quinta-feira, 9 de março de 2023


Carlos Wagner: Caso yanomami carimba Bolsonaro como persona non grata nos EUA?

Era fato conhecido pelos jornalistas que os bastidores da tumultuada administração do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) seria contada pelos esqueletos deixados nos armários, uma gíria usada pelos velhos repórteres para designar segredos. Só não se imaginava que seriam tantos esqueletos, a ponto de manter o ex-presidente nas manchetes mesmo um mês e alguns dias depois de ser substituído no cargo por Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Pelo volume de rolos que estão aparecendo, Bolsonaro continuará nos noticiários ainda por um bom tempo. O mais recente aconteceu no início do mês, quinta-feira (02/02), quando um dos seus aliados, o senador Marcos do Val (Podemos-ES), deu uma entrevista para a revista Veja na qual afirmou que teria sido convidado pelo ex-deputado federal do Rio de Janeiro Daniel Silveira, na frente de Bolsonaro, para participar de um esquema de espionagem com o objetivo de constranger o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) – há muitas matérias sobre o assunto na internet. Nas 48 horas seguintes à denúncia, o senador mudou cinco vezes a sua versão do episódio. Ele tem uma página na internet onde consta o seu currículo. Eu recomendo aos meus colegas que verifiquem a veracidade das informações.

Essa história do senador vai ficar pelo menos mais uma ou duas semanas no noticiário. E seja qual for o final, o certo é que ela ajudou a manter o nome do ex-presidente nas manchetes. Outra história que vai manter Bolsonaro na capa dos jornais ao redor do mundo é a crise humanitária provocada pelos garimpeiros na reserva dos índios yanomami, uma área de 30 mil hectares na fronteira de Roraima com a Venezuela. Além da fome que reduziu mulheres, homens e crianças a pele e osso, nos últimos dias foi descoberto que 30 adolescentes indígenas foram abusadas pelos garimpeiros e estão grávidas. Há uma comissão de autoridades federais apurando a tragédia na reserva. Todas as semanas surgem fatos novos nessa história. Uma das novidades que tem forte potencial para criar corpo nas próximas semanas é a apuração da responsabilidade na crise humanitária do ex-vice-presidente da República, o general da reserva Hamilton Mourão. Ele presidiu o Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL), órgão responsável pela execução das políticas governamentais na região. Portanto, sabia o que estava acontecendo na terra yanomami. Mourão se elegeu senador pelo Rio Grande do Sul e está envolvido em uma disputa política com o ex-presidente pelo comando do movimento bolsonarista.

Ahistória dos yanomami pode tornar Bolsonaro uma pessoa não grata em vários lugares do mundo. Lembro que nós jornalistas aprendemos que durante o seu mandato Bolsonaro nunca se preocupou, ou pelo menos não demonstrava preocupação, com os escândalos do seu governo. Sempre atirava a culpa em um adversário político ou até mesmo nos seus aliados. Ele tem se comportado de forma diferente na questão da crise humanitária dos yanomami. Tem demonstrado preocupação. Por que a mudança? Sempre escrevi que o ex-presidente é um cara esperto, que conseguiu sobreviver durante mais de três décadas como parlamentar. Uma das condições para sobreviver no jogo político é se antecipar aos problemas. Ele sabe que as imagens da tragédia yanomami são fortes e têm potencial para torná-lo uma pessoa não grata ao redor do mundo. Lembro que o ano passado, em 11 de novembro, escrevi e publiquei o post Esqueletos nos armários vão contra a história do governo Bolsonaro. Não deu outra. Também lembrei que o ex-presidente faria de tudo para disputar espaços na imprensa com o atual presidente para se manter vivo politicamente. Ele é mestre na arte de se tornar notícia. Consta que, certa vez, quando era deputado federal pelo Rio de Janeiro, disse um absurdo que acabou virando manchete em importantes jornais ao redor mundo. Na ocasião, andava pelos gabinetes dos seus colegas na Câmara dos Deputados vangloriando-se de ser notícia. Ele é defensor da máxima: “Falem bem ou falem mal. Mas falem de mim”. Lembro que, na época, ele era um deputado do chamado “baixo clero”, uma expressão cunhada pela imprensa para designar parlamentares sem importância. O jogo mudou quando se elegeu presidente, em 2018. Até então, ele corria atrás dos jornalistas para contar histórias fantásticas na esperança que virassem uma reportagem. Depois que se elegeu presidente foram os jornalistas que passaram a correr atrás dele em busca de notícias. E pelo cargo que ocupava, tudo que falava, por mais absurdo que fosse, ganhava espaço nobre nos noticiários.

