Reestabelecer
a proximidade, resgatar a coisa pública e superar a segregação: desafios para
romper com a violência
Inúmeros são os fatores que tentam explicar as ondas de violência que se manifestam no
cotidiano, seja nas famílias, seja nas escolas ou nos ambientes de trabalho. Um
deles é “o nosso modo de trabalhar e se relacionar, que tem desprezado as
relações e a contiguidade; não estamos mais próximos e essa é uma marca muito
dura da civilização contemporânea”, destaca Rosana Onocko-Campos, na entrevista a seguir
concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Para superar esta e outras doenças que acometem as pessoas atualmente,
sublinha, “precisamos reestabelecer a proximidade porque a única forma de se
importar com os outros é conhecendo-os, estando junto, próximos”.
Segundo ela, o enfrentamento dos problemas pessoais
e coletivos também depende da superação da segregação e da construção e
valorização da coisa pública. “A segregação é o que nos impede precisamente de recriar a
tecitura social, um comum, algo que nos ponha a todos numa sensação de que
vamos ser capazes de construir juntos um país melhor. (...) O que importa é que
eu possa ter esse sonho, essa ilusão, essa esperança, porque tendo isso, vou
trabalhar para tal, vou me inserir na sociedade, vou fazer amigos. Ou seja, a
busca de algo que está no futuro faz com que construamos uma série de coisas
que são muito importantes do ponto de vista da tecitura afetiva, do laço que
liga as pessoas em uma trama social”, explica.
<<<< Confira a entrevista.
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Hoje, observa-se e fala-se sobre a sociedade do
cansaço, o vazio existencial, a disseminação da violência física e verbal, como
ficou em evidência, novamente, nos massacres nas escolas. Quais são as causas
desse fenômeno?
Rosana Onocko-Campos – Uma das causas é o nosso
modo de trabalhar e se relacionar, que tem desprezado as relações e a
contiguidade; não estamos mais próximos e essa é uma marca muito dura da
civilização contemporânea. Precisamos reestabelecer essa proximidade porque a
única forma de nos importar com os outros é conhecendo-os, estando juntos,
próximos.
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Sua reflexão sobre os massacres nas escolas destaca
o fato de a maioria dos jovens estar “alheia ao público”. Como essa falta de
pertença em relação ao público contribui e influencia as relações com o outro,
especialmente na proliferação de relações de violência e indiferença?
Rosana Onocko-Campos – A sociedade brasileira
é segregada, e quando ela produz essa separação entre os extremamente ricos e os extremamente pobres, ou de uma classe média que se acha extremamente rica, ainda que não o
seja, mas se trancafia atrás de muros de condomínios e não
utiliza transporte público nem escola pública nem
o Sistema Único de Saúde – SUS, é muito difícil que a noção de “nosso”, de
“coletivo”, de coisa pública se construa. No caso dos jovens, isso é muito
grave porque eles são levados a viver em uma bolha que não tem nada a ver com a
realidade do país que habitam. Os jovens de classe média ou rica não
conhecem o que se passa com a grande maioria dos jovens da idade deles no seu
próprio país. Para os jovens que vivem em bairros periféricos, a luta por ser
jovem é muito difícil porque é difícil acolher uma esperança, um sonho, um
imaginário de futuro quando, na sua casa, não tem o que comer, quando os do
centro da cidade os tratam com racismo.
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Qual a importância da coisa pública no
desenvolvimento social, mas também psíquico e afetivo das pessoas?
Rosana Onocko-Campos – As coisas públicas
poderiam ter o lugar simbólico e afetivo na sociedade que
[Donald] Winnicott [pediatra e psicanalista inglês que atuou por
décadas na saúde pública inglesa, trabalhando com crianças] dá aos objetos
intermediários, no caso das crianças. Para podermos ter esse espaço de
valorização da coisa pública, para podermos nos constituir como “nós”, enquanto
sociedade, precisaríamos gostar das coisas públicas e defendê-las. Um exemplo
disso é quando houve tentativas de privatização e cortes no sistema de
saúde inglês. Com todos os problemas que eles têm, os ingleses saíram para
defender o sistema de saúde. Esse é um exemplo de coisa pública que é
defendida pelo povo inteiro. Nós não temos conseguido fazer isso não só
no Brasil, mas na América Latina como um todo.
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No artigo “Em busca de explicações para os massacres nas escolas”, a senhora disse que “coisas públicas existem para serem eficazes e não
eficientes”. Pode explicar a diferença e como essa compreensão gera,
igualmente, outro entendimento acerca das relações sociais e novos tipos de
relações sociais?
Rosana Onocko-Campos – A noção de eficaz tem a
ver com o efeito de algo. Quando digo que um remédio é eficaz é porque ele
produz um determinado resultado. A medida de eficiência é uma medida de
produtividade. Então, se um sapateiro cola dez sapatos por hora, ele é mais
eficiente do que outro sapateiro, que cola quatro sapatos por hora. Mas essa
eficiência não quer dizer que a eficácia seja boa, não quer dizer que a sola do
sapato esteja bem colada, que ela vai durar tanto quanto a outra. São duas
medidas diferentes.
