sexta-feira, 28 de julho de 2023

Em 2022, intensificação da violência contra povos indígenas refletiu ciclo de violações sistemáticas e ataques a direitos

O ano de 2022 representou o fim de um ciclo governamental marcado por violações e pela intensificação da violência contra os povos indígenas no Brasil. Como nos três anos anteriores, os conflitos e a grande quantidade de invasões e danos aos territórios indígenas avançaram lado a lado com o desmonte das políticas públicas voltadas aos povos originários, como a assistência em saúde e educação, e com o desmantelamento dos órgãos responsáveis pela fiscalização e pela proteção destes territórios. Esta é a realidade retratada pelo relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2022, publicação anual do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Este cenário desolador ficou evidenciado por eventos que causaram grande comoção e tiveram repercussão nacional e internacional, como os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, mortos em junho na região da Terra Indígena (TI) Vale do Javari, no Amazonas, por pessoas vinculadas à rede criminosa que articula as invasões ao território; e as invasões garimpeiras ao território Yanomami, que, sob o olhar conivente do Estado, geraram enormes danos ambientais e uma crise sanitária sem precedentes.

O brutal contexto, revelado por meio de relatos e imagens impactantes divulgadas ao longo do ano, reflete-se nas informações reunidas neste relatório e nos alarmantes dados referentes à desassistência na área de saúde, à mortalidade na infância, aos assassinatos e às violências ligadas ao patrimônio indígena. Em todas estas categorias, Roraima e Amazonas, onde se localiza a TI Yanomami, estiveram entre os estados com maior número de registros.

O ano de 2022 também encerrou um ciclo de quatro anos no qual nenhuma terra indígena foi demarcada pelo governo federal. Sob Bolsonaro, o Poder Executivo não apenas ignorou a obrigação constitucional de demarcar e proteger as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários como também atuou, na prática, para flexibilizar este direito, por meio de Projetos de Lei (PLs) e de medidas administrativas voltadas a liberar a exploração de terras indígenas.

A intensidade e a gravidade desses casos não podem ser compreendidas fora do contexto de desmonte da política indigenista e dos órgãos de proteção ambiental durante os quatro anos sob o governo de Jair Bolsonaro

Além dos discursos do próprio presidente da República, essa postura também ficou registrada no posicionamento recorrente de órgãos como a Advocacia-Geral da União (AGU) e a própria Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). A atuação desses órgãos em processos judiciais e administrativos foi quase sempre contrária aos direitos dos povos originários e favorável, especialmente, aos interesses econômicos do agronegócio e da mineração.

Em 2022, essa postura se refletiu no alto número de casos registrados nas categorias conflitos por direitos territoriais, com 158 registros, e invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio, com 309 casos que atingiram pelo menos 218 terras indígenas em 25 estados do país.

Em muitos estados, como Mato Grosso do Sul, Maranhão e Bahia, os conflitos e a total falta de proteção aos povos indígenas resultaram em assassinatos de indígenas, inclusive com o envolvimento de forças e agentes policiais atuando como “segurança privada” para fazendeiros. Na TI Comexatibá, no extremo sul da Bahia, Gustavo Silva da Conceição, garoto Pataxó de apenas 14 anos, foi brutalmente assassinado durante um dos vários ataques a tiros efetuados por grupos que os indígenas definem como “milicianos”.

No Mato Grosso do Sul, o assassinato de Alex Recarte Lopes, jovem Guarani Kaiowá de 18 anos, na Reserva Indígena Taquaperi, no município de Coronel Sapucaia, motivou uma série de retomadas de terra pelos indígenas, que foram duramente atacadas por fazendeiros e por operações policiais realizadas sem mandado judicial.

Uma dessas operações, ocorrida no Tekoha Guapoy, em Amambai (MS), resultou no assassinato do Guarani Kaiowá Vitor Fernandes, de 42 anos, e deixou várias pessoas feridas. Devido à brutalidade do ataque, os Kaiowá e Guarani passaram a se referir ao caso como “massacre de Guapoy”.

