A violência é
contra a escola
Nas
últimas semanas, a violência contra a escola ameaçou seu funcionamento,
inclusive com a hipótese de suspensão das aulas. Para compreender por que isso
acontece é preciso entender que a escola é a maior expressão da sociedade
humana ocidental para o enfrentamento da barbárie – e as ameaças contra ela
produzem um efeito imediato: pânico. Não há afeto mais desagregador que esse.
Pânico é “salve-se quem puder”. A violência contra a escola é um ataque à
possibilidade de vivermos uns com os outros.
Por
isso precisamos interrogar: a serviço do que se promove o ataque contra a
escola? O pânico tira as pessoas do espaço coletivo, tranca-as em casa, esvazia
o espaço público. E fragiliza – muito. O efeito, no pensamento, é não pensar; o
efeito, no corpo, é tremer, silenciar ou gritar, é interromper a conversa. O
efeito, na vida, é isolar.
Nessa
situação, a pergunta insistente que fazemos é: quem vai me salvar? Quem é o
responsável? O afeto desagregador não supõe nunca uma resposta coletiva, só
procura um culpado. Fica de olho na “maçã podre”, como se tudo fosse se
resolver tirando uma fruta estragada da cesta.
A
violência contra a escola busca fazer as pessoas acreditarem que, para que
estejamos seguros, precisaremos desocupar o espaço do comum, deixar de fazer
comunidade. Quando se ataca a escola é isso que se ataca. A violência contra a
escola nos faz duvidar da sua condição de cumprir a sua função social: a meta é
reduzir seu papel de espaço de convívio e de pertencimento. É exatamente nesse
sentido que a escola está sendo violada como espaço público, violada como
espaço de convívio, violada como o primeiro lugar, fora da família, que
favorece a constituição da experiência com o outro.
As
tragédias da Vila Sônia, na cidade de São Paulo, e de Blumenau, em Santa
Catarina, violências extremas que aconteceram na escola, são a expressão do
conflito de muitas dimensões que vivemos como sociedade. As ameaças contra as
escolas que começaram a proliferar depois dos ataques – aquelas que viralizaram
nas redes sociais, induzindo famílias a não levarem seus filhos no dia 20 de
abril, data do massacre de Columbine, nos Estados Unidos – configuram um
fenômeno que não é de expressão do conflito. Como me ensinou o psicanalista e
professor da Faculdade de Educação da USP Rinaldo Voltolini, trata-se, nesse
caso, da promoção do conflito. Essa diferença fundamental, entre expressar e
promover o conflito, e o modo como essas duas categorias se articulam, é a que
nos interessa para entender o que está acontecendo.
É
preciso examinar os diversos fatores que compõem esse conflito. Trabalhos do
Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem) e do Instituto de
Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp
afirmam que a violência no interior das escolas, assim como os ataques contra
elas, está relacionada à escalada do ultraconservadorismo e do extremismo de
direita no país – e também à falta de controle e de criminalização desses
discursos. Esses dados foram analisados pelo grupo de transição
de governo,
o que torna possível afirmar que ficamos assustados com os acontecimentos
terríveis, mas nenhuma pessoa ou instituição que teve acesso a esses trabalhos
pode se declarar surpreendida.
Para
começar, é preciso prestar atenção no que se alardeia e no que se invisibiliza:
no mesmo dia da tragédia de Blumenau, uma escola no Complexo da Maré, no Rio de
Janeiro, foi abordada por agentes policiais em dois carros blindados que tentavam capturar
integrantes de grupos armados que tinham se escondido no local.
Deveria ser desnecessário, mas, infelizmente, ainda é preciso dizer: na Maré,
como em todos os outros cantos deste país, escola é lugar de criança. Promover
a crise, invadindo os muros da escola, produzindo violência contra a escola,
não contra uma escola, mas contra a escola – instituição central da nossa
organização social –, não é, de forma alguma, um gesto qualquer e sem objetivo.
Estamos
diante de uma oportunidade vigorosa de entender a segurança pública como um
determinante de saúde mental – e de pensar o lugar da escola nessa construção.
Para isso, é preciso enfrentar a tendência da atualidade de reduzir um problema
que é social a uma questão individual. Nesse sentido, realizar o diagnóstico
de saúde mental dos
agressores é
uma clara tentativa de impedir a crítica política que precisamos fazer: é o
nosso funcionamento social, com suas estratégias de exclusão, que condiciona a
produção da violência que acontece nas escolas e contra a escola.
O
pesquisador indiano Vikram Patel define saúde mental como pertencimento e assim
desafia essa compreensão e nos ajuda a entender as relações entre segurança
pública e saúde mental. Com ele, podemos todos entender que ocupar, usar,
usufruir, fruir o espaço comum produz segurança – e produz também saúde mental.
Afinal, poderíamos perguntar: quem vive bem ao se sentir inseguro? Quem vive
bem com os outros ao se perceber ameaçado?
A
promoção da saúde mental faz parte do mandato público da Saúde, que, para
alcançar seu objetivo de transformação da realidade social das infâncias e
juventudes, deve trabalhar articulado com a escola. Essa prerrogativa não se
reduz a ter um psicólogo para escutar cada um individualmente, mas inclui,
necessariamente, a promoção de ações e gestos, no interior da escola, que
produzam acolhimento, escuta, conversa. Que façam da escola lugar de
pertencimento para as infâncias e juventudes. Que façam do convívio, currículo.
