"Cada dia que
passa, a Europa cria um obstáculo", diz Roberto Rodrigues, ex-ministro da
agricultura
Depois
de duas décadas de negociações, a assinatura do acordo de livre comércio entre
Mercosul e União Europeia deve, finalmente, ser ratificado até o fim do ano, de
acordo com a disposição do primeiro-ministro português, António Costa,
externada ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), na viagem de Estado que
fez a Portugal e Espanha no mês passado.
Para
o setor do agronegócio, principal interessado na redução das barreiras
comerciais impostas pelos europeus, a notícia soa como um alento para quem
depende de investimentos de longo prazo para planejar um crescimento
sustentável. O fechamento do acordo chegou a ser anunciado pelo então
presidente Jair Bolsonaro (PL) no primeiro ano de mandato como uma grande
conquista, mas, passados quatro anos, os blocos não assinaram nada.
Na
avaliação de Roberto Rodrigues, ministro da Agricultura do presidente Lula
entre 2003 e 2006, professor emérito da Fundação Getulio Vargas (FGV) e um dos
mais conceituados analistas do agronegócio brasileiro, a notícia deve ser
comemorada com parcimônia, pois o Brasil terá que assumir atitudes mais
contundentes na área da proteção ambiental e do enfrentamento da emergência
climática se quiser, efetivamente, ampliar a presença dos produtos brasileiros
no mercado europeu. "Cada dia que passa, a Europa cria um obstáculo novo,
agora, usando o argumento — legítimo — da questão ambiental, mas de uma forma
claramente anticomercial", alerta o ex-ministro, que participou das
primeiras tratativas com os países europeus, no início dos anos 2000.
Rodrigues
não esconde uma ponta de frustração com a viagem de Lula à China — maior
comprador das commodities brasileiras —, pois esperava que os dois países
pudessem avançar em um acordo bilateral que desse garantias aos produtores e
industriais do país para planejar os investimentos necessários no sentido de
aumentar a oferta e, consequentemente, as exportações. "Se fizermos
investimentos muito grandes que, depois, resultem em aumento de produção não
vendável, será trágico."
Ele
elogia a atuação do ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, e sentencia:
"A Humanidade tem, pela frente, três grandes problemas: segurança
alimentar, emergência climática e energia". Na avaliação dele, "a
questão da sustentabilidade é a base da competitividade".
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Confira a entrevista:
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O senhor, quando integrou a equipe do primeiro governo
Lula, em 2003, e participou das primeiras tratativas com a União Europeia para
remover barreiras comerciais à produção agrícola do Mercosul. Por que o acordo
não foi ratificado até hoje?
A
discussão Mercosul-União Europeia surgiu naquela época, no âmbito da Rodada de
Doha (voltada à abertura do comércio mundial e iniciada em 2001), mas ela só
aconteceu, mesmo, quatro anos atrás, com o anúncio de um pré-acordo (feito pelo
governo de Jair Bolsonaro). Mas não evoluiu, não foi para a frente. E
continuamos sonhando com esse acordo. Cada dia que passa, a Europa cria mais um
obstáculo novo, agora, usando o argumento — legítimo — da questão ambiental,
mas de uma forma claramente anticomercial.
·
Esse argumento é uma forma dissimulada de
protecionismo?
O
argumento é legítimo, ninguém, em sã consciência, vai ser contra a proteção do
meio ambiente. O problema é usar o argumento como barreira não tarifária. Por
exemplo: não importar produto agrícola de região desmatada a partir de 2020.
Isso vai diminuir o desmatamento? Não vai. Tem que haver ações concretas, não
de caráter comercial, mas de defesa do meio ambiente legítimas. Vamos acabar
com o desmatamento, fazer policiamento, combater o crime organizado.
·
Com que acordo o senhor esperava que o presidente Lula
voltasse da China?
O
mesmo que eu espero com o Mercosul-UE, com países árabes, com Estados Unidos.
Espero que os grandes países consumidores montem acordos comerciais que
garantam a nossa condição de crescimento produtivo. Podemos crescer muito mais
na oferta mundial de produtos agrícolas, mas, para isso, precisamos ter acordos
que deem segurança ao investimento. Queremos fazer estrada, rodovia, porto,
aumentar a armazenagem, tecnologia. Tudo isso custa dinheiro. Mas temos que ter
estratégia. Não podemos correr o risco de aumentar a produção e, depois, não
ter para quem vender. Interessa ao comprador ter garantia de abastecimento para
seu próprio planejamento. Acordo comercial é essencial para ter previsibilidade
nos investimentos.
·
Como o senhor avalia a viagem de Lula à China?
