quinta-feira, 9 de março de 2023


 Atas secretas revelam plano do Governo Bolsonaro  para ocultar informações da população sobre a Covid

Enquanto os veículos de imprensa faziam homenagens às vítimas e divulgavam os óbitos pela Covid-19, o Painel de Informações do Governo Federal divulgava apenas o número de pessoas que se recuperaram da doença, uma estratégia de omitir informações sobre a crise sanitária e tentar provar que o governo de Bolsonaro estava se movimentando para combater a disseminação da doença, quando a realidade mostrava o contrário. A métrica buscava, em vez de conscientizar as pessoas sobre a importância de manter os protocolos sanitários e evitar novas contaminações, enganar a população de que o vírus que matou mais de 693 mil brasileiros era apenas uma “gripezinha”, como já afirmou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Na primeira ata referente à primeira reunião do Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19 (CCOP), em 17 de março de 2020, “O Ministro Braga Netto ponderou a todos, (sic) que mantenham a calma e não transmitam informações erradas e precipitadas para não causar pânico na população, o único meio de comunicação com a imprensa será o da SECOM”.

A então Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, atualmente senadora da república, também recorreu às igrejas para ajudar na tarefa de falta de transparência. Em resposta a Braga Netto, ela informou que foi criado “um comitê interno utilizando-se das igrejas e comunidades religiosas para acalmar a população”. Segundo ela, as comunidades religiosas, que contam com canais de rádio e TV, “se dispuseram a colaborar com a transmissão das informações por esses meios”.

No mês seguinte, em 6 de abril de 2020, o representante da Secretaria de Governo da Presidência da República (SEGOV/PR), Samy Liberman, pediu que não fossem divulgados dados sobre a “letalidade do coronavírus”. “Como não realizamos testes em toda a população, esse percentual torna-se mais assustador à população, do que realmente é. Sugeriu, então, que fosse retirado o percentual de letalidade do painel, para que essa informação não seja distorcida e cause ainda mais pânico à sociedade”, registrou o documento do CCOP, subordinado à Casa Civil, comandada por Braga Netto.

Na mesma reunião, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), comandado pelo general da reserva, Augusto Heleno, propôs que os óbitos por Covid fossem divulgados com a comparação feita em milhões de habitantes. De acordo com o representante do GSI, cujo nome não aparece na ata, esses seriam os dados usados pela comunidade internacional.

Agência Pública já mostrou, também com base nas atas, que a estratégia de omitir dados negativos e divulgar informações positivas ao governo foi utilizada em outras duas situações. Durante a crise sanitária em Manaus, que matou 2.195 pessoas somente em janeiro de 2021, o Ministério das Comunicações sugeriu que a comunicação deveria se “concentrar no que foi realizado e enviado ao Estado do Amazonas nas últimas 48 horas, para fins de informações à População do Estado e de todo o País”.

A mesma tática se repetiu quando o Executivo se deparou com o aumento do número de casos e mortes entre populações tradicionais indígenas e quilombolas. Em 7 de maio de 2020, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos disse que era “importante melhorar a divulgação das ações realizadas, a exemplo daqueles (sic) direcionadas ao atendimento das populações indígenas”. Já em 31 de agosto, o representante do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) advertiu que a ativista climática Greta Thunberg e o Greenpeace fariam uma “manifestação internacional contra o Governo federal com ênfase nas questões Indígenas e Ambiental” e pediu que fossem apresentados “os diversos projetos e realizações feitas nessa questão”.

Também o Ministério das Comunicações parece ter sentido a cobrança e, em uma das reuniões, prestou contas sobre suas ações. No dia 2 de outubro de 2020, apresentou ao grupo os números que mostravam o trabalho investido “na divulgação de todas as realizações do governo”. De acordo com eles, no mês de setembro haviam sido feitos 600 posts nas redes, 02 coletivas de imprensa, 25 materiais no site www.gov.br, 23 comunicados interministeriais e 719 pautas governamentais”.

As atas acessadas pela reportagem foram produzidas pela Casa Civil e são a memória escrita das reuniões realizadas pelo CCOP entre março de 2020 e setembro de 2021. As reuniões envolveram representantes de 26 órgãos da Esplanada, incluindo os principais ministérios, agências reguladoras, bancos públicos, a Polícia Federal e a Abin (Agência Brasileira de Inteligência). O CCOP foi criado a partir de um decreto de Bolsonaro logo no início da pandemia, em 24 de março de 2020. Suas reuniões, que ocorreram principalmente na Sala 97 do Palácio do Planalto, eram secretas e nem mesmo a CPI da Covid teve acesso ao material obtido pela reportagem via Lei de Acesso à Informação.