Nos dias atuais, os jornalistas continuam correndo atrás do ex-presidente. Não para saber o que ele pensa sobre política, economia e outro assunto qualquer. O interesse é saber sobre a tragédia yanomami. E também sobre os atos terroristas de 8 de janeiro, quando bolsonaristas radicalizados quebraram tudo que encontraram pela frente no Congresso, no Palácio do Planalto e no STF. Atualmente, o ex-presidente está vivendo em Orlando, Estados Unidos, para onde foi um dia antes do término do seu mandato com o objetivo de fugir da cerimônia de passagem da faixa presidencial para o seu substituto, o presidente Lula. Ninguém sabe qual será o seu destino nos próximos dias. Duvido que ele saiba. O que se sabe com certeza é que o seu nome se manterá nas manchetes. E isso que nem metade dos esqueletos deixados nos armários do seu governo foram descobertos. Sabe-se lá o que vem por aí. Certa vez, escrevi que o governo do ex-presidente era um caso de polícia. Acrescentaria que é um caso de polícia bem complicado, que precisa ser meticulosamente examinado para evitar que absurdos como a história dos yanomami se repitam.

 

       Indígenas yanomami mostram impactos sociais graves do garimpo ilegal

 

A presença do garimpo ilegal no Território Yanomami causa múltiplos impactos na vida social dos indígenas. A crise humanitária é mais visível no estado de saúde delicado, especialmente de crianças e idosos, como visto nas últimas semanas, mas alcança ainda dimensões culturais desse povo. Na última semana, a reportagem da Agência Brasil visitou algumas vezes a Casa de Saúde Indígena (Casai), em Boa Vista, e também esteve no próprio Território Yanomami, no Polo Base de Surucucu, entre quinta (9) e sexta-feira (10). Durante as visitas, conversou com os indígenas e especialistas para entender melhor como eles percebem esses impactos.  

“Água suja para comer, estraga o peixe. Crianças muito fracas. Água bebe-se suja e barriga dói muito”, diz Enenexi Yanomami, que tenta descrever a situação vivida por seus parentes na terra indígena. A Agência Brasil encontrou o jovem indígena, de 21 anos, na entrada da Casai. Segundo ele, já passavam de 60 dias sua estadia na capital para acompanhar familiares doentes. O retorno ao território, que depende de transporte aéreo, não tinha previsão. “Faltam mais horas de voo para Surucucu”.

Para ele, a presença do garimpo é o que tem causado os danos que afetam seu povo. “Agora, tem que tirar garimpo. Quando tirar, tranquilo. Tem muito garimpo lá, [tem que ser] proibido”.

Mãe de duas crianças internadas na Casai, Louvânia Yanomami já perdeu a conta de quanto tempo está longe de sua terra. Sem previsão de alta, ela recebeu alerta dos médicos de que, se voltar, pode colocar a vida do filho menor em risco. A criança, que tem entre 1 e 2 anos, apresenta quadro de desnutrição severa e inchaço do abdômen.

“Eu estou muito cansada, tem muita gente aqui [Casai], dá pra perceber. É uma situação difícil. Não vou deixar porque é meu [filho] e não posso levar porque ele vai morrer”, relata, angustiada, com ajuda de um intérprete. Em janeiro, a Casai chegou a abrigar mais de 700 pessoas, mas o local tem capacidade para pouco mais de 200. Houve uma redução dessa superlotação, mas o espaço ainda registra a presença de mais de 500 pessoas, segundo balanço da semana passada do Centro de Operações de Emergências (COE) do governo federal.

Quem também reclama dos danos ambientais trazido pela exploração ilegal de minérios é Arokona Yanomama, com quem a reportagem conversou na Casai. Ele cita como o maquinário pesado de dragas e tratores afugenta animais de caça e polui a terra. “Cheiro ruim. Morre caça, morre tudo. A terra não é boa, é muito feio. Máquina de fumaça entrou, por isso cheiro muito ruim. Contaminaram terra, contaminaram água, poluíram peixe”, relata. Agora, para caçar um porco do mato, ele tem que andar por pelo menos 50 quilômetros para se afastar da área mais deteriorada.