Foi
interessante, a China é, de longe, nosso maior parceiro comercial na
agricultura, mas, confesso, esperava que avançasse o tal acordo bilateral de
comércio, para garantir mercado. A China é nosso grande comprador, parceiro
importantíssimo. E essa relação é estratégica para nós e para eles, porque a
China também precisa dos nossos alimentos 'so far' (até aqui). Mas isso não
quer dizer que será eternamente. Ela pode buscar alternativas, há uma conversa
no ar de que a China vai produzir bastante soja na África. Nós podemos aumentar
muito a produção agrícola no Brasil, mas eu sou do tempo em que nós tínhamos
tanto café no mundo que o preço ficou abaixo do custo de produção. E nós
jogamos café no mar para baixar os estoques e subir o preço. Uma das coisas que
mais me assombra é o excesso de produção sem mercado. Por isso eu defendo os
acordos comerciais, sobretudo, com os países consumidores como China, Índia,
Indonésia, para termos a condição concreta de aumentar produção, emprego,
riqueza e renda para o país, sem ficar com estoque sobrando em armazéns por
anos a fio. Eu tinha a expectativa de que um acordo comercial mais forte e
duradouro acontecesse nessa visita (à China).
·
As portas não foram fechadas, não é?
Eu
entendo que as portas continuam abertas e podemos caminhar para isso mais à
frente. A agricultura, quando ganha, não ganha sozinha. Ela compra trator,
caminhão, adubo, defensivo, faz estrada e armazém, exporta, cria emprego, faz
ciência e desenvolve tecnologia.
·
O que está impedindo a ratificação do acordo
Mercosul-UE?
Eu
me filio a uma corrente que acredita que estamos caminhando para uma volta ao
futuro, para uma nova bipolaridade global. De um lado, o Ocidente rico, mas sem
liderança, sem projeto. As organizações multilaterais perderam protagonismo no
mundo, Organização das Nações Unidas (ONU), Organização Mundial do Comércio
(OMC). Do outro lado, a China, com seu evidente entorno gigantesco asiático,
que tem estratégia. Somos um país estranho. Somos ocidentais pendurados na
China. Nessas circunstâncias, temos uma chance realmente histórica. Somos o
único país grande que tem essa condição.
·
Mas, por que o acordo com a União Europeia não avança?
O
acordo vai patinando, patinando, patinando... com pouca vontade de todo mundo,
inclusive dos nossos parceiros do Mercosul, mas é preciso que o Brasil lidere
isso com nossa diplomacia, para fazer acordos diplomáticos de peso que garantam
o crescimento do país. E não só para agricultura, para a indústria também, que
exporta para mais de 200 países e compra 58% da safra agrícola brasileira. É um
baita reforço para o agronegócio. É um processo que realimenta toda a área
industrial, de serviços, logística e tecnologia. Por isso eu contava com um
acordo mais concreto (com a China), mas vamos em frente que atrás vem gente.
·
Como podemos tirar vantagem disso?
A
humanidade tem, pela frente, três grandes problemas: segurança alimentar,
emergência climática e energia. As três questões terão que ser resolvidas no
cinturão tropical do planeta. É onde tem área para crescer, floresta para
trabalhar e tecnologia para ampliar. Esse cinturão pega toda a América Latina,
toda a África Subsaariana e boa parte da Ásia, e é onde a agricultura vai
crescer. Crescer para alimentos, energia e com sustentabilidade climática. Quem
lidera isso? O Brasil. É uma chance única na contemporaneidade de o Brasil
liderar um grande projeto mundial nessas três áreas.
·
Como o governo deve encaminhar essa liderança?
Isso
implica um papel central do Itamaraty, que nunca teve na história um desafio
tão gigantesco como esse, de transformar o Brasil numa potência mundial
respeitada de fato para resolver os três problemas cruciais da humanidade. Por
isso, um acordo comercial com a China, neste momento, provocaria uma corrida de
outros países em busca de acordos comerciais semelhantes, em busca de segurança
alimentar, que é a base da estabilidade política e social de qualquer nação. Um
país com fome derruba o governo.
·
O terceiro governo Lula começou com essa percepção de
prioridade?
Não
percebi nada, ainda, de forma clara. Mas o presidente foi aos Estados Unidos,
foi à China, foi à Europa, vai à Índia. Tem uma estrada sendo caminhada, há
sinais positivos.
·
Qual o papel do Brics (grupo composto por Brasil,
Rússia, China, Índia e África do Sul) na atual conjuntura global?
O
Brics ainda é um sonho. As posições dos diferentes países na questão
protecionista são díspares. A Índia é protecionista demais na agricultura. A
China é mais pragmática e mais aberta, mas trabalha de acordo com os interesses
do momento dela. A Rússia é uma incógnita, sempre, nunca se sabe a reação dos
russos a temas dessa natureza. É uma discussão teórica — muito boa, positiva —,
mas precisa alinhar questões de caráter macroeconômico que não estão muito
claras ainda. Nós somos muito menos protecionistas do que a Índia, por exemplo.
Mas o Brics tem um potencial espetacular, são quatro países enormes (com
exceção da África do Sul). E tem mais gente chegando (há negociações para a
entrada da Argentina, da Arábia Saudita e do Irã). São populações enormes e com
renda crescente. Muito provavelmente, essa força potencial do Brics vai ser um
ímã para atração de outros países com produção agrícola relevante, como
Austrália e Nova Zelândia. Mas é fundamental uma melhor articulação na questão
macroeconômica.
·
E como fica o Mercosul nesse debate?