Normalmente, no senso comum – e isso não é comum, é
ideológico – usa-se a palavra eficiente, que tem a ver com a produtividade,
quando se quer falar de eficácia, que tem a ver com a utilidade. Isso é
ideológico porque é uma confusão, uma condensação que se faz entre esses dois
significantes, que é operado pela lógica neoliberal; não é algo casual. Por que
não se comete o erro ao contrário, por que não se fala de eficácia e por que
todos os dias os mercados falam em eficiência, eficiência e eficiência? Isso
tem a ver com uma lógica desse ultraneoliberalismo que estamos vivendo.
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A senhora também menciona a “esperança como
importante construção cultural capaz de alavancar a retomada democrática e não
violenta”. Em sua avaliação, como é possível resgatar a esperança no atual
contexto social? Na prática, do ponto de vista das políticas públicas, o que
isso significa?
Rosana Onocko-Campos – Relaciono
a esperança com um conceito que Winnicott utiliza para
pensar o desenvolvimento psíquico do amadurecimento humano. Ele fala muito da
ilusão como aquilo que não importa se vai ou não vai dar certo. Não importa se
vou conseguir me tornar dançarina, médica ou arquiteta. O que importa é
que eu possa ter esse sonho, essa ilusão, essa esperança, porque, tendo isso,
vou trabalhar para tal, vou me inserir na sociedade, vou fazer amigos. Ou seja,
a busca de algo que está no futuro faz com que construamos uma série de coisas
que são muito importantes do ponto de vista da tecitura afetiva, do laço que
liga as pessoas em uma trama social.
No Brasil, vemos o contrário: vivemos seis anos
de trevas, onde nenhum sonho desses era possível. A sociedade foi estimulada a pisar na cabeça do semelhante, ao salve-se quem puder, a comprar uma arma e salvar-se sozinho, a não
enviar os filhos para a escola, mas educá-los em casa. Tudo isso foi uma
destruição ativa, sistemática e planejada da esperança. Precisamos agora
trabalhar para recuperar a esperança; não é algo que brotará sozinho. Teremos
que trabalhar.
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No artigo, a senhora chama a atenção para a
depressão, o desânimo e a desesperança que acometem os jovens brasileiros, em
particular os de classe média, que não conhecem a realidade do país e,
portanto, não possuem o desejo de transformá-la. De outro lado, os jovens das
periferias estão “espremidos entre a violência policial e escolar” e os setores
mais empobrecidos conhecem os mais ricos pelos seus empregos. Como conectar
esses dois mundos e passar de uma sociedade indiferente e segregada para uma
sociedade tolerante e praticante de transformações?
Rosana Onocko-Campos – Essa segregação é o que nos impede precisamente de recriar a
tecitura social, um comum, algo que nos ponha a todos numa sensação de que
vamos ser capazes de construir juntos um país melhor. Claro que cada pessoa, em
sua área, tem um papel a desempenhar, seja na saúde, seja educação ou no
serviço social, mas valorizo muito o papel da cultura e é por meio
dela que precisamos criar dispositivos culturais que possam produzir uma
porosidade social novamente, através da qual é possível nos comunicar de novo.
Realizar oficinas para jovens, feitas em lugares
onde toda a sociedade compartilha, são ações e trabalhos fundamentais. Outro
ponto no qual tenho insistido muito é o que chamamos de acolhimento. No
entanto, é preciso mais que isso: nós, nos serviços públicos, seja na saúde,
seja educação ou na assistência, precisamos entender o efeito clínico que tem
receber bem, olhar na cara e no olho das pessoas que vêm pedir alguma ajuda.
Toda violência e desconstrução
sistemática dos últimos anos, além de todas as mazelas
estruturais que o país sofre há muito tempo, tem gerado o apagamento do outro;
o outro não existe. As pessoas ou famílias, quando chegam no sistema público,
já levaram “500 nãos”, vários “tapas na cara”, “bateram com o nariz na porta”
inúmeras vezes. Então, olhar, atender, escutar, nem que não consigamos dizer
“sim” ou não tenhamos condições, naquele momento, de oferecer aquilo que a
pessoa está solicitando, é importante para que ela se sinta olhada, reconhecida,
sinta que seu pedido foi legitimado. Isso é uma diferença fundamental.
Para conseguir fazer isso, deveríamos estar fazendo
um grande movimento de treinamento, de capacitação, de motivação mais
aprofundada do que está em jogo para todos os trabalhadores porque também os
trabalhadores de educação, saúde e assistência estão muito machucados, também
foram maltratados, estão vivendo em más condições de trabalho. Então, não
é fácil pedir aos trabalhadores esse gesto, que é de uma humanidade generosa –
como estou propondo –, sem lhes oferecer algum tipo de cuidado.
Fonte: Entrevista com Rosana Onocko-Campos, para IHU
OnLine
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