Durante a 5ª Reunião Ordinária do grupo, em 23 de março de 2020, a Casa Civil advertiu que “gravações, fotos, filmagens ou qualquer outro tipo de divulgação do CCOP estão terminantemente proibidas, por questão de ali serem tratados dados sensíveis”. Seguindo o próprio conselho, o General Walter Braga Netto, à época chefe da pasta, negou as tentativas de acesso aos documentos pela Pública quando ainda estava no governo. No final de janeiro deste ano, já no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a reportagem obteve o acesso aos documentos.

A imprensa

Os documentos também registram como a imprensa era vista internamente. Alvo de críticas constantes por parte do ex-presidente e seus ministros — Jair Bolsonaro disse em 2018 que quem lia jornais estava “desinformado” —, nas reuniões internas os representantes dos órgãos do Executivo pareciam se importar em estancar as críticas e compartilhar com a mídia informações positivas sobre as ações do governo.

No dia 21 de setembro de 2020, a Subchefia de Articulação e Monitoramento (SAM/CC) apontou que haviam publicado uma nota para informar a imprensa sobre a intenção do governo brasileiro em aderir ao COVAX Facility, iniciativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) que distribuiria vacinas contra a Covid-19 para países subdesenvolvidos. Na época, o governo estava sendo criticado por não se empenhar na compra dos imunizantes. Assim, a orientação da SAM/CC foi para que os outros órgãos fomentassem “a divulgação das informações”, esclarecendo “que essa é mais uma das ações estratégicas do Ministério da Saúde para viabilizar a aquisição de vacinas, dentre as que estão sendo estudadas e disponibilizadas para enfrentamento a COVID-19”, conforme registrou a ata.

Em 21 de maio de 2021, quando ainda enfrentava críticas acerca da logística da campanha de vacinação, o Ministério da Saúde (MS) disse que se reuniu com representantes da Prefeitura de Maceió, no Alagoas, e que o município registrou “alta efetividade na distribuição e na aplicação das doses”. “Pode ser um caso de sucesso para divulgar”, completou o ministério.

Também houve um esforço para evitar que “o tiro saia pela culatra” quanto ao auxílio emergencial, nas palavras do representante do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Em 6 de abril de 2020, o GSI informou que estava trabalhando com o Ministério das Comunicações, a Abin e o Departamento de Segurança da Informação para prevenir “possíveis ataques cibernéticos e saques ilegais que possam ocorrer no âmbito do pagamento do Corona Voucher [auxílio emergencial]”.

“A preocupação se faz necessária, tendo em vista ter relatos de que já aconteceu isso com outros países e temos de ter o máximo cuidado e termos respostas à sociedade caso isso venha a ocorrer no Brasil, porque a mídia usará isso contra o governo federal. Portanto, temos que ter agilidade na comunicação, e o engajamento de todo o CCOP nessa demanda/esforço para evitar que ‘o tiro saia pela culatra’”, justificou o GSI.

Outro momento em que o governo considerou ser necessário responder às críticas da imprensa institucionalmente foi quando da criação da nota de 200 reais. Na reunião do dia 31 de julho de 2020, o Banco Central do Brasil (BACEN) informou que a nota seria lançada, já que a pandemia teria gerado “uma crise que gera demanda por papel moeda”. O BACEN se defendeu das críticas sobre a “possibilidade de lavagem de dinheiro com a possível emissão dessas novas notas”, informando que “estão completamente seguros com a segurança e que isso não acontecerá”.

A assessoria de comunicação da Casa Civil então “requereu ao BACEN que envie um release para que possam amenizar os impactos negativos sobre o tema na mídia e para o Governo federal”.

Segundo uma reportagem do UOL de setembro de 2022, só uma a cada quatro cédulas existentes nesse valor circulam atualmente no mercado e a inflação corroeu 19,6% do poder de compra da estampa do lobo-guará, que hoje vale só R$ 161.

Já o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos comemorou quando o lançamento de um aplicativo para denunciar “o abuso contra a mulher” teve “ótima repercussão perante a sociedade e a mídia”; e chamou de “falsas notícias” informações publicadas pela imprensa sobre a “entrega de cestas básicas em regiões de difícil acesso”. “O MMFDH fez uma parceria com a Assembleia de Deus para ajudar ainda mais nessas entregas”, defendeu o representante do ministério.

eiras reuniões, a Casa Civil fez questão de afirmar que todo o contato com a imprensa deveria ser centralizado na Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) — o que ajuda a explicar porque os ministérios não respondiam às demandas dos jornalistas, como aconteceu com a Pública na produção do especial coronavírus. 

