Atas secretas revelam plano do Governo Bolsonaro para ocultar informações da população sobre a Covid
Enquanto
os veículos de imprensa faziam homenagens às vítimas e divulgavam os óbitos
pela Covid-19, o Painel de Informações do Governo Federal divulgava apenas o
número de pessoas que se recuperaram da doença, uma estratégia de omitir
informações sobre a crise sanitária e tentar provar que o governo de Bolsonaro
estava se movimentando para combater a disseminação da doença, quando a realidade
mostrava o contrário. A métrica buscava, em vez de conscientizar as pessoas
sobre a importância de manter os protocolos sanitários e evitar novas
contaminações, enganar a população de que o vírus que matou mais de 693 mil
brasileiros era apenas uma “gripezinha”, como já afirmou
o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Na
primeira ata referente à primeira reunião do Centro de Coordenação das
Operações do Comitê de Crise da Covid-19 (CCOP), em 17 de março de 2020, “O
Ministro Braga Netto ponderou a todos, (sic) que mantenham a calma e não
transmitam informações erradas e precipitadas para não causar pânico na
população, o único meio de comunicação com a imprensa será o da SECOM”.
A
então Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, atualmente
senadora da república, também recorreu às igrejas para ajudar na tarefa de
falta de transparência. Em resposta a Braga Netto, ela informou que foi criado
“um comitê interno utilizando-se das igrejas e comunidades religiosas para
acalmar a população”. Segundo ela, as comunidades religiosas, que contam com
canais de rádio e TV, “se dispuseram a colaborar com a transmissão das informações
por esses meios”.
No
mês seguinte, em 6 de abril de 2020, o representante da Secretaria de Governo
da Presidência da República (SEGOV/PR), Samy Liberman, pediu que não fossem
divulgados dados sobre a “letalidade do coronavírus”. “Como não realizamos
testes em toda a população, esse percentual torna-se mais assustador à
população, do que realmente é. Sugeriu, então, que fosse retirado o percentual
de letalidade do painel, para que essa informação não seja distorcida e cause
ainda mais pânico à sociedade”, registrou o documento do CCOP, subordinado à
Casa Civil, comandada por Braga Netto.
Na
mesma reunião, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), comandado pelo
general da reserva, Augusto Heleno, propôs que os óbitos por Covid fossem
divulgados com a comparação feita em milhões de habitantes. De acordo com o
representante do GSI, cujo nome não aparece na ata, esses seriam os dados
usados pela comunidade internacional.
A Agência Pública já mostrou, também com base nas atas, que a
estratégia de omitir dados negativos e divulgar informações positivas ao
governo foi utilizada em outras duas situações. Durante a crise sanitária em
Manaus, que matou 2.195 pessoas somente em janeiro de 2021, o Ministério das
Comunicações sugeriu
que a comunicação deveria se “concentrar no que foi realizado e enviado ao
Estado do Amazonas nas últimas 48 horas, para fins de informações à População
do Estado e de todo o País”.
A
mesma tática se repetiu quando o Executivo se deparou com o aumento do número
de casos e mortes entre populações tradicionais
indígenas e quilombolas. Em 7 de maio de 2020, o Ministério da
Mulher, Família e Direitos Humanos disse que era “importante melhorar a
divulgação das ações realizadas, a exemplo daqueles (sic) direcionadas ao
atendimento das populações indígenas”. Já em 31 de agosto, o representante do
Gabinete de Segurança Institucional (GSI) advertiu que a ativista climática
Greta Thunberg e o Greenpeace fariam uma “manifestação internacional contra o
Governo federal com ênfase nas questões Indígenas e Ambiental” e pediu que
fossem apresentados “os diversos projetos e realizações feitas nessa questão”.
Também
o Ministério das Comunicações parece ter sentido a cobrança e, em uma das
reuniões, prestou contas sobre suas ações. No dia 2 de outubro de 2020,
apresentou ao grupo os números que mostravam o trabalho investido “na
divulgação de todas as realizações do governo”. De acordo com eles, no mês de
setembro haviam sido feitos 600 posts nas redes, 02 coletivas de imprensa, 25
materiais no site www.gov.br, 23 comunicados
interministeriais e 719 pautas governamentais”.
As
atas acessadas pela reportagem foram produzidas pela Casa Civil e são a memória
escrita das reuniões realizadas pelo CCOP entre março de 2020 e setembro de
2021. As reuniões envolveram representantes de 26 órgãos da Esplanada,
incluindo os principais ministérios, agências reguladoras, bancos públicos, a
Polícia Federal e a Abin (Agência Brasileira de Inteligência). O CCOP foi
criado a partir de um decreto de Bolsonaro logo no início da pandemia, em 24 de
março de 2020. Suas reuniões, que ocorreram principalmente na Sala 97 do
Palácio do Planalto, eram secretas e nem mesmo a CPI da Covid teve acesso ao
material obtido pela reportagem via Lei de Acesso à Informação.