A intensidade e a gravidade desses casos não podem ser compreendidas fora do contexto de desmonte da política indigenista e dos órgãos de proteção ambiental a que o Estado esteve submetido durante os quatro anos sob o governo de Jair Bolsonaro. Por este motivo, a presente edição do relatório apresenta, também, um balanço das violências registradas ao longo deste período e uma atualização dos principais dados que ajudam a vislumbrar esta realidade.

O relatório com dados de 2022, assim, sistematizou também dados atualizados sobre assassinatos, suicídios e mortalidade na infância referentes a esse período de quatro anos. As informações foram obtidas junto a fontes públicas como a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e secretarias estaduais de saúde.

•        Violência contra o Patrimônio

As “Violências contra o Patrimônio” dos povos indígenas, apresentadas no primeiro capítulo do relatório, são divididas em três categorias: omissão e morosidade na regularização de terras, na qual foram registrados 867 casos; conflitos relativos a direitos territoriais, com 158 registros; e invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio, categoria que teve o sétimo aumento sucessivo no número de casos, com 309 registros.

Somados, estes registros totalizam 1.334 casos de violência contra o patrimônio dos povos indígenas em 2022. Entre os principais tipos de danos ao patrimônio indígena registrados no referido ano, destacam-se os casos de extração de recursos naturais como madeira, garimpo, caça e pesca ilegais e invasões possessórias ligadas à grilagem de terras.

A maioria das 1.391 terras e demandas territoriais indígenas existentes no Brasil (62%) possui alguma pendência administrativa para sua regularização, como aponta o levantamento do Cimi, atualizado anualmente. Dentre as 867 terras indígenas com pendências, pelo menos 588 não tiveram nenhuma providência do Estado para sua demarcação e ainda aguardam a constituição de Grupos Técnicos (GTs) pela Funai, responsável por proceder com a identificação e delimitação destas áreas.

Os poucos GTs abertos ou recriados em 2022 só foram constituídos por determinação judicial em ações movidas pelo Ministério Público Federal (MPF) – e nenhum deles concluiu seus trabalhos.

A postura declarada e intencionalmente omissa do governo Bolsonaro em relação à demarcação de terras indígenas redundou no aprofundamento de conflitos por direitos territoriais, em muitos casos com situações de ameaças, ataques armados e assassinatos de lideranças indígenas.

•        Violência contra a Pessoa

O segundo capítulo do relatório reúne os casos de “Violência contra a Pessoa”. Nesta seção, foram registrados os seguintes dados: abuso de poder (29); ameaça de morte (27); ameaças várias (60); assassinatos (180); homicídio culposo (17); lesões corporais dolosas (17); racismo e discriminação étnico-cultural (38); tentativa de assassinato (28); e violência sexual (20).

Os registros totalizam 416 casos de violência contra pessoas indígenas em 2022. Tomados em conjunto, os quatro anos sob o governo de Jair Bolsonaro apresentaram uma média de 373,8 casos de Violência contra a Pessoa por ano – nos quatro anos anteriores, sob os governos de Michel Temer e Dilma Rousseff, a média foi de 242,5 casos anuais.

Em 2022, assim como nos três anos anteriores, os estados que registraram o maior número de assassinatos de indígenas foram Roraima (41), Mato Grosso do Sul (38) e Amazonas (30), segundo dados da Sesai, do SIM e de secretarias estaduais de saúde. Esses três estados concentraram quase dois terços (65%) dos 795 homicídios de indígenas registrados entre 2019 e 2022: foram 208 em Roraima, 163 no Amazonas e 146 no Mato Grosso do Sul.

Dentre estes casos, destacam-se os assassinatos de lideranças Guarani e Kaiowá como Marcio Moreira e Vitorino Sanches, nos meses seguintes ao caso conhecido como “massacre do Guapoy”, que vitimou o Kaiowá Vitor Fernandes; e o assassinato de três Guajajara da TI Arariboia – Janildo Oliveira, Jael Carlos Miranda e Antônio Cafeteiro – mortos em setembro de 2022, no espaço de tempo de apenas duas semanas.