O
Mercosul, até hoje, é só boa vontade. Até no acordo com a União Europeia tem
dificuldade, o Brasil tem uma posição, a Argentina, outra, é mais resistente a
um acordo que traga a indústria da Europa para cá, por exemplo. Ainda que
protecionistas também, nós somos mais abertos que a Argentina.
·
Qual o futuro dos organismos multilaterais, que
perderam importância nos últimos anos?
Eu
sou legalista. Gosto das organizações multilaterais e torço pela ONU, OMC, FAO
(Organização para Alimentação e Agricultura da ONU), OMS (Organização Mundial
da Saúde). Mas o protagonismo delas está sumindo. Cerca de 40% do comércio de
comida no mundo vem de acordos bilaterais. A OMC perdeu força e nem sei se
voltará a ter o protagonismo do passado. É fundamental que haja arbitragem,
mas, para isso, é preciso que os países membros deem esse poder aos organismos.
Não adianta Lula querer, o Brasil é um país pequeno na geopolítica global. É
preciso que os Estados Unidos queiram, a União Europeia queira, a China, idem.
·
Qual sua avaliação do trabalho do ministro Carlos
Fávaro nesses quatro meses de governo?
Conheço
Fávaro desde que eu era ministro, tenho uma boa relação com ele. Ele é muito
habilitado para tocar o Ministério da Agricultura.
·
Mas, sempre tem um "mas"...
Acho
que o ministério vem perdendo protagonismo. No atual governo, perdeu metade da
função. Para o Ministério do Desenvolvimento Agrário, perdeu a Conab, que era
um órgão central para a agricultura. Perdeu o Cadastro Ambiental Rural (CAR) para
o Meio Ambiente, um instrumento de política agrícola; perdeu a Pesca, que virou
ministério. O Ministério da Agricultura foi muito fatiado. É ruim, porque se
perde a unidade. Mas não é grave porque os grandes problemas da agricultura
brasileira não estão no Ministério da Agricultura, estão no Itamaraty. Nós
dependemos do Itamaraty demais, nessa área e nos acordos comerciais.
·
Como fica a questão ambiental?
Essa
é uma questão básica para a competitividade, é preciso uma boa articulação com
(a pasta do) Meio Ambiente. Já disse e repito: a questão da sustentabilidade é
a base da competitividade. Mas não podemos nos submeter a visões hipócritas,
como a União Europeia usar o ambientalismo — e não há nenhum agricultor sério
que seja contra o meio ambiente, seria uma estupidez — para fazer barreira
comercial. O governo tem que proibir o desmatamento, proibir garimpo
clandestino, tem que ter vigor. Não é conversinha que os europeus colocam para
fazer barreira comercial. O Itamaraty tem clareza disso, e não vamos entrar
nessa fria, não.
·
E a indústria vê como essas negociações?
É
o quarto ponto: Indústria e Comércio. Agricultura, hoje, é cadeia produtiva.
Energia é agricultura, está presente em todas as áreas do governo e da
sociedade brasileira. É fundamental que o governo entenda a agricultura nessa
direção.
·
O atual governo tem essa compreensão?
O
Fávaro tem essas características, é bom de contato, de conversa. É bom que o
governo, em geral, entenda a agricultura com essa visão de integração. Mas não
é o que parece, quando leva para a China o líder do MST (Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra). Então, não vejo clareza ainda nesses quatro meses.
·
O setor agrícola já vê o presidente Lula com mais
confiança?
Não
sei responder, confesso. Diria que faltam sinais mais claros por parte do
governo. Se o governo ceder às invasões de terras, não haverá confiança. E não
há uma posição clara do governo federal, essa é, obviamente, uma questão
sensível. Essa boa posição do Fávaro na viagem para a China é muito positiva,
mas faltam sinais na segurança jurídica, na defesa da propriedade.
·
Qual é esse futuro ao qual o senhor se referiu no
início da entrevista?
Nós
temos uma chance que nunca tivemos ao longo da História. Nós produzimos 100
milhões de toneladas de grãos em 2001. Demoramos 500 anos para chegar a essa
marca. Quatorze anos depois (2015), produzimos 200 milhões de toneladas. Neste
ano, oito anos depois, vamos para 300 milhões. No ano 2000, o agronegócio
exportou US$ 20 bilhões. Ano passado, US$ 160 bilhões. Somos o maior produtor
mundial de soja, açúcar, suco de laranja, café, carne bovina e carne de frango.
O segundo em milho, e o terceiro em algodão. Qual é o país do mundo que faz
isso?
·
Quais são as perspectivas de crescimento?
Não
exportamos quase nada de leite, peixe, frutas. Em frutas, somos o terceiro
maior produtor mundial e apenas o 25º exportador. Exportamos menos leite que o
Uruguai. Peixes, com 8 mil km de costa, temos menos de 3% das exportações
mundiais. Importamos tilápia da China! Nós estamos no umbral da maior revolução
de segurança alimentar e energética com sustentabilidade ambiental que o mundo
já viu. E o Brasil vai liderar isso aí, mas tem que ter competência, sabedoria,
esperteza e fazer isso com decência.
Fonte:
Correio Braziliense
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