência da pavimentação da BR-163. O
que mais afeta as terras indígenas são os impactos gerados pela interação dos
empreendimentos no território.”
O
asfaltamento da rodovia facilitou o processo de adensamento populacional e de
ocupação verificado no entorno dos Territórios Kayapó e Panará próximos à
estrada.
A
presença maior de pessoas de fora no entorno dos territórios é a principal
causa do desmatamento observado na proximidade das terras indígenas, aponta
Nakane.
“Nesse
contexto de falta de governança territorial e ausência de presença do Estado,
essa facilitação de ocupação se transforma automaticamente em aumento de
grilagem de terras públicas e de atividades ilegais, o que impacta essas
terras. Elas aumentam o desmatamento das proximidades, as invasões para
atividades ilícitas, como o roubo de madeira e garimpo.”
·
Território Kayapó
Com
população aproximada de 1.450 pessoas, as TIs Baú e Menkragnoti estão
localizadas no município de Altamira, próximas da divisa com Novo Progresso, e
abrigam os povos Mebengôkre Kayapó, Mebengôkre Kayapó Mekrãgnoti e três povos
isolados: Pu’rô, Isolados do Iriri Novo e Mengra Mrari.
Em
um relatório ainda não publicado sobre o avanço do garimpo no território
Kayapó, a Rede Xingu+ aponta que essa atividade tem sido um dos principais
vetores de desmatamento nesses territórios. Em meados de 2020, foi identificada
a reativação de uma antiga pista de pouso na TI Menkragnoti, com cerca de 84 km
de ramais conectados à pista e à área de extração de ouro, embargada em
operações do Ibama e do ICMBio.
Segundo
informações do Sirad X, sistema de monitoramento da Rede Xingu+, nos últimos
cinco anos foram abertos seis novos focos de garimpo na TI Baú, além da
reativação e da tentativa de retomada de lavras antigas.
Nesta
terra, o desmatamento provocado pelo garimpo teve uma escalada sem precedentes
nos últimos seis anos:Nesta terra, o desmatamento provocado pelo garimpo teve
uma escalada sem precedentes nos últimos seis anos: dos 3,68 km² desmatados na
TI nesse período, 3,08 km² (83%) foram devastados pelo garimpo, segundo os
dados do Prodes.
·
Desmatamento na área desafetada do território
Parte
da área desmatada no entorno da TI Baú já foi território indígena. Declarada de
posse dos Kayapó em 1991, a TI passou por um processo intenso de conflitos que
impediram sua demarcação física até o final daquela década, processo que só foi
retomado em 2003, no início do primeiro governo Lula.
Para
solucionar os conflitos em torno da demarcação, o Ministério Público Federal
(MPF) em Santarém (PA) realizou um termo de conciliação e ajustamento de
conduta que resultou na redução do território Kayapó em uma área maior que a
Bélgica (3.492,69 km²).
O
processo, que envolveu Funai, Polícia Federal, Prefeitura de Novo Progresso,
lideranças indígenas Kayapó, associações de fazendeiros, posseiros e
mineradores atuantes na região, foi efetivado pela Portaria nº.1.487/2003,
assinada pelo então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos.
Com
base nos novos limites territoriais, o processo de demarcação e homologação da
TI foi concluído em 2008. O que aconteceu com o território desafetado da TI Baú
é emblemático em relação à pressão do desmatamento no entorno do território. Em
2008, o desmatamento registrado na área que deixou de ser território indígena
era de pouco mais de 4% (141,40 km²). Ao longo de 14 anos, esse território teve
mais de 35% de sua área devastada (1.255,98 km²).
·
Território Munduruku
O
garimpo que atinge as terras indígenas dos Kayapó também afeta os Munduruku que
vivem na Terra Indígena Sawré Muybu, dividida entre os municípios paraenses de
Trairão e Itaituba, que concentram mais de 20% do desmatamento na área
analisada pela reportagem.
Em
abril de 2022, a InfoAmazonia registrou a presença de uma draga de garimpo
durante visita ao território. A TI Sawré Muybu foi reconhecida como território
indígena pela Funai em 2016 e aguarda o processo de demarcação física, enquanto
vê o desmatamento crescer no entorno do território. Dos 26,45 km² de desmatamento
registrados pelo Prodes na área de influência da Ferrogrão, entre 2008 e 2022,
mais de 70% (19,15 km²) foram registrados nos últimos seis anos.
“A
gente vem enfrentando o problema do garimpo e chega uma ferrovia trazendo o
desmatamento”, afirma Alessandra Munduruku, coordenadora da Associação Indígena
Pariri, que representa os Munduruku do Médio Tapajós. Ela ressalta que o
projeto da ferrovia deve considerar também o impacto dos portos em Itaituba. “O
que chama a atenção é a quantidade de projetos de infraestrutura, projetos
imensos que não são pensados para os povos tradicionais, não tem lugar para nós
nesse conjunto de infraestrutura.”