De acordo com as orientações, dadas no dia 20 de março de 2020, tudo que os ministérios fossem publicar deveria passar pela Secom. “SAM vai disponibilizar link onde os ministérios informem o que vai ser comunicado no dia. A SECOM vai processar a partir das 16h, horário limite para envio via link”, explicou a Secretaria de Governo da Presidência da República (SEGOV). “Várias ferramentas serão utilizadas de uma forma mais adequada para uma narrativa mais favorável ao que se está pensando em atingir como público-alvo”, acrescentou o órgão.

 

Ø  Consórcio da Covid-19: Quando o jornalismo fez (e mostrou) a diferença. Por Marco Britto

 

Foram encerradas no último dia 28 as atividades do consórcio de imprensa para o acompanhamento dos números diários da Covid-19 no Brasil. Durante quase mil dias, entre junho de 2020 e janeiro de 2023, uma redação virtual de jornalistas de veículos concorrentes foi formada para preencher o vácuo informacional sobre a evolução da pandemia, gerado quando o Ministério da Saúde ensaiou a omissão e a manipulação dos dados públicos sobre a doença.

A criação e o funcionamento do consórcio constituem um exemplo potente de uma vocação do jornalismo na sociedade: informar os cidadãos para que eles possam tomar suas decisões. A liga que reuniu as maiores forças da imprensa nacional deixou de lado a disputa econômica para prestar um serviço que hoje já se caracteriza como histórico.

Diariamente, os participantes do consórcio reuniram dados das secretarias estaduais de saúde para levar a público a leitura mais exata possível sobre o quadro da pandemia no país. Foram números que se tornaram essenciais para a definição de muitas questões, seja para prefeitos fecharem ou abrirem comércios, seja para famílias decidirem se fariam festas de aniversário e outras confraternizações.

A pandemia afetou a vida de todos, independente de orientação política e classe social. E este consórcio atendeu todas estas pessoas lembrando a sociedade de que informação é item de primeira necessidade.

Segundo a Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj), nos dois anos iniciais de pandemia, 314 jornalistas morreram em decorrência da Covid-19, colegas que muitas vezes se expuseram fazendo reportagens em hospitais e outros pontos do front.

O começo da pandemia no Brasil agravou um quadro que já se mostrava crítico: o presidente Jair Bolsonaro mantinha uma rotina de farpas com a imprensa, evitando a comunicação com publicações consideradas de oposição.

·         Jornalismo reage

Em resposta a esta postura agressiva, ilustrada em casos como o da jornalista Patrícia Campos Mello, que processou o presidente e venceu, o tom da cobertura presidencial foi igualmente subindo o tom das críticas, principalmente na palavra dos colunistas, jornalistas com liberdade maior para proferir opiniões. Virou ringue, e uma velha premissa do jornalismo, de ser imparcial, foi duramente testada quando muitos escolheram de que lado gostariam de estar na história.

A imagem do jornalismo saiu arranhada dessa briga, e colegas foram agredidos fisicamente em manifestações de apoio ao presidente, ou de pautas inconstitucionais como o fim do Supremo Tribunal Federal e uma intervenção militar, que, em outras palavras, significa o fim da democracia. Surgem clichês de ataque à imprensa (não os repetirei aqui), ao mesmo tempo em que sites difusores de desinformação pipocaram como “fonte alternativa” dos fatos no país.

E veio a Covid-19. Brasileiros (e aqui repito) de todas as orientações políticas e classes sociais, começaram a morrer às centenas, milhares diariamente, e a resposta do governo federal foi ensaiar uma “operação abafa”, sequestrando os dados oficiais, mudando horários de divulgação para evitar os telejornais de maior audiência, e por fim, propondo uma “leitura diferente” das informações que mostravam um sistema de saúde em colapso.

Em seguida, ocorreu o primeiro de 965 dias de trabalho do consórcio. Um capítulo importante da história do jornalismo no país, onde brasileiros tiveram garantido o acesso à informação mais preciosa daquele momento. Não se tratava de um número. Se tratava de saber se poderia viajar ou não, dar aquele abraço ou não, redobrar seus cuidados, e claro, se deveria se vacinar.

Este “deveria” trago com simplicidade. Não entro aqui em discussões de negacionismo científico, tema para outro debate, mas procuro destacar a importância do trabalho do consórcio em dar esta oportunidade aos brasileiros, que puderam livremente acessar a informação e tomar a decisão que melhor julgassem. Uma cena que retrata o jornalismo na sua essência, proporcionada por uma força-tarefa que transpôs as barreiras econômicas do mercado da comunicação em nome do interesse público – o que é um feito e tanto.

 

Fonte: Agencia Pública/Observatório da Imprensa

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