Quando
pensamos em escola, muito rapidamente consideramos a sua tarefa de transmitir a
cultura produzida pela humanidade na forma dos conteúdos acadêmicos. Ao lado e
articulada a essa tarefa, porém, está o modo de fazer isso, está a distribuição
do tempo e do investimento sistemático dedicado a cada um dos conteúdos. É
nesse contexto que se considera que o convívio tem estatuto curricular entre as
práticas educacionais. Para a formação das novas gerações, os conteúdos
específicos no campo do conhecimento formal são tão importantes quanto os usos
que se pode fazer de cada um deles. Um currículo que distribua conhecimento
sobre as culturas negra e indígena e que, junto com isso, construa práticas de
relação entre as pessoas e suas diferenças, no interior da escola, é certamente
um currículo que põe em pauta e pratica, no chão da escola, o convívio nas suas
dimensões humanas.
Os
povos originários, com as diversas formas em que cada etnia e cada aldeia criam
e produzem coletividade, têm muito a ensinar sobre o que é convívio e suas
práticas agregadoras de crianças e jovens. A escola, por sua vez, pode inventar
várias estratégias propositivas do convívio, mas nenhuma será tão potente
quanto a construção de um currículo antirracista e anticapacitista.
A
crescente vulnerabilização das experiências de infâncias e juventudes, entre
todas as populações vitimadas pelo discurso de ódio, tem efeitos graves na
saúde mental. É por isso que se torna necessário questionar o porquê de o muito
bem-vindo e recém-criado Departamento de Saúde Mental do Ministério da Saúde
não ter, ainda, uma coordenação designada para infâncias e adolescências.
A
resposta para esse problema tem sido a mesma desde os primeiros anos da reforma
psiquiátrica: “Infâncias e juventudes são temas transversais”. Sim, são. Mas
agora precisamos de uma coordenação que sustente a transversalidade nesse
debate, que sustente e coordene a promoção da saúde mental junto à rede de
proteção social, da qual a escola faz parte. Uma coordenação pode fazer o
enfrentamento da lógica individualizante e patologizante, pode apoiar e
fomentar soluções locais. Uma coordenação disputa orçamento e sustenta a
proposição do mais vigoroso tratamento de que precisamos: a construção de
possibilidades de pertencimento. Uma coordenação enfrenta concepções de
segurança que produzem pânico.
O
que devemos às crianças e jovens, neste momento, é colocar toda a nossa força e
todos os recursos que temos para sustentar a possibilidade de vivermos uns com
os outros, em segurança. O que tem acontecido, porém, é bem diferente disso.
Tem
se defendido um maior investimento dos governos e das escolas em policiamento e
tecnologia de controle ao acesso à escola, reduzindo a ideia de segurança à de
segurança policial. Num gesto articulado, propõe-se a contratação de psicólogos
para ficarem dentro da escola e conversarem com os alunos. Mas é preciso
perguntar: essa é uma aposta na produção de saúde mental ou um investimento em
processos investigativos mais condizentes com uma estratégia policial do que de
saúde?
Sem
descartar o valor que a ronda policial escolar pode assumir neste momento, não
podemos esquecer que segurança pública é algo muito maior e mais complexo do
que segurança policial. Os dados que recolhemos das experiências americanas de
armar e blindar as escolas nos contam isso: enquanto as escolas ganhavam
dispositivos de segurança, a violência não diminuía. Segurança tem a
ver com a produção de espaço comum e regulado, com a força comunitária.
Intuitivamente, todos sabemos disso desde Chapeuzinho Vermelho: “Não vá pela
estrada deserta, ande onde tem gente”. Há também as versões mais
contemporâneas: “Quando sair da escola ou da faculdade de noite, vá até o metrô
em grupo, não fique sozinha na praça”. Que sociedade é essa em que gente se
tornou ameaça em vez de proteção, inimigo em vez de comunidade?
O
que precisamos é reinventar a experiência de estar junto. Para isso, é bom
lembrar que estamos todos no mesmo jogo: crianças, jovens, famílias, escola,
poder público. Mas não jogamos nas mesmas posições e, por causa disso,
precisamos nos organizar para que a bola não pare de rolar.
A
escola, com suas crianças e seus jovens, precisa produzir educação contra a
barbárie, precisa transformar o que está acontecendo em contexto de
aprendizagem. Um currículo pensado e pactuado com cada faixa etária, que dê
lugar ao convívio e distribua recursos de pertencimento, de conversa, de
escuta. Ao promover o convívio, agimos contra experiências de humilhação e
despertencimento. Ao promover o convívio, fortalecemos o espaço comum e agimos
contra o discurso do ódio.
Enfrentar
o discurso de ódio passa também, necessariamente, pela regulação e controle de
conteúdo das plataformas digitais, pelo entendimento de que a internet e suas
redes sociais são espaço público que deve ser regulado. As redes sociais não
reguladas e não controladas são o lugar no qual os potenciais agressores fazem
a sua comunidade e o seu pertencimento.
Precisamos
ultrapassar a barreira das incontáveis reuniões em que discutimos e pactuamos
estratégias de enfrentamento, mas que não conseguem fazer com que as políticas
pensadas atravessem as portas dos gabinetes para, com orçamento suficiente,
alcançar os territórios e efetivamente promover a transformação social que se
diz desejar.
Nós
vivemos os últimos anos lutando contra o ódio que destitui a possibilidade do
viver em espaço comum e transforma o outro em inimigo ameaçador. Está mais do
que na hora de abrirmos concorrência contra o discurso do ódio que coloca o
outro como ameaça e que, com esse argumento, incita a violência. Nós – todos e
cada um – precisamos resistir a sermos cooptados pela ideia de que é seguro
desocupar uma escola. Não é. Para isso, é urgente escutar os povos originários,
que lutam pela demarcação e integridade de suas terras comuns para que suas
crianças e jovens cresçam na segurança do coletivo, que acolhe e protege.
Fonte:
Sumaúma
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