Também foi registrada uma grande quantidade de casos de ameaças e tentativas de assassinatos contra indígenas. Elas foram praticadas, em geral, por fazendeiros, garimpeiros, madeireiros, pescadores e caçadores.

O elevado número de casos de abuso de poder também foi uma constante durante os quatro anos do governo Bolsonaro: foram 89 casos no total, uma média de 22,2 casos por ano – mais de duas vezes maior do que a dos quatro anos anteriores, sob os governos de Dilma e Temer, quando foram registrados, em média, 8,7 casos por ano. Estas categorias refletem o ambiente de degradação institucional e desmonte dos mecanismos de proteção aos povos originários no período.

O fato de que parte da estrutura de saúde da TI Yanomami foi apropriada por garimpeiros, em regiões isoladas e de difícil acesso, indica que a realidade certamente é ainda mais grave do que os dados oficiais reconhecem

•        Violência por Omissão do Poder Público

Os casos de “Violência por Omissão do Poder Público” são sistematizados no terceiro capítulo do relatório, organizado em sete categorias. Com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), o Cimi obteve da Sesai informações parciais sobre as mortes de crianças indígenas de 0 a 4 anos de idade. Os dados fornecidos pela Secretaria revelam a ocorrência de 835 mortes de crianças indígenas desta faixa etária em 2022. A maioria das mortes foi registrada no Amazonas (233), em Roraima (128) e em Mato Grosso (133).

Em todo o Brasil, a Sesai registrou um total de 3.552 óbitos nesta faixa etária entre 2019 e 2022. Considerado o período de quatro anos, os mesmos três estados concentraram a maioria dos óbitos: foram, no total, 1.014 mortes de crianças menores de cinco anos no Amazonas, 607 em Roraima e 487 em Mato Grosso, segundo dados atualizados obtidos junto à Sesai.

O DSEI Yanomami e Ye’kwana (DSEI-YY), que cobre a TI Yanomami e estende-se entre os estados de Roraima e Amazonas, registrou 621 mortes de crianças de 0 a 4 anos entre 2019 e 2022, concentrando 17,5% de todas as mortes de crianças indígenas nesta faixa etária. Segundo o DSEI-YY, a população na TI Yanomami é estimada em aproximadamente 30,5 mil pessoas – o que corresponde a apenas 4% do total de indígenas atendidos pela Sesai, como indicam as informações públicas da Secretaria. O fato de que parte da estrutura de saúde da TI foi apropriada por garimpeiros, em regiões isoladas e de difícil acesso, indica que a realidade certamente é ainda mais grave do que os dados oficiais reconhecem.

Informações de fontes públicas, obtidas junto ao SIM e a secretarias estaduais de saúde, indicaram a ocorrência de 115 suicídios de indígenas em 2022, a maioria nos estados do Amazonas (44), Mato Grosso do Sul (28) e Roraima (15). Mais de um terço das mortes por suicídio (39, equivalentes a 35%) ocorreu entre indígenas de até 19 anos de idade.

Entre 2019 e 2022, dados atualizados destas mesmas fontes totalizam 535 mortes de indígenas por suicídio. Neste período, os mesmos três estados registraram o maior número de casos: Amazonas (208), Mato Grosso do Sul (131) e Roraima (57) concentraram, juntos, 74% dos suicídios indígenas ao longo destes quatro anos.

Ainda neste capítulo, foram registrados os seguintes dados referentes ao ano de 2022: desassistência geral (72 casos); desassistência na área de educação (39); desassistência na área de saúde (87); disseminação de bebida alcóolica e outras drogas (5); e morte por desassistência à saúde (40), totalizando 243 casos.

•        Povos isolados

Os povos indígenas em isolamento voluntário estão entre os grupos mais afetados pela política deliberada de omissão e desproteção adotada pelo governo Bolsonaro, que assumiu contornos ainda mais graves e evidentes no ano de 2022. Essa situação é abordada no quarto capítulo do relatório.