        Referência perdida

“O garimpo vai justamente atacar a cadeia alimentar básica dos yanomami. Eles são um povo de mobilidade territorial, vivem da caça, da pesca, da coleta e da agricultura. Nada mais triste, então, do que um caçador yanomami não ter caça para suprir a família”, explica a antropóloga Maria Auxiliadora Lima de Carvalho. Ela trabalha há mais de 20 anos com o povo yanomami, em Roraima.

“O povo yanomami nunca precisou de doação de alimentos para sobreviver. Todo esse cenário de vulnerabilidade foi provocado. O maior mal ainda é a presença do garimpeiro, do garimpo”, afirma o secretário especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, Weibe Tapeba, que visitou o território na última quinta-feira (9).

Até mesmo alguns dos rituais mais sagrados dos yanomami estão sendo drasticamente abalados pela atividade garimpeira e a desassistência generalizada em saúde dentro do território. É o caso das cerimônias fúnebres. Os yanomami não enterram seus mortos. Eles cremam os corpos de seus familiares falecidos e, depois, trituram os ossos até virar pó. O processo pode levar semanas e, muitas vezes, inclui uma fase final em que a comunidade realiza um ato de tomar mingau de banana com as cinzar do ente falecido.

“Os yanomami fazem questão dos rituais fúnebres, mas os mortos são tantos que não está havendo nem tempo para chorá-los”, afirma a antropóloga. Essas cerimônias podem incluir também a presença de visitantes de aldeias diferentes e, nesses casos, os anfitriões costumam oferecer um animal de caça, o que tem ficado escasso nas regiões afetada pelo garimpo.

A entrada do álcool na cultura yanomami, que não é recente, mas tem se agravado, é outro fator desestabilizador. O kaxiri, bebida  feita de macaxeira cozida, não alcoólica, e muito tradicional, passou a ser fermentada pelos indígenas para ficar com alto teor de álcool, por influência dos garimpeiros, ainda durante a primeira invasão ao território, no fim da década de 80. “Isso fez aumentar casos de violência contra as mulheres e de violência de uma forma geral”, explica Maria Auxiliadora. Também interferiu na produção agrícola, fazendo com que indígenas aumentassem a plantação de macaxeira para produzir a bebida, ampliando o ciclo do consumo de álcool nas aldeias.

        Juventude assediada

A antropóloga também observa outro tipo de desestruturação comunitária causada pelo garimpo. No primeiro grande surto de garimpagem ilegal na Terra Indígena Yanomami, a partir da segunda metade da década de 80, a maior parte da população de indígenas era formada por adultos. Atualmente, no entanto, a base da pirâmide etária ficou bem mais numerosa, com forte presença de adolescentes e jovens. No entanto, a grande maioria das escolas dentro do território foi desativadas pelo governo do estado.

“As políticas públicas não chegam para esses jovens. E eles são jovens, querem aventuras. Com isso, o garimpo assediou enormemente essa juventude, com acesso a armas, que eles apreciam muito, e outros objetos”, acrescenta a especialista.

Ela cita o caso de assédio sexual de garimpeiros contra as mulheres indígenas, que observou durante trabalho de campo na comunidade, onde permaneceu por vários anos, entre 2002 e 2009. Segundo a antropóloga, as denúncias que vêm sendo reveladas agora, com a explosão de garimpo no território, são bem prováveis.

“Com o garimpo o tempo todo e cada vez mais, é bem possível que eles tenham feito sedução. Elas gostam muito de sabonetes, óleo para cabelo, comida. Então, essa troca por relação sexual, seja consentida ou não, é desigual, porque há posições de poder bem claras”, argumenta.

O governo federal investiga o caso de 30 meninas yanomami que estariam grávidas de garimpeiros que atuam ilegalmente no território.

        Esperança

Em meio ao caos vivido pelos yanomami, a esperança no futuro passa pela reativação das escolas na região, fechadas há mais de uma década.

“Aqui tinha escola, eu ainda lembro”, afirma Ivo Yanomami, tuxaua (cacique) na comunidade de Xirimifik, com mais de 200 pessoas, grande parte crianças e adolescentes. A aldeia fica a cerca de 15 minutos de caminhada da pista de Surucucu.

A demanda pela retomada das escolas indígenas dentro do território será levada ao governo federal, assegurou o secretário de Saúde Indígena, Weibe Tapeba, durante visita que fez à região.

 

Fonte: Observatório da Imprensa/Agencia Brasil

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