Entre
os impactos já percebidos no território, ela aponta a construção dos silos para
armazenamento de grãos em Itaituba pelas empresas Bunge e Cargill, que geram
especulação fundiária em Itaituba. “A maioria das comunidades está sendo
pressionada para vender terras para essas grandes empresas.”
Alessandra
Munduruku ressalta que as comunidades da TI Sawré Muybu devem ser consultadas a
respeito do projeto, assim como os demais povos indígenas e comunidades
tradicionais do entorno. “A consulta tem que ser dentro da aldeia, com o povo.
O governo precisa ler os protocolos de consulta dos povos indígenas, porque
eles estão dizendo como querem ser consultados.” Assim como os povos Kayapó e
Panará afetados pelo projeto, os Munduruku também tem seu protocolo de
consulta.
·
Estação em Matupá
Os
estudos elaborados até o momento consideram apenas dois pontos de carga e
descarga da ferrovia: no início e ao final do trajeto. O Estudo de Viabilidade
Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA), concluído em outubro de 2015 pela
empresa The Nature Conservancy (TNC), alerta que mudanças no desenho original,
com a construção de carga e descarga intermediárias ou prolongamento do
traçado, podem implicar em impactos ambientais e sociais não abordados no
estudo.
Já
o estudo de impacto ambiental do projeto, de novembro de 2020, considera a
estação inicial em Lucas do Rio Verde (MT) com ponto final em Itaituba (PA).
Nenhum deles aborda estações intermediárias para analisar os impactos da
Ferrogrão, mas o caderno de demandas do empreendimento, também de 2020, projeta
um cenário com uma parada no município de Matupá.
Juan
Doblas considera que a estação intermediária em Matupá pode favorecer o cultivo
de soja nas proximidades da TI Panará devido às condições de relevo do
território, favorável ao cultivo do grão.
Na
página de apresentação do projeto da ferrovia, a Agência Nacional de
Transportes Terrestres (ANTT) diz que o traçado sugerido pelos estudos iniciais
“não será de observância obrigatória à licitante vencedora”. Doblas alerta para
o risco de que interesses políticos e econômicos na região possam levar à
construção de outras estações intermediárias na região de Novo Progresso.
“No
projeto não tem parada em Novo Progresso, mas no projeto original também não
tinha parada em Matupá. Isso deixa bastante claro que, se as condições forem
dadas, uma nova estação pode ser criada, o que provocaria um aquecimento brutal
da região de Novo Progresso, com grupos interessados no desmatamento, um
estoque de florestas muito grande e uma implantação crescente da soja. Uma nova
parada poderia disparar a demanda por terras para plantar soja em toda essa
região porque existem áreas com aptidão.”
·
Território Panará
O
cultivo da soja no entorno do território indígena já é uma preocupação para os
Panará.
“Precisamos
do rio para viver. As nascentes do rio Iriri estão dentro das fazendas. Quando
chove, o agrotóxico usado na plantação de soja chega até os nossos rios,
contaminando os peixes e o nosso futuro. Em algumas aldeias há relatos de
Panará com coceira, ferida e mal estar após tomar banho nessas águas poluídas”,
conta Kunity Panará, secretário da Associação Iakiô Panará.
A
associação foi criada em 2001 para defender a TI Panará, parte do território
ancestral reconquistado por eles em 1991, após décadas de exílio imposto pela
abertura da BR-163, e definitivamente demarcada em 1996. “Nossos avós e nossos
pais sofreram muito com a construção da BR-163. Fomos expulsos de nosso
território para que a rodovia fosse construída. Foi com muita luta que
conseguimos retornar após 20 anos de exílio”, conta Kunity.
Durante
o período de exílio, a população Panará foi reduzida a cerca de 70 pessoas.
Após o retorno ao território, houve um aumento populacional e hoje são mais de
700 pessoas, número próximo ao registrado antes do primeiro contato com não
indígenas, em 1973.
“Já
fizemos o pedido ao Estado brasileiro e esperamos que a consulta seja feita o
mais rápido possível. É obrigação do governo nos consultar antes do
planejamento de qualquer obra que afete nossas vidas, temos o nosso protocolo
de consulta que deve ser respeitado por todos”, afirma o indígena, que também
atua como comunicador da Rede Xingu+.
·
Os impactos para além da área analisada
Um
estudo conduzido por pesquisadores do Centro de Sensoriamento Remoto da UFMG
simulou os impactos da estação intermediária em Matupá. Com a utilização do
modelo OtimizaINFRA, que simula a logística de transportes no Brasil, eles
concluíram que o terminal pode resultar na partição dos blocos contíguos das
TIs Parque do Xingu e Capoto Jarina, devido à ocupação desses territórios ao
longo da rodovia estadual MT-322.