No ano, foram constatados casos de invasões e danos ao patrimônio em pelo menos 36 TIs onde existem 60 registros de povos indígenas isolados, de acordo com os dados da Equipe de Apoio aos Povos Livres (Eapil/Cimi).

A realidade é agravada pelo fato de que, dos 117 grupos de indígenas em isolamento voluntário registrados pelo Cimi, 86 não são reconhecidos pela Funai. Isso significa que esses povos são invisíveis para o Estado, assim como as possíveis situações de violência a que estão expostos, inclusive com o risco de que sejam vítimas de genocídio.

Mesmo nos casos em que são reconhecidos pela Funai, muitos povos isolados passaram o ano de 2022 totalmente desprotegidos. Foi o caso dos isolados do Mamoriá Grande – cuja presença no município de Lábrea (AM) foi confirmada pela Funai, mas não gerou nenhuma medida de proteção por parte do órgão indigenista – e dos isolados da TI Jacareúba/Katawixi, também no Amazonas, que passou o ano inteiro de 2022 sem nenhuma proteção, devido à decisão da Funai, sob gestão de Marcelo Xavier, de não renovar sua Portaria de Restrição de Uso.

Essas portarias são medidas voltadas especificamente à proteção dos territórios de povos em isolamento voluntário que ainda não tiveram seus processos de demarcação finalizados, para impedir que sejam invadidos. O governo Bolsonaro manteve, em 2022, a política de não renovar as portarias, ou de renová-las por períodos exíguos, de apenas seis meses. Esta prática funcionou como sinalização a invasores e grileiros de que aqueles territórios estariam disponíveis, em breve, para a exploração e apropriação privada. As amplas invasões às TIs Piripkura, em Mato Grosso, e Ituna/Itatá, no Pará, são exemplos deste contexto.

Essa política foi acompanhada pelo enfraquecimento contínuo das Bases de Proteção Etnoambiental da Funai (BAPEs), responsáveis pela fiscalização das terras habitadas por povos isolados, deixadas sem a capacidade operacional mínima para desempenhar o seu papel, como ficou evidente no caso das TIs Vale do Javari e Yanomami.

•        Memória

O quinto capítulo do relatório, dedicado à reflexão sobre o tema da Memória e Justiça, traz uma das últimas produções do pesquisador Marcelo Zelic (1963-2023), falecido neste ano. Zelic dedicou sua vida à preservação da memória, através do trabalho de documentação, e à luta pela criação de mecanismos de não repetição das violações de direitos humanos contra os povos indígenas.

Nos últimos anos, ele lutou pela criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV) para a apuração e reparação destas violações. Em seu texto inédito, que o Cimi publica como forma de homenagem, Zelic defende a proposta e delineia suas ideias acerca das atribuições, do funcionamento e da organização da Comissão.

•        Artigos

A presente edição do relatório também traz artigos que buscam aprofundar a reflexão acerca de alguns dos temas abordados na publicação. Um dos artigos propõe uma análise da grave situação no território Yanomami sob a ótica do genocídio, traçando um histórico das recentes omissões do Estado em relação às invasões garimpeiras e estabelecendo relação entre as graves violências e violações a que este povo foi submetido no presente e o massacre de Haximu, ocorrido em 1993, primeiro caso julgado como crime de genocídio no Brasil.

Outros dois textos abordam, ainda, a situação dos indígenas encarcerados no Brasil e a negação de seus direitos pelo Poder Judiciário; e o desmonte da política indigenista do governo Bolsonaro, analisada sob a perspectiva da execução orçamentária.

A plataforma Caci, mapa digital que reúne as informações sobre os assassinatos de indígenas no Brasil, foi atualizada com os dados do Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2022. Caci, sigla para Cartografia de Ataques Contra Indígenas, também significa “dor” em Guarani. Com a inclusão dos dados de 2022, a plataforma agora passa a abranger informações georreferenciadas sobre 1.382 assassinatos de indígenas, reunindo dados compilados desde 1985.

 

Fonte: Cimi

 

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