Durante
a 5ª Reunião Ordinária do grupo, em 23 de março de 2020, a Casa Civil advertiu
que “gravações, fotos, filmagens ou qualquer outro tipo de divulgação do CCOP
estão terminantemente proibidas, por questão de ali serem tratados dados
sensíveis”. Seguindo o próprio conselho, o General Walter Braga Netto, à época
chefe da pasta, negou as tentativas de acesso aos documentos pela Pública quando ainda estava no
governo. No final de janeiro deste ano, já no governo de Luiz Inácio Lula da
Silva, a reportagem obteve o acesso aos documentos.
A imprensa
Os
documentos também registram como a imprensa era vista internamente. Alvo de
críticas constantes por parte do ex-presidente e seus ministros — Jair
Bolsonaro disse em 2018 que quem lia
jornais estava “desinformado” —, nas reuniões internas os representantes dos
órgãos do Executivo pareciam se importar em estancar as críticas e compartilhar
com a mídia informações positivas sobre as ações do governo.
No
dia 21 de setembro de 2020, a Subchefia de Articulação e Monitoramento (SAM/CC)
apontou que haviam publicado uma nota para informar a imprensa sobre a intenção
do governo brasileiro em aderir ao COVAX Facility, iniciativa da Organização
Mundial da Saúde (OMS) que distribuiria vacinas contra a Covid-19 para países
subdesenvolvidos. Na época, o governo estava sendo criticado por não se
empenhar na compra dos imunizantes. Assim, a orientação da SAM/CC foi para que
os outros órgãos fomentassem “a divulgação das informações”, esclarecendo “que
essa é mais uma das ações estratégicas do Ministério da Saúde para viabilizar a
aquisição de vacinas, dentre as que estão sendo estudadas e disponibilizadas
para enfrentamento a COVID-19”, conforme registrou a ata.
Em
21 de maio de 2021, quando ainda enfrentava críticas acerca da logística da
campanha de vacinação, o Ministério da Saúde (MS) disse que se reuniu com
representantes da Prefeitura de Maceió, no Alagoas, e que o município registrou
“alta efetividade na distribuição e na aplicação das doses”. “Pode ser um caso
de sucesso para divulgar”, completou o ministério.
Também
houve um esforço para evitar que “o tiro saia pela culatra” quanto ao auxílio
emergencial, nas palavras do representante do Gabinete de Segurança
Institucional (GSI). Em 6 de abril de 2020, o GSI informou que estava
trabalhando com o Ministério das Comunicações, a Abin e o Departamento de
Segurança da Informação para prevenir “possíveis ataques cibernéticos e saques
ilegais que possam ocorrer no âmbito do pagamento do Corona Voucher [auxílio
emergencial]”.
“A
preocupação se faz necessária, tendo em vista ter relatos de que já aconteceu
isso com outros países e temos de ter o máximo cuidado e termos respostas à
sociedade caso isso venha a ocorrer no Brasil, porque a mídia usará isso contra
o governo federal. Portanto, temos que ter agilidade na comunicação, e o
engajamento de todo o CCOP nessa demanda/esforço para evitar que ‘o tiro saia
pela culatra’”, justificou o GSI.
Outro
momento em que o governo considerou ser necessário responder às críticas da
imprensa institucionalmente foi quando da criação da nota de 200 reais. Na
reunião do dia 31 de julho de 2020, o Banco Central do Brasil (BACEN) informou
que a nota seria lançada, já que a pandemia teria gerado “uma crise que gera
demanda por papel moeda”. O BACEN se defendeu das críticas sobre a
“possibilidade de lavagem de dinheiro com a possível emissão dessas novas
notas”, informando que “estão completamente seguros com a segurança e que isso
não acontecerá”.
A
assessoria de comunicação da Casa Civil então “requereu ao BACEN que envie um
release para que possam amenizar os impactos negativos sobre o tema na mídia e
para o Governo federal”.
Segundo
uma reportagem do UOL de setembro
de 2022, só uma a cada quatro cédulas existentes nesse valor circulam
atualmente no mercado e a inflação corroeu 19,6% do poder de compra da estampa
do lobo-guará, que hoje vale só R$ 161.
Já
o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos comemorou quando o
lançamento de um aplicativo para denunciar “o abuso contra a mulher” teve
“ótima repercussão perante a sociedade e a mídia”; e chamou de “falsas
notícias” informações publicadas pela imprensa sobre a “entrega de cestas
básicas em regiões de difícil acesso”. “O MMFDH fez uma parceria com a
Assembleia de Deus para ajudar ainda mais nessas entregas”, defendeu o
representante do ministério.
eiras
reuniões, a Casa Civil fez questão de afirmar que todo o contato com a imprensa
deveria ser centralizado na Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) —
o que ajuda a explicar porque os ministérios não respondiam às demandas dos
jornalistas, como aconteceu com a Pública na
produção do especial
coronavírus.