A
estimativa é que o terminal de Matupá aumentaria o tráfego para o transporte de
soja nessa rodovia, hoje inexistente, para uma média de 174 caminhões por ano.
“Logo, qualquer análise de impacto ambiental da Ferrogrão deve considerar toda
a zona de influência do empreendimento, e não apenas os 10 km de cada lado da
linha”, destacam.
“A
gente sabe que não vai ter apenas esse impacto na zona de influência. Vai ter
muito impacto social, ambiental e econômico. Quando a Ferrogrão sair, a
tendência é a população chegar mais perto do território indígena”, afirma Ewesh
Waura, assessor jurídico da Associação Território Indígena do Xingu (ATIX), que
representa 16 povos da região e também integra a Rede Xingu+.
“A
gente tem exigido do governo que faça uma consulta em relação a todos esses
territórios que vão na direção da Ferrogrão. Vai ser muito importante para nós
fazer parte desse projeto, porque muitas vezes a gente é excluído, eles decidem
sem ouvir.”
No
final de maio, representantes de dez povos indígenas e dezoito organizações da
sociedade civil articuladas no Fórum Teles Pires se reuniram em Sinop, cidade
onde está prevista a estação inicial da Ferrogrão.
Na
Carta de Sinop, lideranças dos povos indígenas Boe-Bororo, Enawenê-Nawê,
Xavante, Nambikwara, Munduruku, Kawaiwete, Kayapó, Ikpeng, Terena e Guajajara
reivindicam o processo de consulta livre, prévia e informada junto aos povos
indígenas e outras populações tradicionais.
Desde
2016 a Rede Xingu + reivindica o respeito ao Artigo 6º da Convenção 169 da OIT,
que estabelece o direito de consulta aos povos tradicionais.
“A
consulta livre, prévia e informada com os povos e comunidades tradicionais na
área de influência desse corredor de escoamento de grãos é indispensável para o
governo colocar na balança na hora de avaliar a viabilidade ou não do empreendimento”,
aponta Biviany Rojas Garzon. Ela é uma das responsáveis pela elaboração do
documento Diretrizes para a verificação do direito à consulta e ao
consentimento livre, prévio e informado no ciclo de investimento em
infraestrutura, publicado em abril deste ano.
Garzon
aponta que os impactos da Ferrogrão estão subdimensionados nos estudos feitos
para o projeto, que desconsideram, inclusive, os riscos climáticos para o
período de 65 anos de concessão da ferrovia. “Eles fazem um aumento da projeção
de grãos como se Mato Grosso não tivesse problemas de aumento de temperatura,
diminuição de chuvas e esgotamento de reservas subterrâneas de água. Tem que
ser levado em consideração o risco climático, não podemos pressupor que as
condições ambientais para a produção de grãos vai se manter nos próximos 60
anos.”
Com
a retomada do processo da ferrovia, a Rede Xingu+ protocolou junto ao TCU, ANTT
e Ministério dos Transportes um documento que reforça essa reivindicação e pede
a revisão dos estudos de viabilidade técnica e impacto ambiental feitos para o
projeto.
O
primeiro passo, aponta Garzon, é “tirar a limpo” a área de influência de 10 km,
que ela considera “um erro fático, de interpretação” em relação à Portaria
60/2015. “A gente pede que na atualização do estudo de viabilidade seja
redefinida a área de influência para que a partir dela possam ser identificados
os povos indígenas e as comunidades tradicionais que precisam participar de um
processo de consulta prévia, livre e informada sobre o empreendimento.”
·
Qual é a área de influência do empreendimento?
Consultada
pela reportagem, a Secretaria de Gestão Ambiental e Territorial Indígena do
Ministério dos Povos Indígenas considera que os estágios iniciais da Ferrogrão
já afetam as TIs próximas.
Em
nota enviada à reportagem, a secretaria ressalta a necessidade de revisar o
limite de dez quilômetros e aponta que há “muita incerteza” quanto às dimensões
dos impactos ambientais e sociais que podem afetar os territórios indígenas.
“Para ser dimensionado de forma exata, é necessário a realização de estudo
técnico do local, considerando que os impactos causados pelo empreendimento
podem causar danos irreversíveis e irreparáveis ao meio ambiente, bem como ao
modo de vida dos povos indígenas ao redor, diante das mudanças drásticas no
ambiente social destes”, diz a nota. Tendo como base a Análise Cartográfica nº
550/15, a secretaria aponta 23 Terras Indígenas consideradas próximas ao
traçado da ferrovia, sendo a TI Manoki a mais distante, a 224,94km do desenho
previsto.
Fonte:
Por Leandro Melito, InfoAmazonia e O Joio e O Trigo, no Brasil de Fato
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