De
acordo com as orientações, dadas no dia 20 de março de 2020, tudo que os
ministérios fossem publicar deveria passar pela Secom. “SAM vai disponibilizar
link onde os ministérios informem o que vai ser comunicado no dia. A SECOM vai
processar a partir das 16h, horário limite para envio via link”, explicou a
Secretaria de Governo da Presidência da República (SEGOV). “Várias ferramentas
serão utilizadas de uma forma mais adequada para uma narrativa mais favorável
ao que se está pensando em atingir como público-alvo”, acrescentou o órgão.
Ø
Consórcio
da Covid-19: Quando o jornalismo fez (e mostrou) a diferença. Por Marco Britto
Foram
encerradas no último dia 28 as atividades do consórcio de imprensa para o
acompanhamento dos números diários da Covid-19 no Brasil. Durante quase mil
dias, entre junho de 2020 e janeiro de 2023, uma redação virtual de jornalistas
de veículos concorrentes foi formada para preencher o vácuo informacional sobre
a evolução da pandemia, gerado quando o Ministério da Saúde ensaiou a omissão e
a manipulação dos dados públicos sobre a doença.
A
criação e o funcionamento do consórcio constituem um exemplo potente de uma
vocação do jornalismo na sociedade: informar os cidadãos para que eles possam
tomar suas decisões. A liga que reuniu as maiores forças da imprensa nacional
deixou de lado a disputa econômica para prestar um serviço que hoje já se
caracteriza como histórico.
Diariamente,
os participantes do consórcio reuniram dados das secretarias estaduais de saúde
para levar a público a leitura mais exata possível sobre o quadro da pandemia
no país. Foram números que se tornaram essenciais para a definição de muitas
questões, seja para prefeitos fecharem ou abrirem comércios, seja para famílias
decidirem se fariam festas de aniversário e outras confraternizações.
A
pandemia afetou a vida de todos, independente de orientação política e classe
social. E este consórcio atendeu todas estas pessoas lembrando a sociedade de
que informação é item de primeira necessidade.
Segundo
a Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj), nos dois anos iniciais de
pandemia, 314 jornalistas morreram em decorrência da Covid-19, colegas que
muitas vezes se expuseram fazendo reportagens em hospitais e outros pontos
do front.
O
começo da pandemia no Brasil agravou um quadro que já se mostrava crítico: o
presidente Jair Bolsonaro mantinha uma rotina de farpas com a imprensa,
evitando a comunicação com publicações consideradas de oposição.
·
Jornalismo reage
Em
resposta a esta postura agressiva, ilustrada em casos como o da jornalista
Patrícia Campos Mello, que processou o presidente e venceu, o tom da cobertura
presidencial foi igualmente subindo o tom das críticas, principalmente na
palavra dos colunistas, jornalistas com liberdade maior para proferir opiniões.
Virou ringue, e uma velha premissa do jornalismo, de ser imparcial, foi
duramente testada quando muitos escolheram de que lado gostariam de estar na
história.
A
imagem do jornalismo saiu arranhada dessa briga, e colegas foram agredidos
fisicamente em manifestações de apoio ao presidente, ou de pautas
inconstitucionais como o fim do Supremo Tribunal Federal e uma intervenção
militar, que, em outras palavras, significa o fim da democracia. Surgem clichês
de ataque à imprensa (não os repetirei aqui), ao mesmo tempo em que sites
difusores de desinformação pipocaram como “fonte alternativa” dos fatos no
país.
E
veio a Covid-19. Brasileiros (e aqui repito) de todas as orientações políticas
e classes sociais, começaram a morrer às centenas, milhares diariamente, e a
resposta do governo federal foi ensaiar uma “operação abafa”, sequestrando os
dados oficiais, mudando horários de divulgação para evitar os telejornais de
maior audiência, e por fim, propondo uma “leitura diferente” das informações
que mostravam um sistema de saúde em colapso.
Em
seguida, ocorreu o primeiro de 965 dias de trabalho do consórcio. Um capítulo
importante da história do jornalismo no país, onde brasileiros tiveram
garantido o acesso à informação mais preciosa daquele momento. Não se tratava
de um número. Se tratava de saber se poderia viajar ou não, dar aquele abraço
ou não, redobrar seus cuidados, e claro, se deveria se vacinar.
Este
“deveria” trago com simplicidade. Não entro aqui em discussões de negacionismo
científico, tema para outro debate, mas procuro destacar a importância do
trabalho do consórcio em dar esta oportunidade aos brasileiros, que puderam
livremente acessar a informação e tomar a decisão que melhor julgassem. Uma
cena que retrata o jornalismo na sua essência, proporcionada por uma
força-tarefa que transpôs as barreiras econômicas do mercado da comunicação em
nome do interesse público – o que é um feito e tanto.
Fonte:
Agencia Pública/Observatório da Imprensa
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